David Le Breton*
Em ensaio exclusivo para o 'Aliás', antropólogo francês discute as fronteiras entre o silêncio e o barulho na modernidade
O barulho é um som de valor negativo, uma agressão ao
silêncio ou simplesmente à tranquilidade necessária à vida em comum.
Causa um incômodo àquele que o percebe como um entrave a seu sentimento
de liberdade e se sente agredido por manifestações que não controla e
lhe são impostas, impedindo-o de repousar e desfrutar sossegadamente de
seu espaço. Traduz uma interferência dolorosa entre o mundo e o eu, uma
distorção da comunicação em razão da qual as significações se perdem e
são substituídas por uma informação parasita que provoca desagrado ou
aborrecimento. O sentimento do barulho surge quando as sonoridades
ambientes perdem sua dimensão de sentido e se impõem como uma agressão
irritante, da qual não há como se defender. Mas o sentimento do barulho
põe em relevo, antes de mais nada, um contexto social e a interpretação
que o indivíduo faz do ambiente sonoro em que se encontra. Às vezes, o
mesmo som é inversamente percebido por outra pessoa como um invólucro
sonoro que lhe é indiferente. O barulho não tem objetividade; trata-se
de mera sensibilidade individual.
No limite, o barulho constante das ruas, absorvido pelo indivíduo
como algo alheio a sua influência, acaba sendo abafado, ao passo que os
excessos sonoros dos vizinhos são percebidos como indesejáveis e como
violações da intimidade pessoal. O barulho é uma zona sensível da
sociabilidade. Na França, muitas das queixas registradas nas delegacias
de polícia referem-se a conflitos entre vizinhos em torno da questão do
barulho: televisão, rádio, dispositivos musicais em volume alto, festas
noturnas, etc., que invadem a intimidade. A vítima do barulho se sente
expulsa da própria casa, invadida, seu espaço interior destruído. Ela é
forçada a recuar até suas últimas trincheiras, e o barulho se impõe
então como uma forma insidiosa de violência. E, reagindo a essa sensação
de estar sendo atormentada, vez por outra a vítima toma uma atitude
radical. Muitos incidentes que chegam às páginas dos jornais, um dos
mais recentes ocorrido em São Paulo, atestam isso, e o fenômeno está
presente em diversas sociedades: os homens (nunca, ou quase nunca, as
mulheres) sentem-se incomodados com o barulho e, sem conseguir
sensibilizar os vizinhos e fazer com que abaixem o som, acabam pegando
uma arma e atirando contra eles ou contra os arruaceiros que teimam em
ficar escutando música no último volume bem embaixo de sua janela, às
vezes em plena madrugada. Uma violência responde à outra, mas sem
nenhuma nuance, traduzindo, todavia, o sentimento de impotência da
pessoa que se encontra à mercê do barulho e também seu sentimento de não
poder suportar tamanha invasão de si. O conto de Kafka A Construção
ilustra muito bem essa violência do barulho que acaba por tornar
impossível qualquer repouso, inviabilizando mesmo a própria existência.
Mas os barulhos produzidos por nós mesmos não são percebidos como
incômodo: eles têm um sentido. Quem faz barulho são sempre os outros.
O sentimento do barulho se difundiu sobretudo com o nascimento da
sociedade industrial – e a modernidade o intensificou de maneira
desmesurada. O desenvolvimento técnico caminhou de mãos dadas com a
penetração ampliada do barulho na vida cotidiana e com uma crescente
impotência para controlar os excessos. Novos sons adentraram os
apartamentos com o rádio, a televisão, os eletrodomésticos, o telefone,
os aparelhos cada vez mais possantes de reprodução musical, etc. E isso
no interior de apartamentos ou casas que não foram projetados para
represar esses ruídos, sem os impor à vizinhança, degradando assim a
tranquilidade do lar. Do mesmo modo, as casas suportam mal as
infiltrações sonoras provenientes das ruas adjacentes. Embora sejamos
capazes de abstrair os outros sentidos, espantando um odor ou fechando
os olhos diante de um espetáculo pouco agradável, a audição resiste a
tudo. O sentimento do barulho é a consequência disso.
À profusão de barulhos produzidos pela cidade, à circulação
incessante dos automóveis, nossas sociedades acrescentam novas fontes
sonoras com os televisores ligados e a música ambiente que toca no
interior das lojas, dos cafés, dos restaurantes, dos aeroportos, etc.,
como se fosse preciso afogar permanentemente o silêncio em lugares onde a
palavra se troca no interior de um universo de sons que ninguém escuta,
que enervam às vezes, mas que teriam o benefício de emitir uma mensagem
tranquilizante. Antídoto ao medo difuso de não se ter o que dizer,
infusão acústica de segurança cuja súbita ruptura provoca um desconforto
redobrado. A música ambiente tornou-se uma arma eficaz contra certa
fobia do silêncio. Esse persistente universo sonoro isola as conversas
particulares ou encobre os devaneios, confinando cada um em seu espaço
próprio, equivalente fônico dos biombos que encerram os encontros em si
mesmos, criando uma intimidade pela interferência sonora assim forjada
em torno da pessoa.
A modernidade inventou a constância da sonoridade e a capacidade de
propagá-la por meio de alto-falantes. O sujeito que não suporta o
silêncio tem a oportunidade de recorrer, na totalidade de fatos e gestos
da vida cotidiana, a um ruído de fundo. Ao chegar em casa, pode ligar
seu rádio ou sua televisão, pode assistir um vídeo ou escutar uma fita
cassete ou um CD. O barulho tem um efeito narcótico tanto no interior do
apartamento, como no meio da rua, ele tranquiliza quanto à permanência
de um mundo sempre incólume. Projeta uma linha de audição controlável e
reconhecível, à maneira de uma tela que põe fim à turbulência e à
profundidade perturbadora do mundo.
Nossas cidades são particularmente vulneráveis às agressões sonoras. O
barulho se propaga e atravessa grandes distâncias. As operações de
liquidação do silêncio abundam. Não são deliberadas, mas agregam os
barulhos do meio urbano ou simplesmente técnico; sitiam os lugares ainda
preservados, incultos, abandonados à pura gratuidade da meditação e do
silêncio. A modernidade assinala uma tentativa difusa de saturação do
espaço e do tempo por uma emissão sonora sem fim. Sendo uma zona não
explorada, em estado de suspensão, livre de uso, o silêncio provoca uma
reação de preenchimento, de animação, que tem por intuito dissolver a
provocação do "inútil" por ele acobertada. Pois, aos olhos de uma lógica
produtiva e comercial, o silêncio não serve para nada, ocupa um tempo e
um espaço que poderiam se beneficiar de um uso mais rentável. Para a
modernidade, o silêncio é um resíduo à espera de utilização mais
lucrativa, assemelha-se a um terreno baldio no centro da cidade,
representa uma espécie de desafio lançado ao imperativo de torná-lo
rentável, de fazê-lo retribuir com uma utilidade qualquer, pois,
enquanto não o faz, o silêncio é pura perda. Anacrônico, um domínio onde
o barulho ainda não penetrou, o silêncio é um arcaísmo que precisa
encontrar seu remédio. Soa como uma pane ensurdecedora do sistema. O
silêncio é um resto, aquilo que o barulho ainda não conseguiu invadir ou
degradar, aquilo que os meios ou as consequências das técnicas ainda
poupam.
O contexto barulhento de nossas sociedades e a transformação que as
sensibilidades coletivas sofreram nesse aspecto ao longo dos últimos
anos induzem a uma irritação crescente com o barulho. Uma legislação
mais atenta o regulamenta e procura contê-lo dentro de limites precisos.
A intenção é proteger os que trabalham em ambientes sonoros insalubres
ou manipulam ferramentas barulhentas, atenuar os ruídos dos canteiros de
obras a fim de reduzir a poluição sonora para os habitantes das
redondezas, regular a circulação de cargas nas cidades, restringindo-a a
horários específicos, oferecer uma estrutura jurídica capaz de lidar
com os conflitos entre vizinhos quando da utilização imprópria de
instrumentos sonoros ou da ocorrência de manifestações inconvenientes
(algazarra noturna, por exemplo). Nos planos de urbanismo é maior a
preocupação em estabelecer zonas de silêncio. As pessoas com frequência
se mobilizam contra projetos envolvendo a construção de estradas,
aeroportos, etc., que desfigurariam a acústica de um determinado lugar. E
a legitimidade social de tais reivindicações já não sofre muita
objeção. O direito ao conforto acústico (a preservação de parte do
silêncio) tornou-se uma zona sensível da sociabilidade, um valor unânime
em resposta à amplificação ambiental do barulho. O mais extraordinário é
que, assediado de todos os lados, o silêncio pouco a pouco se tornou
uma referência comercial de peso na promoção de produtos, regiões e
passeios turísticos. As empresas e as agências publicitárias também se
deram conta da necessária valorização do silêncio numa vida cotidiana
perseguida pelo barulho.
Atualmente, valorizamos o silêncio do motor de um carro, dos
eletrodomésticos, dos cortadores de grama, etc. O argumento é um eficaz
recurso de marketing. O setor de insonorização cresceu muito nos últimos
anos. As pessoas isolam acusticamente os apartamentos, os escritórios,
os ateliês... Não se tolera mais que o motor do carro, do avião ou do
trem atrapalhem as conversas. Cada um se esforça, em princípio, para
reduzir suas produções sonoras e espera, em retribuição, que os vizinhos
tenham a mesma preocupação. O silêncio torna-se riqueza moral,
comercial, turística, ecológica, etc. Espécie em vias de extinção, seu
preço sobe diariamente e mobiliza uma atitude de preservação mais ou
menos eficaz e interessada. Por outro lado, centenas de milhões de
pessoas que gostam de caminhar na natureza deixam as cidades em busca de
paz, de silêncio, de conversas, de descobertas, de lentidão. Querem
deixar para trás o barulho e os ritmos que lhes são impostos na vida
atual, encontrando, por fim, o apaziguamento e a interioridade. / Tradução de Alexandre Hubner
------------------------
* David le Breton é professor de sociologia na Universidade de Estrasburgo (França). Autor, entre outros, de Du Silence (Métailié). Suas últimas obras traduzidas no Brasil foram Antropologia do Corpo e Modernidade (Vozes), As Paixões Ordinárias (Vozes) e Adeus ao Corpo (Papirus). Escreveu este ensaio especialmente para o Aliás.
Fonte: Estadão on line, 01/06/2013
Nenhum comentário:
Postar um comentário