Ivo Lesbaupin*
“Licença para matar”
Desde o início deste governo, foi concedida publicamente – de forma
subliminar, indireta, não explícita – uma “licença para matar”.
No Brasil não há pena de morte na lei, mas, na prática, todos os
dias, nas periferias das cidades e no campo, jovens negros e negras,
LGBTQI, lideranças e membros de povos indígenas, são mortos pela
polícia, por milícias, por jagunços ou por particulares. No caso dos
jovens periféricos, basta a justificativa de serem suspeitos de ligação
com o tráfico de drogas.
Um primeiro sinal da atitude de Bolsonaro frente ao assassinato de
adversários surgiu quando da execução, em março de 2018, da vereadora do
PSOL Marielle Franco – negra, favelada, defensora dos direitos humanos,
da população LGBTQI. Todos os demais pré-candidatos às eleições se
posicionaram contrários ao assassinato, enquanto Bolsonaro ficou em
silêncio. Semanas depois, em entrevista ao jornal O Globo,
Bolsonaro declarou: “Para a democracia, não significa nada. Mais uma
morte no Rio de Janeiro e temos que aguardar a investigação” (https://oglobo.globo.com/brasil/caso-marielle-presidenciaveis-comentam-morte-de-vereadora-22619562).
A “licença para matar” veio sendo subliminarmente pregada durante a
campanha presidencial de 2018, quando a liberação da posse e do porte de
armas foi a principal proposta do candidato Bolsonaro. Seus discursos
foram marcados pelo ódio aos adversários, para os quais reservava o
exílio, a prisão, a tortura ou a morte. Como no discurso dirigido aos
seus apoiadores na Avenida Paulista, às vésperas do segundo turno, em
21/10/2018:
“Só que a faxina agora será muito mais ampla. (…) Ou vão pra fora
ou vão pra cadeia. Esses marginais vermelhos serão banidos de nossa
pátria.
Petralhada, vai tudo vocês pra ponta da praia [local clandestino de tortura e execução na época da ditadura militar].
Será uma limpeza nunca visto (sic) na história do Brasil.
Vocês, petralhada, verão uma polícia civil e militar, com retaguarda jurídica pra fazer valer a lei no lombo de vocês”.
Neste período, houve vários casos de eleitores de outros candidatos agredidos – eventualmente, mortos, como Mestre Moa do Katendê – por apoiadores de Bolsonaro.
Após a posse, em janeiro, o novo governante destacou-se por jamais
tomar posição contra eventuais agressões físicas ou assassinatos
cometidos pela polícia, pelas Forças Armadas, por milicianos ou por
particulares contra povos indígenas, negros/as, mulheres, membros da
população LGBTQI, habitantes de bairros periféricos ou favelas e
adversários políticos.
Recentemente, o massacre na favela de Paraisópolis, em São Paulo,
mostrou o grau de discriminação e de desprezo da polícia contra os
moradores destas comunidades, um modo de agir que também tem sido
característico do Rio de Janeiro no atual governo estadual.
Diante da chacina ocorrida em uma unidade prisional de Altamira
(Pará) em julho deste ano, onde 58 presos foram mortos, em resposta à
pergunta de um jornalista Bolsonaro preferiu evitar um posicionamento,
dizendo: “pergunta para as vítimas dos que morreram lá o que eles acham”
(https://extra.globo.com/noticias/brasil/pergunta-para-as-vitimas-dos-que-morreram-la-que-eles-acham-diz-bolsonaro-sobre-massacre-em-presidio-do-pa-23842190.html).
Um caso notório foi a morte de um músico confundido com um bandido
por militares no Rio de Janeiro, em abril: seu carro, no qual viajava
com a família, recebeu 80 tiros. Um catador que foi ajudar a família
também foi morto. As Forças Armadas não pediram desculpas e o presidente
defendeu o Exército, tratando o caso como um mero “incidente”.
Mas, em termos de alvo preferencial, foram os povos indígenas as
principais vítimas: desde invasão de terras, atentados, agressões até
assassinatos – alguns com características hediondas (como
esquartejamento). O governo federal tem responsabilidade direta sobre
este comportamento discriminatório e hostil em virtude de seu discurso
não reconhecer qualquer direito a estes povos e mesmo estimular o ódio
contra eles.
Não é a primeira vez que indígenas são assassinados, mas é a primeira
vez que isso ocorre com respaldo oficial. Nenhuma recriminação,
denúncia ou protesto veio da parte da autoridade máxima do país em
relação a estes crimes.
Não temos dados suficientes para todo o Brasil, mas “os casos de
feminicídio aumentaram 44% no 1º semestre de 2019 no estado de São Paulo
se comparados ao mesmo período do ano anterior, de acordo com
levantamento feito pelo G1 e pela GloboNews” (https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2019/08/07/casos-de-feminicidio-aumentam-44percent-no-1o-semestre-de-2019-em-sp.ghtml).
Uma frase, em particular, do discurso da Avenida Paulista, é significativa do que viria depois: “Vocês (…) verão uma polícia civil e militar, com retaguarda jurídica pra fazer valer a lei no lombo de vocês”. Estava
ali prenunciada a fórmula do “excludente de ilicitude” que iria
integrar o projeto anticrime do ministro da Justiça Sérgio Moro. Seria
uma forma de proteger a polícia em casos de violência. Felizmente, até
agora, não foi aprovado pelo Congresso.
Pouco tempo depois de iniciado o governo, algumas personalidades
políticas – é o caso do ex-deputado Jean Wyllys e da escritora Marcia
Tiburi – decidiram pelo exílio para evitar a concretização das ameaças
de morte que estavam recebendo. O governo não ofereceu nada para
garantir a vida destas pessoas. Era uma forma de dizer que os possíveis
agressores estariam protegidos.
O país deixou de ser um lugar seguro para boa parte de seus cidadãos
(sejam indígenas, negros/as, LGBTQI, mulheres, sejam aqueles que não
pensam como ou não apóiam o governo): os direitos civis não estão
garantidos. O artigo 3° da Declaração Universal dos Direitos Humanos não
é compromisso do governo brasileiro atual: “Todo indivíduo tem direito à
vida, à liberdade e à segurança pessoal”.
Desrespeito aos direitos humanos
O desrespeito aos direitos humanos não se limitou à disseminação do
ódio. Os ataques contra as universidades, a cultura, as artes, cresceram
desde o começo do governo.
A suspeição sobre as universidades não teve início em 2019, vieram
antes. Em 2017, cinco universidades federais foram vítimas de invasões
policiais: a Universidade Federal de Santa Catarina, cujo reitor, Luiz
Carlos Cancellier, e mais 6 pessoas foram presas em 14 de setembro, por
ordem de uma delegada da Polícia Federal, por suposta prática de
improbidade administrativa. 105 policiais foram empregados para
prendê-los. O reitor foi preso com seus colegas e passaram por um ritual
humilhante de encarceramento. Ao ser solto no dia seguinte, graças a
habeas corpus, foi proibido de entrar na sua própria universidade. Dias
depois, se suicidou.
Dois anos e três meses depois da operação da Polícia Federal, em
julho de 2019, o Ministério Público Federal ofereceu uma denúncia contra
13 pessoas, dentre as quais não se encontrava o reitor. Até hoje,
ninguém foi responsabilizado pela sua morte.
As outras universidades alvo de operação policial foram a
Universidade Federal do Paraná, a Universidade Federal de Juiz de Fora, a
Universidade Federal do Triângulo Mineiro e a Universidade Federal de
Minas Gerais.
Às vésperas do 2º turno das eleições presidenciais, entre os dias 23 e
26 de outubro de 2018, 13 universidades públicas de diferentes estados
foram objeto de ações policiais, algumas a mando do TRE local, a partir
de denúncias de correligionários da campanha de Bolsonaro ou para
retirar faixas expressando repúdio ao fascismo.
Os ministros da Educação do governo Bolsonaro, tanto Ricardo Vélez,
que ficou apenas três meses no cargo, mas sobretudo Abraham Weintraub,
mostraram-se críticos à universidade pública. Weintraub atribuiu às
universidades federais toda sorte de malfeitos, inclusive produção de
drogas alucinógenas – sem qualquer prova.
E sistematicamente declara seu desprezo em relação aos professores. A
recente chamada pública para denúncias de estudantes contra professores
nas escolas nos faz relembrar práticas dos totalitarismos estalinista,
nazista e fascista.
A cultura é outro campo que sofre sucessivos ataques por parte dos
membros do governo. De um lado, as verbas públicas para a produção de
eventos culturais são reduzidas, as leis de apoio à cultura são
criticadas, de outro lado, artistas de todo tipo, inclusive os
reconhecidos pelo público, são desrespeitados e difamados por
autoridades ou por apoiadores do governo, em ataques virtuais massivos
(“milícias digitais”) – sem que o governo saia em defesa dos artistas.
Além disso, produções culturais são alvo de censura ou sofrem ameaças,
em alguns casos levando os organizadores a suspender o espetáculo por
falta de segurança.
Em resumo: as liberdades de opinião, de pensamento e de expressão não estão garantidas.
Reuniões e debates públicos vêm sendo alvo de variadas formas de
“espionagem”, com policiais ou militares filmando ostensivamente tais
eventos, como meio de intimidação dos presentes e/ou dos participantes
das mesas, inclusive dentro de universidades.
Por outro lado, multiplicam-se casos de arbitrariedade policial ou
por parte de órgãos do judiciário local contra pessoas ou grupos
defensores dos direitos humanos, ambientalistas, membros de ONGs ou de
movimentos sociais. Foi o que aconteceu com militantes do MTST de São
Paulo, que foram arbitrariamente presos por vários meses. Assim como
ocorreu recentemente a prisão de quatro brigadistas anti incêndio em
Alter do Chão (Santarém, Pará), acusados, sem provas, de provocarem
queimadas na floresta.
“Fake news”
A campanha eleitoral de 2018 foi marcada por uma utilização fenomenal
de falsas notícias para difamar o candidato adversário. Os dados
levantados até agora por alguns jornais e pela CPMI das “fake news”
mostram que se tratou de uma produção massiva. Mas precisamos de dados
mais precisos para comprovar isto. No entanto, parece não haver
interesse dos principais órgãos responsáveis para investigar este crime
que, pelo que sabemos, não foi interrompido após as eleições.
Mas não precisamos ir tão longe. As falsas notícias têm sido usadas
diariamente pelo presidente e por ministros do governo para atacar seus
adversários, a oposição, jornalistas e mesmo antigos correligionários,
assim como para evitar as críticas feitas ao próprio governo. Tais
acusações são feitas sem qualquer responsabilidade, pois dispensam
apresentação de provas, sequer indícios. Para citar um único exemplo: a
acusação de que eram ONGs as responsáveis pelas queimadas na Amazônia ou
que o ator Leonardo Di Caprio financiava tais empreitadas.
Semear a dúvida, espalhar confusão, desprestigiar a busca da verdade,
confundir os cidadãos, tem sido uma marca constante deste governo.
Transparência e publicidade das ações é o que menos se tem verificado.
Processos contra adversários correm céleres enquanto aqueles envolvendo
pessoas próximas ao presidente são extraordinariamente lentos.
Liberdade de opinião e de expressão
A liberdade de imprensa é frequentemente questionada pelo presidente,
toda vez em que é objeto de alguma reportagem ou notícia crítica. O
governo utiliza métodos de cerceamento e ameaça, especialmente através
de medidas que possam atingir o financiamento dos meios de comunicação.
Esta postura já estava anunciada no discurso de 21 de outubro de 2018:
“Sem mentiras, sem fake news, sem Folha de S.Paulo. (…) A Folha
de S.Paulo é o maior (sic) fake news do Brasil. Vocês não terão mais
verba publicitária do governo”.
O presidente, durante toda a sua trajetória política, sempre defendeu
a ditadura civil-militar de 1964-1985, nunca fez autocrítica deste
período tenebroso da história do país, assim como sempre defendeu a
tortura, reverenciando como herói um dos maiores torturadores daquela
época. Neste primeiro ano de governo, não poucas vezes, defendeu
ditadores de outros países, como o General Pinochet (cf. “Bolsonaro
exalta ditadura de Pinochet e ataca pai de Michelle Bachelet” – http://g1.globo.com/globo-news/estudio-i/videos/t/todos-os-videos/v/bolsonaro-exalta-ditadura-de-pinochet-no-chile-e-ataca-pai-de-michelle-bachelet/7896867/).
Em fevereiro, em viagem à fronteira do Brasil com o Paraguai, Bolsonaro
tratou o ditador Alfredo Stroessner como um “estadista” e afirmou:
“aqui está minha homenagem ao nosso general Alfredo Stroessner” (https://brasil.elpais.com/brasil/2019/02/26/internacional/1551213499_127441.html).
Nas últimas semanas, a possibilidade de reinstituir o AI-5 (Ato
Institucional no. 5, de 13 de dezembro de 1968) foi aventada várias
vezes, inclusive por um filho do presidente, Eduardo Bolsonaro, e pelo
Ministro da Economia, Paulo Guedes. É possível que as grandes
manifestações em defesa de direitos que ocorreram em vários países da
América Latina e Caribe – Equador, Chile, Colômbia, Bolívia, Haiti,
Porto Rico –, na França, assim como a vitória de um governo progressista
nas eleições argentinas, tenham deixado membros do governo inseguros,
com receio de que manifestações semelhantes também ocorram por aqui.
Não estamos numa ditadura, mas há medidas e sinais cada vez mais
evidentes de autoritarismo por parte do governo. Não estamos tranqüilos,
muitos de nossos direitos não estão garantidos e estamos constatando
uma nítida escalada neste processo.
Em dois livros publicados no ano passado, os autores – cientistas
políticos – escrevem sobre: “Como as democracias morrem” e “Como a
democracia chega ao fim”. Segundo eles, isto pode ocorrer quando líderes
políticos autoritários, mesmo eleitos democraticamente, tomam medidas
que na prática suprimem direitos e garantias democráticas e inviabilizam
a liberdade de oposição (de opinião, de imprensa, de manifestação, de
expressão artística, etc.).
A sociedade civil tem se manifestado a todo momento, há protestos e
posicionamentos freqüentes de defensores dos direitos humanos, de
ambientalistas, de movimentos de mulheres, de povos indígenas, do
movimento negro/e quilombolas, de estudantes, professores e outras
categorias. Mais que nunca, temos de deixar clara nossa oposição a
qualquer forma de restrição da democracia e dos valores democráticos.
Mas, se as instituições que deveriam defender a democracia e
denunciar as arbitrariedades em curso não o fizerem com a firmeza e a
clareza que o momento exige, pode ser que amanhã seja tarde demais.
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* Doutor em Sociologia pela Universidade de Toulouse-Le-Mirail, França,
Fonte: http://iserassessoria.org.br/a-escalada-autoritaria-do-governo-bolsonaro/
https://pethistoriaufpr.wordpress.com/2019/03/31/nota-do-pet-ditadura-nunca-mais/
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