domingo, 7 de janeiro de 2024

Os gatos inundaram a prisão. Em seguida, os reclusos apaixonara

 


A maior prisão de Santiago do Chile, já com 180 anos de história, tem nas centenas de felinos que vagueiam por ali preciosos aliados. Não só combatem as pragas de roedores, como ajudam a regular o comportamento dos 5600 reclusos, oferecendo-lhes amor, afeto e aceitação.

Alguns dizem que, inicialmente, foram trazidos para eliminar os roedores. Outros afirmam que entraram pelas suas próprias patas.

Aquilo em que todos concordam, incluindo os que já vivem ou trabalham na maior prisão do Chile há mais tempo, é que os gatos chegaram primeiro.

Há décadas que atravessam os muros altos da prisão, apanham banhos de sol no telhado de metal e deambulam entre as celas lotadas com dez homens cada. Os guardas prisionais consideravam-nos um traço peculiar e, sobretudo, ignoravam-nos. Os gatos continuaram a multiplicar-se até serem centenas.

Foi então que os guardas prisionais perceberam outra coisa: os felinos residentes não eram apenas benéficos para o problema dos roedores. Eram-no também para os reclusos.

“São a nossa companhia”, afirmou Carlos Nuñez, um recluso, de calvície evidente, que dá a conhecer uma gatinha malhada de dois anos, que apelidou de Fea (em espanhol), ou Feia, por detrás das grades. Enquanto cuidava de inúmeros gatos ao longo da sua sentença de 14 anos por assalto, declarou que descobrira a essência especial dos gatos, comparável a um companheiro de cela ou até mesmo um cão.

“Um gato obriga-nos a nos preocuparmos com ele, a alimentá-lo, a dar-lhe atenção especial”, declarou. “Quando estávamos lá fora e éramos livres, nunca fizemos isto. Descobrimos isso aqui dentro.”

O recluso Carlos Nuñez e a sua gata, a Feia.
Cristobal Olivares/The New York Times

Conhecida simplesmente como “a Pen”, a penitenciária com 180 anos em Santiago, Chile, é há muito afamada como um lugar onde os homens vivem em jaulas e os gatos vagueiam livremente. O efeito positivo que os cerca de 300 gatos exercem sobre as 5600 pessoas residentes, atualmente, é entendido de forma mais clara.

A presença dos felídeos “mudou o humor dos reclusos, regulou o seu comportamento e reforçou o seu sentido de responsabilidade para com os seus deveres, em especial, cuidar de animais”, declarou a guarda prisional Coronel Helen Leal González, que tem dois gatos na sua própria casa, chamados Reina e Dante, bem como uma coleção de figuras de gatos na sua secretária.

“As prisões são lugares hostis”, acrescentou no seu escritório, com um visual que contempla um carrapito apertado, um bastão e botas de combate. “Por isso, quando um animal demonstra afeto e desperta esses sentimentos positivos, é natural que isso cause uma mudança no comportamento, uma alteração na mentalidade.”

Os reclusos adotam informalmente os gatos, cooperam entre si para cuidar deles, partilham a sua comida e camas e, em alguns casos, construíram-lhes pequenos abrigos. Em contrapartida, os gatos oferecem algo inestimável num local conhecido pelo seu excesso de população e condições degradantes: amor, afeto e aceitação.

“Às vezes, fico deprimido e ela sente que estou em baixo”, afirmou Reinaldo Rodriguez, 48 anos, cuja detenção deverá durar até 2031 no seguimento de uma condenação por utilização de arma de fogo. “Ela chega e cola-se a nós. Encosta o focinho dela no nosso rosto.”

Referia-se a Chillona, uma gata preta tranquila que conquistara o coração de nove homens numa cela apinhada com beliches. Rodriguez afirmou ter utilizado, juntamente com os seus companheiros de cela, uma taça com água para convencer Chillona a sair de um esconderijo depois de o seu anterior tutor ser transferido para outra secção da prisão.

“Aos poucos, começou a aproximar-se”, afirmou. “Agora é a dona desta cela. É ela que manda”.  Vários companheiros de cela alegaram que a sua cama era o lugar favorito da gata.

Cristobal Olivares/The New York Times

A junção de criminosos condenados e animais não é novidade. Durante a Segunda Guerra Mundial, os prisioneiros de guerra alemães em New Hampshire, nos Estados Unidos, adotaram animais selvagens, incluindo, segundo um relato, uma cria de urso.

Os programas formais de união de reclusos e animais tornaram-se mais vulgares no final da década de 1970 e, no seguimento de resultados consistentemente positivos, alargaram-se ao mundo inteiro, incluindo o Japão, os Países Baixos e o Brasil.

Tornaram-se particularmente populares nos Estados Unidos. No Arizona, os reclusos treinam cavalos selvagens para patrulhar a fronteira com o México. No Minnesota e no Michigan, os reclusos treinam cães destinados a cegos e surdos. E no Massachusetts, os reclusos ajudam a cuidar de animais selvagens feridos ou doentes, como falcões, coiotes e guaxinins.

Juntar reclusos e cães tem demonstrado, vez após vez, que leva à “diminuição da reincidência, melhoria da empatia, melhoria das competências sociais e uma relação mais segura e mais positiva entre reclusos e guardas prisionais”, afirmou Beatriz Villafaina-Domínguez, uma investigadora espanhola que analisou 20 estudos diferentes sobre esse tipo de programas.

Os cães são os animais mais utilizados nas prisões, seguidos pelos cavalos e, na maioria dos programas, os animais são levados até aos reclusos, ou vice-versa. Contudo, no Chile, os reclusos desenvolveram uma ligação orgânica com os gatos vadios com os quais coabitam.

Apesar de tudo, tempos houve em que a relação não era tão positiva. Há uma década, a população de gatos estava a aumentar descontroladamente e muitos deles estavam a adoecer, desenvolvendo até mesmo uma infeção contagiosa que deixou alguns cegos. A situação “causava stress até nos próprios reclusos”, declarou Carla Contreras Sandoval, uma assistente social que exerce funções na prisão e tem duas tatuagens de gatos.

Exposto o acima, em 2016, os guardas prisionais acabaram por permitir a presença de voluntários para cuidar dos gatos. Desde então, uma organização chilena denominada Fundación Felinnos tem trabalhado com a Humane Society International para recolher sistematicamente todos os gatos para os tratar, esterilizar e castrar. Atualmente, já alcançaram quase todos.

Segundo Sandoval, o sucesso do programa deve-se, em parte, aos reclusos, que recolhem os gatos que necessitam de cuidados e levam-nos até aos voluntários.

Recentemente, quatro mulheres levaram transportadoras de gato para o recinto prisional a fim de caçar alguns felinos, incluindo o Lucky, Aquila, Dropón e os seus seis novos gatinhos, bem como a gata de Nuñez, a Feia.

Do exterior chega ajuda para esterilizar e castrar os felinos.
Cristobal Olivares/The New York Times

O pátio estava um caos, apinhado de gente para uma partida de futebol entre reclusos, no entanto, estes cederam educadamente passagem às mulheres. Em breve, apareceram homens a embalar gatos nos braços tatuados a descer as escadas ao longo do pátio, passando os animais para os voluntários através das grades da prisão. Numa das passagens, Denys Carmona Rojas, 57 anos, um recluso que está a cumprir oito anos por porte ilegal de arma, acariciou uma ninhada de gatinhos numa caixa. Contou que tinha ajudado a criar muitos felinos na sua cela, relembrando um caso em que tivera de alimentar uma ninhada com suplemento para gatos porque a mãe deles morrera no parto.

“Dedicamo-nos ao gato. Cuidamos dele, mantemo-lo debaixo de olho, damos-lhe amor”, afirmou, sorrindo para exibir a falta dos dentes incisivos.
Tal como para os reclusos, as condições de vida dos gatos variam conforme a secção da prisão. Durante um período de recreio numa das áreas mais lotadas, onde 250 prisioneiros partilham 26 celas, os reclusos encheram uma passagem estreita, com roupas a secar por cima da cabeça e gatos a deambular entre os seus pés.

Eduardo Campos Torreblanca, que está a cumprir três anos pelo crime de roubo agravado, informou que todas as celas cuidavam de, pelo menos, um gato, mas que o seu gatinho havia morrido recentemente. “Era minúsculo, um bebé. Alguém o pisou”, afirmou.

Quando os voluntários chegaram pela primeira vez em 2016, encontraram quase 400 gatos, um número que não engloba as ninhadas de gatinhos nem uma grande colónia de felinos que vive, praticamente, no telhado. Atualmente, esse número tem vindo a diminuir gradualmente.

Porquê? Por exemplo, pensemos em Nuñez, o condenado por assalto a quem faltam dois anos para cumprir a sua sentença. Quando sair em liberdade, o que vai acontecer à sua gata, Feia? “Isso é fácil”, afirmou. “Vem comigo”.

Autor: JACK NICAS

Este artigo foi publicado originalmente em The New York Times.

Fonte:  https://www.dn.pt/4766360532/os-gatos-inundaram-a-prisao-em-seguida-os-reclusos-apaixonaram-se/

Nenhum comentário:

Postar um comentário