Por Isabel Clemente
— Foto: Unsplash
É possível escrever textos longos e enxutos
11/01/2024 06h00 Atualizado há um dia
Imagine que você vive num mundo onde as políticas de usos de dados são breves. Imagine que contratos são fáceis de compreender. Que bom seria se você jamais precisasse ler novamente um documento para entender seu conteúdo. Que você sequer tropeçasse numa palavra estranha, que seus ouvidos não arranhassem com jargões nem sua mente divagasse diante de um mar de ideias sobrepostas? Que maravilha seria viver.
Minha mãe dizia algo que, a princípio vai parecer uma desculpa esfarrapada, mas, com o tempo, enxerguei a sabedoria escondida. “A vida já é tão amarga, por que ficar sem um docinho?” A frase circula na minha casa até hoje como piada e passou a me inspirar sempre que deparo com textos impenetráveis: a vida já é tão complicada, por que tantos textos difíceis?
Semana passada compartilhei aqui sete dicas para aumentar as chances de seu texto ser lido por gente ocupada. Minha intenção foi chamar quem escreve à responsabilidade porque essa é a parte que nos cabe. Já escrevi também esta coluna, para a qual conversei com a Heloísa Fischer, pioneira da linguagem simples no Brasil, que vem fazendo a parte dela nessa batalha para a vida escrita não ser tão amarga.
Mas eu fiquei pensando que muita gente pode não se sentir obrigada a facilitar a vida de ninguém porque, em seu meio, as coisas são como são, ainda que elas não concordem 100% com essa regra não escrita. Pode incluir aí advogados, acadêmicos, médicos. O pessoal de seguro, TI. Por que uma “política de cookies” precisa ter páginas e páginas?
Isso normaliza o consentimento cego. Topamos sem ler. Em 2017, 22 mil pessoas concordaram em realizar mil horas de trabalho voluntário limpando banheiros públicos e desentupindo manualmente redes de esgoto para usar Wi-Fi de graça na Inglaterra. A pegadinha ficou no contrato de consentimento da empresa Purple durante duas semanas para provar que ninguém lê. A Purple também ofereceu um prémio para quem marcasse a cláusula de serviço comunitário. Só uma pessoa marcou. E ganhou.
Por Wi-Fi de graça o povo faz qualquer coisa de olhos fechados. Em 2014, outra empresa, esta de ciber-segurança, tinha oferecido sinal gratuito em troca do filho ou da filha primogênita da clientela. A cláusula não estava escondida não. Mesmo assim, não se sabe se por engano ou de propósito, seis pessoas concordaram.
Em 1º de abril de 2010, Dia da Mentira, a rede de lojas britânica GameStation inseriu uma cláusula previamente marcada em sua política de licenciamento. Por ela, usuários aceitavam entregar sua alma imortal. A pessoa precisava desmarcar a opção. A loja havia incluído uma outra cláusula para a pessoa livrar sua alma da transação e quem prestou atenção acabou ganhando um voucher. Tem umas histórias ótimas aqui.
As brincadeiras movimentaram o assunto durante um tempo, mas não nos livraram dos dois problemas dessa história. De um lado do ringue, pesando toneladas, contratos ilegíveis continuam sendo escritos; do lado escuro do tablado, roncando de tanta preguiça, pessoas avessas a textos maçantes. Quem perde essa luta?
Na tentativa de se livrar ao menos do rótulo de chatos, surgem tentativas. O termo de uso do Tumblr em inglês, por exemplo, traz em destaque, na parte da idade mínima obrigatória, o seguinte alerta:
“Você precisa ter a idade mínima para usar o Tumblr. Estamos falando sério: é uma regra rígida. ‘Mas eu tenho, tipo, quase idade suficiente!’, você diz. Não, desculpa. Se não tem idade suficiente, não use o Tumblr. Pede aos teus pais um Playstation 4, ou experimente livros.”
Espirituosos, porém prolixos. O texto é imenso.
A gracinha acaba quando entram em jogo questões de saúde, compra de imóveis, financiamentos. As pessoas assinam documentos que não entendem, que não leem ou que não entendem nem depois de lerem.
Os textos podem até ser longos, mas podem ser mais enxutos, de palavras e ideias. Você pode ler um texto breve tão entulhado de ideias que você termina de ler sem saber aonde o autor pretendia chegar. Ou o texto é desnecessariamente longo abordando questões que parecem não pertencer ao mesmo universo. O termo de concordância do ITunes da Apple diz que você não pode usar os produtos para desenvolver nenhuma atividade proibida nos EUA, incluindo a “produção de armas biológicas”. Precisava?
Talvez sim. Posso estar errada. Eu só queria que você eliminasse do seu texto desvios que te levem a falar de “apocalipse zumbi” quando o assunto principal for nutrição – a não ser que seja uma piada.
Em defesa desse texto técnico-jurídico, extenso e cheio de desvios de ideias, você pode argumentar que é preciso detalhar as informações, se proteger de processos, que a lei geral de proteção de dados exige, ou que você assinou sem ler um termo pelo qual se comprometeu a escrever de forma difícil e prolixa para sempre, como seus pares. Eu tenho uma notícia boa. Repare nessa frase tão comum: “Nosso site coleta e utiliza alguns dados pessoais seus”.
Se quer utilizar, antes tem que coletar. E, se vai coletar, só pode ser os dados de navegação (alguns) e não todos os dados da pessoa. Coletar vira então uma etapa redundante. O possessivo “seus” pressupõe que os dados só podem ser pessoais, até porque “termos de uso de dados de terceiros” não faz o menor sentido ali. Se trocar utilizar por um verbo menor, já teríamos em cinco palavras – “Nosso site usa seus dados” – o que antes estava dito em nove. Mantida a progressão, o texto final poderia encolher 45% sem prejudicar o conteúdo, oferecendo uma leitura mais fluida. Parece preciosidade, e é. Texto bom é um hub de preciosidades.
Claro que sempre é possível redigir um texto breve e confuso. Legibilidade é o que torna alguns textos mais fáceis de ler do que outros. E vai além da brevidade. Tem a ver com pertencimento. As partes (palavras, frases, ideias) pertencem porque contribuem com o todo. Se entraram na brincadeira só para atrapalhar a mensagem, estão sobrando.
Eu já trabalhei ao lado de gente capaz de fazer observações perspicazes sobre a arte de escrever. Infelizmente, não anotei. Teria um bom material. O que me veio à mente agora é uma lição de uma ex-editora da revista “Time” lida em algum livro.
“Toda palavra precisa conquistar seu espaço na frase, toda frase precisa ganhar seu espaço no parágrafo e toda ideia precisa ganhar seu espaço no texto.”
Se não fez por merecer, corte. Sem piedade.
Fonte: https://valor.globo.com/opiniao/isabel-clemente/coluna/por-um-mundo-mais-facil-de-ler.ghtml
Quando não ler a impressão fina pode custar a sua alma
8 de março de 2019 9:55 AM ET
O Matthew S. Schwartz (Tradução)
A maioria de nós ignora as letras miúdas. Mas uma mulher que não ganhou a si mesma 10.000 dólares. Outros se viram na extremidade perdedora de um contrato que não se preocuparam em ler.
Sofie Delauw/Getty Images/Cultura RF
Ninguém lê as letras miúdas. Mas talvez devessem.
O professor do ensino médio da Geórgia, Donelan Andrews, ganhou uma recompensa de US $ 10.000 depois que ela leu de perto os termos e condições que veio com uma apólice de seguro de viagem que ela comprou para uma viagem à Inglaterra. Squaremouth, uma companhia de seguros da Flórida, havia inserido um idioma prometendo uma recompensa para a primeira pessoa que enviou um e-mail para a empresa.
“Entendemos que a maioria dos clientes não lê contratos ou documentação ao comprar algo, mas sabemos a importância de fazê-lo”, disse a empresa. “Nós criamos a campanha Pays to Read ultra-secreta em um esforço para destacar a importância da leitura da documentação da política do início ao fim.”
Nem todas as empresas são tão generosas. Para demonstrar a importância de ler as letras miúdas, muitas empresas não dão; elas tomam. As cláusulas travessas tendem a aparecer de tempos em tempos, geralmente na Inglaterra atrevida.
Em 2017, 22.000 pessoas que se inscreveram para Wi-Fi público gratuito inadvertidamente concordaram com 1.000 horas de serviço comunitário – incluindo limpeza de banheiros e “aliviar bloqueios de esgoto”, informou o Guardian. A empresa, com sede em Manchester, disse que inseriu a cláusula em seu acordo "para ilustrar a falta de consciência do consumidor sobre o que eles estão se inscrevendo quando acessam o wifi gratuito".
Alguns anos antes, vários londrinos concordaram (presumivelmente inadvertidamente) em doar seu filho mais velho em troca de acesso Wi-Fi. Antes que eles pudessem entrar na Internet, os usuários tiveram que marcar uma caixa concordando em "atribuir seu primeiro filho filho para nós durante a eternidade". De acordo com o Guardian, seis pessoas se inscreveram, mas a empresa que fornece o Wi-Fi disse que a cláusula provavelmente não seria aplicável em um tribunal. “É contrário às políticas públicas vender crianças em troca de serviços gratuitos”, explicou a empresa.
E no Dia da Mentira em 2010, a varejista britânica GameStation inseriu uma nova cláusula em seu contrato de licença, com uma caixa de seleção já marcada. Se os usuários não desmarcaram a caixa, eles concordaram em conceder à GameStation "uma opção não transferível para reivindicar, por agora e para sempre, sua alma imortal". A GameStation disse que, se optasse por exercer a transferência da alma, serviria de aviso em letras de fogo de 1,80 m de altura.
Felizmente, a GameStation ofereceu uma maneira de sair dessa cláusula. "Se você a) não acredita que você tem uma alma imortal, b) já deu a outra parte, ou c) não deseja nos conceder tal licença, por favor, clique no link abaixo para anular esta sub-cláusula e prosseguir com a sua transação." Aqueles que clicaram no link foram recompensados com um voucher.
Outras empresas simplesmente se divertem com suas letras miúdas.
A maioria dos acordos on-line limita o uso por crianças menores de 13 anos, mas o acordo do Tumblr vai além, antecipando a reação de um pré-adolescente: "Mas eu estou, tipo, quase velho o suficiente!", você implora. Não, desculpe. Se você não tiver idade suficiente, não use o Tumblr. Pergunte aos seus pais para um Playstation 4, ou tente livros.
E em seu documento de diretrizes comunitárias, depois de alertar que a personificação não é permitida, o Tumblr elabora: “Enquanto você está livre para ridicularizar, paródia ou maravilhar-se com a beleza alienígena de Benedict Cumberbatch, você não pode fingir ser realmente Benedict Cumberbatch”.
Na Seção 57.10 do acordo da AWS da Amazon, as pessoas que usam o mecanismo de desenvolvimento de jogos “Lumberyard” da Amazon prometem não usá-lo para operar sistemas que possam colocar a vida de alguém em perigo, como aeronaves ou veículos autônomos. Até agora, tudo bem. A Amazon diz que a seção não se aplica, no entanto, se os EUA. Os Centros de Controle de Doenças certificam a existência de "uma infecção viral generalizada transmitida através de mordidas ou contato com fluidos corporais que faz com que cadáveres humanos reanime e procurem consumir carne humana viva, sangue, cérebro ou tecido nervoso e provavelmente resultará na queda da civilização organizada".
MailChimp é mais direto: "Não seremos responsabilizados por quaisquer atrasos ou falhas no desempenho de qualquer parte do Serviço, de qualquer causa além do nosso controle." Tais causas podem incluir “fogos, terremotos, acidentes nucleares” e “apocalipse zumbi”.
O acordo final do usuário do iTunes contém misteriosamente uma cláusula que proíbe seu uso para construir armas de destruição em massa. “Você não usará esses produtos para quaisquer fins proibidos pela lei dos Estados Unidos, incluindo, sem limitação, o desenvolvimento, projeto, fabricante ou produção de armas nucleares, de mísseis ou químicas ou biológicas”, diz o acordo.
Mensagem do Patrocinador
Não está claro como se pode usar o iTunes para construir tais armas.
Então foi assim que o levaram. Kim Jong-un usa um iMac, então provavelmente o iTunes também... Isso deve ser o que Trump quis dizer quando falou sobre a Coréia do Norte já concordando com a desnuclearização total antes da cúpula. pic.twitter.com/sWMXkypux0
— Kasperi Summanen (?_Ksummanen) 12 de Junho de 2018
Alguns recuaram pushed backem termos e condições onerosos que “ninguém lê” ainda “continuam a ser a espinha dorsal legal da internet”. Em um editorial no mês passado, o The New York Times criticou o que chamou de “ficção legal do consentimento”, sugerindo que as pessoas assinaram involuntariamente seus direitos de privacidade para grandes empresas de Internet.
“Os americanos merecem fortes proteções de privacidade”, escreveu o conselho editorial. “O consentimento não é suficiente para substituí-los. Os cliques que passam para o consentimento são desinformados, não negociados e oferecidos em troca de serviços que muitas vezes são necessários para a vida cívica.
Tradução feita pelo Google tradutor.
Fonte: https://www.npr.org/2019/03/08/701417140/when-not-reading-the-fine-print-can-cost-your-soul
Nenhum comentário:
Postar um comentário