Marta Arretche*
O
conceito de classe média pode sinalizar uma definição sociológica mais
ampla ou mera estatística. Mas é urgente pensar a condição das pessoas
incluídas nessa categoria
É estável um arranjo político (qualquer que seja) sem o apoio da classe média?
Sem
chance, responderiam muitos cientistas políticos, sem titubear: a
estabilidade da democracia depende da existência de uma ampla classe
média. Melhor posicionadas que os mais pobres, as classes médias possuem
recursos políticos para vigiar (e também derrubar) os governos.
Assume
ser verdadeiro esse mecanismo a interpretação que postula que,
contemporaneamente, as ameaças à democracia viriam do apoio das classes
médias ao populismo autoritário de direita. As vitórias eleitorais de
Donald Trump e Boris Johnson derivariam das ameaças concretas à
segurança econômica experimentada no pós-Segunda Guerra por essa parcela
dos eleitores. Ao perder empregos e renda para os prósperos (e menos
remunerados) trabalhadores asiáticos, a classe média das democracias
avançadas seria presa fácil à mobilização do medo e a promessas de
difícil realização.
Das manifestações de junho de 2013 no Brasil
ao Chile de Sebastián Piñera, passando por Hong Kong e a França de
Macron, atribui-se às classes médias o poder de desestabilizar governos.
Os mais saudáveis indicadores de prosperidade econômica não seriam
suficientes para impedir as manifestações de descontentamento.
Um clássico da literatura sobre proteção social, “The three worlds of welfare capitalism”, de
Gösta Esping-Andersen, publicado em 1990, demonstrou que a estabilidade
desses sistemas dependeria do suporte das classes médias. Estas votam
contra o modelo americano, que privilegia a atenção focalizada nos
pobres, porque se percebem pagando duas vezes: para os outros ao pagar
impostos e para si mesmas ao comprar serviços privados. A estabilidade
do modelo social-democrata, por sua vez, viria de sua capacidade de
garantir serviços de qualidade à classe média, que paga impostos para
receber serviços universais de volta.
Se a estabilidade de qualquer projeto político depende do apoio da classe média, então políticas que protejam apenas os mais pobres não trarão estabilidade política ao Brasil
Se tudo isso é
verdade — e há pesquisa empírica sólida dando suporte a essas
interpretações —, seria bem, bem prudente para qualquer projeto político
que se pretenda estável não ignorar os anseios das classes médias.
O
fato, contudo, é que o conceito de classe média é bem, bem impreciso.
Pode variar de um estilo de vida em que empregos estáveis, rendas
elevadas, propriedade de imóvel e carro e consumo de bens culturais
estão combinados na vida de um estrato social, até uma categoria
econômica bem simples: a parte da população que está situada no meio da
escala de distribuição contínua da renda.
A distinção está longe
de ser trivial. A primeira definição é sociológica: pretende descrever
uma camada da população cujos hábitos e crenças derivam da condição de
estar protegida contra a insegurança econômica. A segunda é meramente
estatística: os indivíduos de uma população estão ordenados do mais
pobre para o mais rico. A classe média é intermediária, isto é, tem mais
renda que os mais pobres e menos renda que os mais ricos. Simples
assim. Essa condição meramente posicional nada diz, entretanto, sobre
sua condição de vida.
Vejamos, por exemplo, o caso brasileiro. O
gráfico abaixo apresenta a escala contínua da distribuição da renda,
ordenada dos domicílios mais pobres para os mais ricos, no ano de 2018.
Os valores indicam a renda domiciliar per capita de cada vintil (que
corresponde ao ponto de corte do todo em 20 parcelas de igual tamanho
populacional). Os números incluem todas as rendas obtidas pelos
domicílios: além dos ganhos no mercado de trabalho, incluem os gastos
governamentais, tais como Bolsa Família, as aposentadorias, o
seguro-desemprego, aluguéis, aplicações financeiras etc.
Por incrível
que possa parecer, sabemos, com base nos trabalhos de Pedro Herculano
de Souza e Marcelo Medeiros, que a renda do topo do vigésimo mais rico
deve ser lida com extrema cautela, pois a fonte deste dado – a PNAD
Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua) – não
capta adequadamente a renda dos muito ricos. A subestimação desses
valores seria importante se estivéssemos tratando de desigualdade. Ao
subestimar as rendas dos mais ricos estaríamos, como bem mostraram estes
autores, também subestimando os níveis de desigualdade.
Entretanto,
para além da desigualdade, deveria ser objeto de nossas preocupações a
condição econômica das categorias (que bem frouxamente) chamamos de
classes médias no Brasil. A não ser que se possa demonstrar que uma
renda domiciliar per capita de cerca de R$ 2 mil reais — o que posiciona
um domicílio entre os 20% mais ricos — protege uma família contra a
insegurança econômica, parece cristalino que a classe média no Brasil
não corresponde àquela à qual se referem nossos colegas que estudam as
economias desenvolvidas.
De qualquer modo, a condição específica
da classe média brasileira não a torna potencialmente menos explosiva.
Se a estabilidade de qualquer projeto político depende do apoio da
classe média, então políticas focalizadas, que protejam apenas os mais
pobres, não trarão estabilidade política ao Brasil. O desafio de nossa
estratégia de redução das desigualdades requer pensar nos 80% mais
pobres.
Marta Arretche é
professora titular do Departamento de Ciência Política da USP e
diretora do Centro de Estudos da Metrópole. Foi editora da “Brazilian
Political Science Review” (2012-2018) e pró-reitora adjunta de pesquisa
da USP (2016-7). É graduada em ciências sociais pela UFRGS, fez mestrado
em ciência política e doutorado em ciências sociais pela Unicamp, e
pós-doutorado no Departamento de Ciência Política do Massachussets
Institute of Technology, nos EUA. Foi visiting fellow do Departament of
Political and Social Sciences, do Instituto Universitário Europeu, em
Florença.
Escreve mensalmente às sextas-feiras.
Imagem da Internet
Fonte: https://www.nexojornal.com.br/colunistas/2019/Precisamos-falar-sobre-a-classe-m%C3%A9dia
Nenhum comentário:
Postar um comentário