Yuval Noah Harari* é um historiador ambicioso: dois de seus livros publicados no Brasil, Homo Sapiens e Homo Deus, levam, respectivamente, os seguintes subtítulos: Uma Breve História da Humanidade e Uma Breve História do Amanhã. No mundo todo, seus títulos foram traduzidos para mais de 50 línguas e venderam mais de 20 milhões de cópias.
O
israelense esteve no Brasil em novembro para uma série de eventos e
entrevistas, oportunidade em que a reportagem se encontrou com ele.
Vestido em tons claros e com óculos de aros finos, com um timbre seguro
na voz, Harari aparenta se sentir à vontade falando tanto do passado
quanto do futuro.
Em
relação ao clima, acredita que ainda há possibilidades para o mundo,
mas que para realizá-las é necessário um esforço de cooperação global.
Sobre os Estados Unidos de Trump, ele critica a posição do presidente
por decidir se afastar da liderança do mundo livre num momento crítico
da história econômica mundial, provavelmente, nas suas palavras, à beira
de uma nova crise do sistema financeiro. Sobre o futuro econômico e
político, se preocupa muito com os “não empregáveis” (“unemployables”), a
força de trabalho de países em desenvolvimento e pobres que não terão
condições de se adaptar às novas realidades em que a automação será cada
dia mais protagonista. Ele falou ao Estado sobre esses e outros assuntos.
Em Homo Deus,
você sugere que as coisas estão se movendo tão rápido que é
virtualmente impossível saber o que vai acontecer no futuro. Mas com o
clima, cientistas têm uma ideia sólida, e mesmo assim é muito difícil
convencer alguns governos sobre esse assunto. Por que é tão complicado?
Os governos não querem. Demanda muito capital político e investimentos para mudar o curso (dos acontecimentos em relação ao clima).
É possível, não acho que seja tarde demais. Há muitas coisas que
podemos fazer mas, para fazê-las, é preciso mudar o rumo da economia com
uma colaboração global maior. Uma vez que a mudança climática é
reconhecida como realmente perigosa, também é necessário reconhecer que é
preciso uma cooperação global. Não é algo que apenas um governo possa
fazer. As pessoas de extrema direita, e gente como Trump, são contra a
cooperação. Eles são isolacionistas, se importam apenas com o seu
próprio país. Eles precisam negar a mudança climática por isso.
Qual é a responsabilidade de Trump, e dos EUA, nessa discussão?
Ele
acredita que a América não tem responsabilidade sobre ninguém no mundo,
econômica ou politicamente. O mais incrível sobre os Estados Unidos nos
últimos três ou quatro anos é que eles voluntariamente se demitiram da
sua posição tradicional de líderes do mundo livre. Essa foi a realidade
por décadas. A grande questão sobre 2020 é que se eles realmente votarem
novamente por Trump, é como se dissessem: “nos esqueçam, só nos
importamos com os Estados Unidos”. O que é muito perigoso, porque em
muitas frentes precisamos de liderança. Os EUA ainda são a maior
economia e o maior poder militar. Se pensarmos em termos econômicos,
quando a crise de 2008 aconteceu, o pior destino possível foi evitado
por conta da união das lideranças do mundo, tomando algumas medidas
radicais para salvar os mercados e prevenir o colapso financeiro
completo. Agora, se uma crise similar acontecer amanhã, penso que
estamos condenados. Para evitar o pior resultado é preciso cooperação
global. Os bancos centrais, o G7 e o G20… e ninguém seguiria Trump nesse
cenário. Quem pode confiar nesse cara? Por três anos, os EUA nos
disseram que não se importam com ninguém. Falando só do sistema
financeiro, estamos numa situação extremamente perigosa. Uma crise virá:
talvez em seis meses, talvez em três anos. Virá. O mundo está
totalmente despreparado agora.
Em
sua obra, o senhor menciona os “não empregáveis”, e diz que será o
maior problema econômico e político das próximas décadas. Vê como
possível alguma colaboração mais forte entre esses países para combater
essa questão?
Sim,
em duas frentes. A contínua automação vai beneficiar os países líderes
em campos como inteligência artificial e robótica, como os EUA e a
China. Os piores efeitos se darão em países em desenvolvimento, que
dependem de trabalhos manuais baratos — o tipo de trabalho mais fácil de
automatizar. Haverá novos postos, mas será preciso outras formas de
treinamento e habilidades. Os países ricos têm os recursos necessários
para o retreinamento da força de trabalho. Os países em desenvolvimento e
mais pobres serão atingidos duas vezes. Primeiro, pelo choque da
automação, e depois pelo fato de não terem os recursos para treinar sua
força de trabalho. O que eles podem fazer? Novamente, é um campo em que
será preciso cooperação global para salvar os elos mais frágeis da
corrente, porque se países na América Central entrarem em colapso
econômico, qualquer problema que os Estados Unidos têm hoje com
imigração ou situações de instabilidade na região serão muito, muito
piores. Precisamos de uma transferência de recursos dos países ricos,
que serão beneficiados pela inteligência artificial, para os países que
serão mais atingidos por isso. Isso deve começar hoje, não em 20 anos.
Que tipo de trabalho as crianças brasileiras que hoje têm 5 ou 6 anos
terão em 20 anos? Esperar esse período pode ser tarde demais.
O senhor diz que o nacionalismo não é natural, não tem raízes na biologia ou psicologia.
Não
quero dizer que seja antinatural, estou dizendo que os Estados-nação
que temos hoje não são uma parte da psicologia humana, são um fenômeno
bastante recente, de apenas alguns mil anos, muitas vezes menos. Humanos
estão por aí há cerca de 2 milhões de anos. Então, não devemos pensar
que Estados-nação são parte da natureza humana e portanto continuarão
para sempre. Quando eles apareceram, em um ponto da história, serviram a
um bom propósito. A essência do nacionalismo não é odiar estrangeiros,
mas amar seus compatriotas e se importar com milhões de pessoas que você
não conhece de verdade. Na maior parte da evolução humana, os humanos
apenas se importaram com as pessoas que eles conheciam, a família e os
amigos mais próximos. A grande questão sobre o nacionalismo é que ele
permite, numa nação como o Brasil, se importar com 200 milhões de
estranhos. Ser honesto nesse contexto é estar disposto a pagar impostos
para que todos tenham educação e um sistema de saúde. E isso é muito
bom. Também não acredito que haja uma disputa entre democracia e
nacionalismo, acho que eles andam juntos. O que estamos vendo em várias
partes do mundo são democracias se enfraquecendo porque o nacionalismo
está se enfraquecendo. Geralmente, quando ele está forte, a indicação é
que existem guerras entre as nações. Agora, praticamente não há guerras
entre nações. Os conflitos são internos. Seja no Oriente Médio, seja nos
Estados Unidos. Americanos agora odeiam outros americanos muito mais do
que odeiam os russos. Sem o nacionalismo, as democracias não podem
funcionar, porque elas se baseiam no fato de que todas as pessoas, ou a
imensa maioria, concordam sobre aspectos básicos. Há discordâncias, mas
não ódio. Por exemplo: “Acredito que meus adversários políticos estejam
enganados, até mesmo que sejam burros, mas eu não os odeio, e eles não
me odeiam. É por isso que quando eles vencem as eleições, estou disposto
a aceitar o resultado”. Quando não há senso de destino nacional, a
nação se parte em tribos rivais, e a longo prazo a democracia não
funciona. A questão principal é as pessoas entenderem errado o
nacionalismo e pensar que ele é sobre odiar estrangeiros, ou odiar
minorias, quando na verdade é sobre amar os seus compatriotas. Ser um
bom nacionalista não significa matar outras pessoas. Significa pagar
seus impostos de maneira honesta para que outras pessoas na nação tenham
boa educação.
É curiosa essa ideia de que o nacionalismo está, na verdade, se enfraquecendo.
Trump,
por exemplo, não é um nacionalista. Ele é anti-nacionalista. Um líder
nacionalista é alguém que tenta unir uma nação. Trump faz o exato
oposto, deliberadamente debilitando a unidade americana, não
necessariamente nas suas políticas, mas no seu discurso.
O
senhor também comenta que é possível que o cérebro humano seja
sobrecarregado de informações a tal ponto que já não consiga
processá-las de maneira adequada, e que a luta pela atenção humana é um
grande problema atual e do futuro. Quais são os riscos envolvidos nesses
aspectos?
Um
dos problemas é transferir a autoridade humana para algoritmos. Porque
apenas os algoritmos seriam capazes de tirar sentido da quantidade
imensa de informações. Para dar um exemplo prático, pensando no sistema
financeiro: mesmo hoje, quantas pessoas entendem como o sistema
financeiro funciona? Para ser muito generoso, eu diria que talvez 1% da
população. Em 20 ou 30 anos, o número pode ser exatamente 0. O sistema
será tão complexo, e o fluxo de informações tão rápido, que mesmo PhDs
em economia não serão capazes de entendê-lo. A autoridade muda para o
algoritmo. Mesmo hoje, boa parte dos negócios é fechada por algoritmos, e
cada vez mais as decisões econômicas importantes seguirão esse caminho.
O Banco Central deve subir ou reduzir a taxa de juros? Essa será uma
decisão tomada por algoritmos, porque ninguém vai entender a economia.
Isso acontece em diversos campos. Quando alguém está procurando
preencher uma vaga em sua empresa, hoje em dia recebe dezenas de
currículos, os analisa, pensa sobre quem está mais apto para o trabalho,
há uma entrevista, se forma uma impressão e é isso. A autoridade dessa
decisão pode mudar para algoritmos, que processam milhares e milhares de
informações e não contam com a entrevista. Eles podem explorar todo o
seu feed do Facebook, por anos, e encontrar padrões que indicam se você é
extrovertido ou fechado, confiável ou não, todo tipo de traço
psicológico. O algoritmo vai decidir quem é apto para o trabalho, e
quando a pessoa for questionar a empresa por que não foi contratada, a
empresa vai dizer que não sabe, foi apenas o algoritmo. É possível que
haja leis. A União Europeia já aprovou uma lei em que o ser humano tem
direito a uma explicação sobre toda decisão a respeito dele definida por
algoritmo. Mas pode ser uma impressão de mil páginas com todos os dados
que o algoritmo analisou? Estamos chegando a um ponto que não estamos
sendo capazes de processar toda a informação.
REPORTAGEM POR | Guilherme Sobota |22 de dezembro de 2019 | 05h00
* Yuval Noah Harari tem 43 anos, é historiador, filósofo e autor de Sapiens: Uma Breve História da Humanidade, de Homo Deus: Uma Breve História do Amanhã e de 21 Lições para o Século 21.
Nascido em Haifa, Israel, é professor do Departamento de História da
Universidade Hebraica de Jerusalém. Publicada em diversos países, sua
obra já vendeu mais de 20 milhões de cópias.
Fonte: https://www.estadao.com.br/infograficos/cultura,precisamos-de-transferencia-de-recursos-dos-paises-ricos-para-os-mais-pobres,1063634
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