Giannetti: incertezas sobre estabilidade democrática podem ser obstáculo para transição a crescimento sustentado — Foto: Claudio Belli/Valor
Na visão do economista e
escritor, há declarações e comportamentos autoritários “que revelam claro
descompromisso com a ordem democrática”, embora ainda no plano simbólico
Por Sergio Lamucci — De São Paulo
20/12/2019
O economista e escritor Eduardo
Giannetti vê sinais de riscos à democracia no Brasil governado por Jair
Bolsonaro. “Há muitas declarações, há muitos comportamentos autoritários que
revelam um claro descompromisso com a ordem democrática, mas ainda muito no
plano simbólico”, diz ele, para quem um risco institucional pode se concretizar
“quando e se houver algum tipo de conflito mais sério entre os Poderes da
República”. Na visão de Giannetti, incertezas quanto à estabilidade da ordem
democrática podem ser um obstáculo para a transição da retomada cíclica, que
enfim parece se firmar, ao crescimento sustentado.
Entre os sinais de riscos à
democracia, ele cita exemplos como as ameaças do presidente de perseguir a
imprensa independente, usando o poder do Estado; os elogios de Bolsonaro à
repressão e à tortura durante o regime militar, como no episódio envolvendo o
pai do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz; e
a atuação do general Eduardo Villas Bôas, assessor especial do Gabinete de
Segurança Institucional GSI), tentando “constranger e intimidar” o Supremo
Tribunal Federal (STF) às vésperas da votação sobre a prisão em segunda
instância - sem citar o julgamento, Villas Bôas falou, num tuíte, sobre o risco
de “convulsão social”.
Giannetti avalia que a economia
está no “limiar de uma recuperação cíclica”, adiada desde o fim da recessão.
Agora, há sinais mais sólidos de retomada na “construção civil, crédito,
demanda de modo geral”. Há também um cenário fiscal melhor e uma aparente
trégua de choques de natureza política e institucional. Para transitar ao
crescimento sustentado, porém, o país precisa de dois fatores fundamentais,
segundo ele. “Primeiro, é clareza em relação à constituição econômica. Qual é o
sistema tributário que vai valer, qual é o regime trabalhista que vai valer,
qual é o marco regulatório para o investimento em infraestrutura”, diz
Giannetti. “A outra coisa é uma garantia quanto à estabilidade do ordenamento jurídico-político
brasileiro, na democracia e no estado de direito, que não está bem parado.”
Para ele, se houver problemas com
a ordem política e institucional, pode haver instabilidade social, com momentos
de muita conturbação. Num cenário de insatisfação desse tipo, os agentes
econômicos não se sentem seguros para tomar decisões de longo prazo.
Na entrevista, Giannetti diz ver
como fundamental que os grupos que se constituíram em oposição à ditadura e se
revezaram no poder a partir da redemocratização cooperem, para que não
prevaleça outra vez o que ocorreu em 2018. “Se voltar a polarizar, a chance de
permanência do atual governo aumenta enormemente.” Autor de livros como
“Auto-Engano”, “O Valor do Amanhã” e “Trópicos Utópicos”, Giannetti trabalha
numa nova obra, sobre ética, que deve se chamar “O Anel de Giges.”
Valor: O ano termina com a expectativa de recuperação mais firme da
economia. A retomada cíclica vai enfim ganhar força?
Eduardo Giannetti: Acho que estamos no limiar de uma recuperação
cíclica, que vem sendo postergada desde o fim da recessão. Tivemos o mesmo
enredo no Brasil três anos seguidos. O ano começa com as perspectivas mais
otimistas, com as pessoas falando em crescimento de 2%, até um pouco mais,
2,5%, 3%, mas, à medida que o ano vai passando, as expectativas são revistas
para baixo e o ano termina com crescimento muito próximo de 1%. Tendo a crer
que 2020 será diferente.
Valor: O que parece diferente desta vez?
Giannetti: Há indicadores muito sólidos mostrando uma recuperação -
construção civil, crédito, demanda de um modo geral. O governo conseguiu criar
um mínimo de ancoragem fiscal e a sucessão de choques, de incerteza política e
institucional, aparentemente deu trégua. E há um movimento natural do ciclo
econômico. Estivemos na UTI em 2015 e 2016, com os sinais vitais da economia em
queda livre. Depois entramos numa convalescença que se prolongou enormemente,
num padrão muito diferente das outras recessões. E estamos agora transitando da
convalescença para a normalidade - a recuperação cíclica. Mas não vamos
confundir com o crescimento sustentado. Isso é outra etapa, e não está nada
claro ainda se o Brasil está preparado para enfrentá-la.
Valor: Por que tanta demora para a retomada?
Giannetti: A variável mais relevante é a queda do investimento.
Houve recuo de mais de 30% da formação bruta de capital fixo durante a
recessão. Aí você tem dois componentes. O primeiro é o setor púbico, que
naturalmente perdeu a capacidade de investir, por causa da crise fiscal. Houve
também retração muito profunda do investimento privado. Não é difícil explicar
que o setor público tenha perdido a capacidade de investir, depois da
extravagância fiscal que o Brasil viveu durante o governo Dilma. Dada a rigidez
do orçamento, o ajuste teria que vir pelo gasto discricionário, onde está o
investimento. No setor privado, a explicação é mais complexa. Primeiro, houve
recessão muito profunda, que gera grande capacidade ociosa.
Valor: O que mais influenciou?
Giannetti: Houve uma sucessão de choques de incerteza política.
Houve o impeachment da [ex-presidente] Dilma Rousseff. Houve o escândalo do
vazamento da conversa do [ex-presidente] Michel Temer com Joesley Batista, da
JBS, no momento em que se ia votar a reforma da Previdência. Depois houve a
greve dos caminhoneiros. Na eleição presidencial, houve um momento em que, dos
dois candidatos que lideravam as pesquisas, um estava preso [Luiz Inácio Lula
da Silva] e o outro [Jair Bolsonaro] estava na UTI. Acrescento um elemento de
incerteza institucional na economia. Se você está contemplando um projeto de
investimento e não tem certeza sobre as regras do jogo econômico que vão
prevalecer, fica muito difícil fazer um cálculo de retorno. Uma mudança no
sistema tributário pode tornar o que parecia ser um investimento altamente
rentável num investimento que não se paga. Foi feita uma reforma trabalhista no
governo Temer, mas criou-se uma indefinição porque as medidas que iam ser
vetadas pelo Executivo acabaram não sendo. As instâncias da Justiça do Trabalho
aparentemente votam cada uma como bem entende. Isso gera insegurança. Além
disso, o marco regulatório da infraestrutura está muito instável.
Bolsonaro com os filhos Flávio,
Eduardo e Carlos: para Eduardo Giannetti, fonte de maior preocupação é o
componente
“familiar-astrológico” do governo — Foto: Roberto Jayme/Ascom/TSE
Valor: Continua instável?
Giannetti: Completamente. Houve dois episódios graves muito
recentes: um, a destruição dos postos de pedágio da Via Amarela, liderada pelo
prefeito do Rio, Marcelo Crivella. Aquela é uma cena de horror econômico. Um
investidor que vê aquilo e acredita em investir no Rio em infraestrutura é
porque ele está fora da realidade. Outro episódio é que Goiás quer reestatizar
o setor de energia elétrica, que foi concedido para a Enel. É preciso dar ao
investidor privado a confiança de que o investimento dele será avaliado pelo
mérito, e não por mudanças arbitrárias no ambiente econômico que não têm nada a
ver com a qualidade da escolha feita.
Valor: O consumo das famílias tem boas perspectivas, e a expectativa
para o investimento parece ter melhorado. O que ajuda nesse quadro?
Giannetti: A grande e bem-vinda novidade brasileira é o juro baixo.
Existe uma massa de poupança financeira, que vivia da Bolsa CDI, e que agora
está meio desesperada, procurando alternativas para obter uma rentabilidade
razoável. O que vai definir a economia agora é saber se essa massa de poupança
vai aceitar essa nova realidade e vai procurar investimentos de criação de
capacidade, de infraestrutura, de aumento da capacidade produtiva, que levam ao
crescimento sustentável. Nós temos hoje muita capacidade não utilizada, física,
e temos 4 milhões de pessoas com ensino superior, qualificadas, que estão
desempregadas. Há uma margem para um crescimento no curto prazo que é
simplesmente voltar à velocidade de cruzeiro, usando fatores de produção já
existentes. Isso nós vamos assistir, se tudo correr bem, em 2020. No fim de
2020, vamos começar a sentir se esse movimento da poupança financeira se
orientando para a economia real dará sequência para o crescimento sustentado ou
se teremos inflação e o Banco Central vai ter que aumentar os juros - e aí nós
voltamos para trás. É a grande incógnita para 2020.
Valor: É possível crescer 2% a 2,5% em 2020?
Giannetti: Não há dificuldade nenhuma em crescer 2,5%, até 3% no
ano que vem. É só usar recursos que já estão dados na sociedade. Essa parte do
enredo é muito dada, é muito tranquila. A parte difícil do enredo é quando a
economia estiver na vizinhança do pleno emprego e passar a depender de novos
investimentos para poder se expandir. Se esses novos investimentos não se
materializam, com a demanda crescendo, você gera pressão inflacionária e
déficit em conta corrente.
Valor: Os juros estão no nível mais baixo da história. É uma queda
estrutural, fruto de medidas como reforma da Previdência e do teto de gastos,
ou mais o resultado de uma economia que não cresce, com grande ociosidade?
Giannetti: Não acho que essas duas hipóteses sejam excludentes. A
recessão ajudou muito a manter uma inflação abaixo até do centro da meta, mas
também o esforço de contenção fiscal desde o governo Temer para cá permitiu
reverter o caminho explosivo de crescimento da dívida pública em relação ao
PIB, que era muito preocupante. Mas o teste da permanência desse novo quadro
virá ao longo de 2020, quando nós voltarmos para a vizinhança do pleno emprego,
do [uso] dos fatores de produção.
Valor: Alguns analistas acham que, como a ociosidade é alta, isso
ocorrerá apenas em 2022.
Giannetti: Depende aí da rapidez e da intensidade com que essa
demanda volta. Eu tendo a crer que ao longo de 2020, na virada de 2020 para
2021, já vai estar claro se nós estamos num ambiente de círculo virtuoso em que
a massa de poupança financeira assume os riscos naturais de investimento na
economia real ou se nós estamos caminhando para pressões inflacionárias e
déficits externos. Entrando agora num ponto que não é estritamente econômico.
Incertezas quanto à estabilidade da ordem democrática no Brasil podem ser o
grande complicador nesse cenário, dentro do capítulo dos riscos das incertezas
políticas e institucionais. Declarações sobre o AI-5, a iminência de protestos
que podem levar a retrocesso político, são a última coisa que o Brasil precisa.
Valor: O sr. vê riscos à democracia no Brasil?
Giannetti: Eu vejo riscos. Os sinais não faltam. Até sobram. Há
muitas declarações, há muitos comportamentos autoritários que revelam um claro
descompromisso com a ordem democrática, mas ainda muito no plano simbólico. O
momento em que isso pode se tornar uma realidade é quando e se houver algum
tipo de conflito mais sério entre os Poderes da República. Se houver - e espero
que isso não ocorra - uma decisão de um poder soberano que não é respeitada por
outro poder soberano, aí nós vamos estar saindo do simbólico para uma situação
muito concreta de risco institucional. Pode ser uma decisão do STF que não é
respeitada, que não é acolhida, pelo Executivo ou pelo Legislativo. Há várias
possibilidades.
Valor: Quais os sinais de riscos à democracia?
Giannetti: Quando o presidente ameaça perseguir a imprensa
independente, usando o poder de Estado. Quando elogia a repressão e a tortura
durante o regime militar, como no episódio envolvendo o pai do presidente da
OAB [Felipe Santa Cruz]. Quando reage ao aumento dos incêndios na Amazônia
questionando o trabalho do Inpe [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais],
demitindo o seu presidente [Ricardo Galvão] e acusando as ONGs que atuam na
região. Quando o general Villas Bôas tenta constranger e intimidar o STF às
vésperas da votação da prisão em segunda instância.
Valor: As instituições estão funcionando?
Giannetti: Estão funcionando, mas há nuvens e ameaças. Há um enorme
descrédito na população brasileira em relação à política, em relação à Justiça,
em relação à lisura das regras da vida pública. E não é só no Brasil - veja o
que ocorreu no Chile, o que ocorreu na Bolívia, o que está ocorrendo na
Colômbia. E não é apenas na América do Sul. É uma coisa séria.
Valor: Voltando para a ua preocupação com a situação do investimento,
como isso pode afetar a recuperação do Brasil?
Giannetti: Duas coisas seriam importantes para o Brasil transitar
da recuperação cíclica para o crescimento sustentado. Primeiro, é clareza em
relação à constituição econômica. Qual é o sistema tributário que vai valer,
qual é o regime trabalhista que vai valer, qual é o marco regulatório para o
investimento em infraestrutura. A outra coisa é uma garantia quanto à
estabilidade do ordenamento jurídico-político brasileiro, na democracia e no
estado de direito, que não está bem parado.
Valor: Há quem acredite que, se a economia estiver crescendo, é
indiferente para os investidores se há riscos para a democracia ou não.
Giannetti: Não. Vai ter instabilidade social se houver isso. Vai
ter momentos de muita conturbação. Eu gosto de olhar as coisas na linha do
tempo. O Brasil tem vivido ondas bem definidas de insatisfação, de classe média
principalmente, com o estado das coisas. A primeira grande manifestação disso
foi junho de 2013, uma surpresa que deixou o status quo político brasileiro e o
governo da época completamente nas cordas. Foi uma enorme perplexidade, porque
não se imaginava que havia tanta insatisfação latente em grupos que
aparentemente estariam melhorando de vida, numa época em que havia ainda um
sentimento de prosperidade.
Valor: Quais foram os outros?
Giannetti: Depois você teve uma outra onda que quase mudou o status
quo político brasileiro, deflagrada pela morte do Eduardo Campos e que quase
levou a Marina Silva a vencer 2014. Marina, durante algum tempo, catalisou esse
sentimento de que precisava renovar a política brasileira de modo muito
radical. Ela foi violentamente atacada, aquilo gerou enormes feridas na vida
brasileira, mas foi uma segunda onda. Depois houve a onda do impeachment da
Dilma, que também levou a grandes manifestações e muita insatisfação e foi uma
terceira onda. Em seguida, uma quarta onda, que foi a greve dos caminhoneiros.
Começou como um movimento localizado, mas de repente grande parte da sociedade
estava apoiando a greve. A quinta foi a vitória de Bolsonaro. Um total
outsider, desconhecido, que não participou da campanha, mas que conseguiu
galvanizar um sentimento de que precisava mudar. E mudar radicalmente. A
pergunta que eu faço é - será que essas ondas acabaram?
“Liberalismo não é gestão prudente e equilíbrio fiscal. É uma visão de
mundo,
da qual igualdade de oportunidades é um elemento central”
Valor: Pode ocorrer algo parecido com o que ocorreu no Chile e em
outros países da região?
Giannetti: Se começar a brincar demais com a ordem política,
institucional... Eu não vou fazer uma profecia, não é o meu estilo, mas eu
tendo a crer que essas ondas não acabaram. Elas podem ter outros movimentos
dessa contundência, que geram de novo, aí voltando para o cenário econômico,
uma situação em que os agentes não se sentem seguros para tomar decisões de
longo prazo. Vivem no curtíssimo prazo, simplesmente mantendo alguma posição
que tem.
Valor: Qual o seu balanço de um ano de governo Bolsonaro?
Giannetti: Eu vejo o governo Bolsonaro com três componentes. Há um
componente militar, de orientação geopolítica. Há um componente econômico, de
orientação neoliberal. E há um componente que eu chamo familiar-astrológico. O
que realmente me preocupa é esse componente, porque ele domina segmentos e
setores muito importantes das políticas públicas no Brasil. Em educação, em
meio ambiente, em direitos humanos, em relações exteriores e cultura. Seria uma
visão muito tacanha do pensamento liberal imaginar que eles se atêm simplemente
à gestão da macroeconomia e do lado fiscal. As coisas não são compartimentadas
e segmentadas assim na realidade. Sem formação de capital humano adequada, não
há prosperidade e não há mercados funcionando com a eficiência que eles podem
ter. Se você não fizer bem as relações exteriores, você não amplia as
oportunidades de comércio internacional. Se você prejudica demais a gestão
ambiental, como está ocorrendo, é um fator de incerteza.
Valor: Quais os riscos nessa área?
Giannetti: Pode-se caminhar até para a situação de boicote de
produtos brasileiros, para constrangimentos de comércio internacional e para
situações que no limite minam a própria condição de sustentabilidade do
agronegócio no Brasil. Eu duvido que o Centro-Oeste brasileiro sobreviva à
derrubada da floresta amazônica. O regime pluviométrico gerado pela Amazônia é
vital para manter produtivo e fértil o Centro-Oeste brasileiro. Não dá para
segmentar e compartimentar. O que me desagrada profundamente no governo
Bolsonaro é essa orientação pesadamente obscurantista e ideológica desse
segmento que eu chamo familiar-astrológico.
Valor: É uma referência à influência dos filhos do presidente e de
Olavo de Carvalho, não?
Giannetti: Exato. David Hume dizia que os erros em religião são
perigosos e, em filosofia, apenas ridículos; mas neste caso é difícil dizer
onde termina o ridículo e começa o perigo.
Valor: O ex-presidente do BC Arminio Fraga tem dito que, sem combater a
desigualdade, não se vai destravar a economia. O sr. concorda?
Giannetti: Esse é um aspecto muito bem lembrado pelo Arminio.
Converge com o que eu estava falando. Liberalismo não é gestão prudente e
equilíbrio fiscal. É uma visão de mundo, da qual, por exemplo, igualdade de
oportunidades é um elemento central, e não se está buscando isso. Nós estamos
vivendo um enorme retrocesso nas políticas sociais no Brasil.
Valor: Na educação, vários especialistas criticam o ministro Abraham
Weintraub por uma gestão preocupada com questões ideológicas, que não dá a
devida importância para a educação básica. Como o sr. avalia a área?
Giannetti: Felizmente a educação depende muito dos Estados e municípios,
então o estrago em alguma medida é limitado. Mas eu não vejo o mínimo de
discernimento e de clareza em relação à prioridade que deveria ter o ensino
fundamental de qualidade. Já uma agenda que eu gosto é a agenda do pacto
federativo.
Valor: Por quê?
Giannetti: Eu falo há muito tempo em “Menos Brasília, mais Brasil”,
é a minha fórmula [Paulo Guedes tem falado em “Mais Brasil, menos Brasília”].
Em 1988, foi feita uma opção pelo Estado federativo. As funções típicas de
setor público foram transferidas do governo central para Estados e municípios.
Há um sistema em que os recursos convergem para Brasília para depois retornarem
para os Estados e municípios. Daí que 80%, 85% dos municípios praticamente não
arrecadam. Vivem de mesada. Isso é uma receita para malversação e para má
utilização de recursos públicos. O município não tem saneamento, mal tem um
posto de saúde, o ensino é precário, e ele gasta uma proporção relevante dos
recursos com máquina pública, com políticos e com agregados. O que não dá para
entender é que nós temos uma carga tributária de 33% do PIB. É um terço da
renda nacional. O déficit nominal [que inclui gastos com juros] é de 6% do PIB.
Com isso, 39% de todo o valor criado pelo trabalho dos brasileiros transita
pelo setor público. Metade dos domicílios não tem coleta de esgoto. O ensino
fundamental é deplorável. Saúde pública é muito deficiente, mas é menos ruim
relativamente do que a educação. Para mim, o que está por trás dessas ondas de
insatisfação que se repetem, com diferentes configurações, é um sentimento de
que a sociedade transfere uma quantidade elevada de recursos para o setor
público e não recebe como contrapartida minimamente resultados que justifiquem
o tamanho do dreno feito.
Valor: O sr. disse que há um descaso com políticas sociais. O governo
não mexeu no Bolsa Família e vai pagar uma 13ª parcela neste ano. O que falta à
área?
Giannetti: Política social não é apenas transferência de renda
extramercado. É política de gênero, é política de igualdade étnica.
Valor: Nas relações exteriores, como o sr. vê o alinhamento aos EUA.
Faz sentido?
Giannetti: O Brasil está fazendo o papel de bobo da corte. Porque
na hora de os americanos concretamente mostrarem algum tipo de afinidade e
aliança, eles fazem exatamente o contrário. Foi assim no caso da OCDE e no caso
agora das tarifas de importação [o anúncio de Trump de que iria sobretaxar as
importações de aço e alumínio do Brasil e da Argentina].
“Eu não vejo o mínimo de
discernimento e de clareza em relação à prioridade que deveria ter o ensino
fundamental de qualidade”
Valor: Eu gostaria de falar um pouco sobre a eleição de 2018. Houve uma
polarização, e o centro murchou. O que ocorreu?
Giannetti: Três grupos se constituíram na oposição democrática ao
regime militar. Trabalharam juntos, de modo muito cooperativo. A partir da
redemocratização, cada um desses grupos foi testado no governo. Primeiro, o
PMDB, com Sarney, depois o PSDB, com Fernando Henrique Cardoso, e por fim o PT,
com Lula e Dilma. Quase como num experimento de laboratório. Duas coisas chamam
a atenção. A primeira é que cada um desses grupos preferiu governar como o que
há de mais sinistro na política brasileira a trabalhar junto, especialmente PT
e PSDB. Esse quadro é que abriu o flanco para o desastre político de 2018. Essa
incapacidade da oposição democrática, uma vez no poder, conseguir se articular
e cooperar em nome do que une uma visão de Brasil melhor - redução da
desigualdade, ensino público fundamental de qualidade, políticas ambientais
afinadas ao século XXI. Esse foi o pano de fundo do descontentamento que
resultou na vitória de um outsider, demagogo, e completamente despreparado para
o cargo. Não tem outra palavra.
Valor: Bolsonaro é o fim de um ciclo?
Giannetti: Ele é o fim desse ciclo da redemocratização. A grande
questão é saber se as forças democráticas que se constituíram na origem da
oposição ao regime militar, diante de uma ameaça dessa magnitude, serão capazes
de se entrosar, de se compor e de cooperar ou vão seguir fragmentadas, com
disputas fratricidas, permitindo a continuação desse caminho que se abriu. Se
voltar a polarizar, a chance de permanência do atual governo aumenta
enormemente.
Valor: Seria um grupo de centro ou o PT faria parte também dessa
articulação?
Giannetti: É um grupo que tenha genuíno compromisso com algumas
bandeiras fundamentais do campo democrático progressista. Um absoluto respeito
pela democracia, um compromisso com a redução da desigualdade obscena que
existe no Brasil e algum tipo de preocupação com esse ativo estratégico
brasileiro que é o meio ambiente. E um quarto ponto, que é o compromisso com a
estabilidade macroeconômica. A aventura da Dilma também é um fator que está
muito por trás do que ocorreu de desastroso na política a partir do
impeachment. Isso vai exigir desprendimento de líderes que tem que colocar a sua
vaidade de lado. Grande parte dessa incapacidade de trabalhar junto, durante as
chances repetidas que tiveram da redemocratização até a vitória de Bolsonaro em
2018, foi a vaidade. É o momento em que esses líderes das forças democráticas
que se constituíram no período da ditadura considerarem a possibilidade de
voltar a ter o que nós tivemos na época da ditadura - uma frente democrática
coesa, como foi naquela época. Eu incluo o PMDB, o PSDB, o PT, as forças que
constituíram em nome da democracia em oposição ao regime militar e que foram
testadas sequencialmente nas eleições.
Valor: O sr. acha que isso é provável ou o Brasil vai repetir em 2022 o
que ocorreu em 2018?
Giannetti: Eu adoraria ver Fernando Henrique Cardoso, Lula, Ciro
Gomes e Marina sentarem e, em nome de uma ameaça grave na área política, na
área social e na área ambiental, juntarem as forças para constituir um polo
democrático progressista. Mas eu estou sonhando acordado.
Valor: Há uma expectativa de alguns grupos de que Luciano Huck possa
romper a polarização. Como o sr. vê essa possibilidade?
Giannetti: Acho muito cedo ainda. Huck não se constituiu
propriamente como liderança política ate agora. É uma promessa. Vejo que tem
procurado pessoas qualificadas, reconheço que tem trabalhado nessa direção, mas
não é parte daquele movimento que procurei retratar. Os que são parte desse
movimento são os quatro que eu nomeei, e acho que são eles que têm que liderar
uma articulação do campo democrático progressista.
Valor: E o candidato para 2022, pode ser alguém da velha política?
Giannetti: Preferencialmente não. O eleitorado está cansado da velha
política, e algumas dessas figuras, e eu vou dizer isso sem juízo de valor, são
altamente divisivas na sociedade brasileira. É o caso do Lula.
Independentemente do que cada um possa sentir ou não, a figura dele hoje divide
o Brasil. Eu vejo com clareza que o campo democrático progressista que se
constituiu em oposição ao regime militar tem que se unir, para que não
prevaleça outra vez o que ocorreu em 2018. Se nós caminharmos de novo para a
polarização raivosa, a probabilidade de continuar essa situação em que nós
entramos é enorme. Tudo o que eles querem é a polarização raivosa. Aliás, eles
trabalham para isso. Para o governo Bolsonaro, é o cenário ideal: ou somos nós
ou voltam Lula e o PT.
Valor: O sr. passou grande parte do ano em Tiradentes, escrevendo um
livo. Do que ele trata?
Giannetti: Eu penso nesse livro há mais de 30 anos. É um livro
sobre ética, que muito provavelmente vai se chamar “O Anel de Giges”. De onde
sai essa figura? Na “República” de Platão, Glauco, o irmão de Platão, conta uma
fábula, sobre um pastor humilde, chamado Giges, no reino da Lídia. Um dia, há
um terremoto, abre-se uma fenda na terra, e o pastor encontra um cavalo imenso de
bronze, dentro do qual tem um cadáver com um anel no dedo. Ele entra no buraco,
retira esse anel e volta para a superfície. Aí ele vai a uma assembleia de
pastores e começa a brincar com o anel no dedo. Quando gira o engaste para
dentro, os outros pastores começam a falar dele como se ele não estivesse lá.
Ele percebe que adquiriu o poder da invisibilidade. Giges se faz eleger
representante na assembleia dos pastores para ir à capital. Usando o poder do
anel ele seduz a rainha e, com a cumplicidade dela, assassina o rei e se torna
o novo rei da Lídia. Glauco então coloca isso como um desafio a Sócrates. Se eu
sou inimputável e nenhuma lei me alcança, nenhuma condenação moral me atinge,
porque eu não sou visível, por que eu vou ter algum tipo de compromisso com o
que é certo, com o que é direito, com o que é justo? Sócrates passa o resto da
“República” tentando oferecer uma resposta de que a melhor vida que um ser
humano pode ter é a vida ética, independentemente de qualquer vantagem ou qualquer
reputação.
Valor: E qual é a sua abordagem do tema?
Giannetti: Eu descobri que eu posso contar a história da ética com
o experimento mental que é o anel de Giges. Como é que um kantiano usa o anel
de Giges, como é que um cristão usa o anel de Giges. E tudo isso caminha para
duas coisas que me interessam no final fazer - colocar o anel no dedo do leitor
e no meu dedo.
Valor: O que o levou a escrever o livro agora?
Giannetti: Toda a revelação que apareceu da vida pública brasileira
a partir das investigações da Lava-Jato me levou a pensar mais intensamente
nessa questão da impunidade, de quem cada um é no fundo. Nós ainda estamos meio
no Antigo Regime. A elite aristocrática do Antigo Regime tem uma sensação de
impunidade. A lei é para os outros. O anel de Giges permite explorar essa
situação de um modo que leva as pessoas a se perguntar - quem eu seria com o
anel de Giges? E ai de quem me disser que não muda um milímetro o seu
comportamento.
Valor: Ao comentar a insatisfação de parcelas da população na América
do Sul, o sr. disse que o fenômeno não se limita à região. A democracia
representativa está em crise?
Giannetti: Eu tendo a crer que sim. Mas não há no cenário nenhuma
alternativa, nenhuma proposta de aprimoramento que possa constituir uma
alternativa superior. Para os países maduros, democráticos e de alta renda per
capita, há outros fatores além dos que existem nos ambientes de economia
emergente como a brasileira. A crise da democracia que gerou um [Donald] Trump
tem fatores de muito longo prazo e muito profundos por trás disso. Acho que há
quatro vetores muito fortes de mudança.
Valor: Quais são eles?
Giannetti: Entraram centenas de milhões de trabalhadores asiáticos
no mercado global de trabalho. São pessoas que vêm de um nível de renda
extremamente baixo e que aceitam trabalhar por muito menos do que os
trabalhadores dos países de alta renda, e são muito produtivos. Isso
naturalmente leva a uma perda de renda dos trabalhadores das democracias ocidentais.
O segundo fator foi a crise de 2008 e 2009, que mostrou uma assimetria injustificável
no tratamento conferido ao sistema financeiro. Enquanto os bancos estavam
ganhando fortunas, ai de quem ousasse dizer que aquilo deveria ser socializado
em alguma medida. No momento em que eles perderam, foi rapidamente socializado
e a conta foi jogada para a sociedade e para as gerações futuras na forma de
dívida.
Valor: Quais as outras duas?
Giannetti: A terceira fonte de medo e instabilidade é a tecnologia.
Os empregos tradicionais, os setores muito estabelecidos da economia, estão
todos eles contestados pela revolução digital. E o quarto fator, que para mim é
o mais intrigante. Eu não acho que existiriam fenômenos políticos como Trump e
Bolsonaro se não fossem as novas mídias digitais. Eu não consigo nem sequer
concebê-los. A gente não entende como essas novas mídias digitais estão
alterando a dinâmica do processo político, porque não dá para imaginar esse
tipo de populismo de direita, nacionalista, ou demagógico, na ausência dessas
tecnologias de comunicação. É um momento em que as instituição não estão
acompanhando as mudanças na própria realidade. A coisa mais impactante que eu
vi sobre a crise do mundo ocidental democrático saiu na “The Economist”, e não
me sai da cabeça. A probabilidade de um jovem do sexo masculino de 15 anos
morrer antes dos 50 anos hoje é maior nos EUA do que em Bangladesh. Os
demógrafos criaram uma categoria que é a morte por desespero, causada por opioides,
suicídio e doenças do fígado. Angus Deaton, vencedor do Nobel, tem feito
estudos muito importantes com a mulher, Anne Case, mostrando em detalhe a
evolução da taxa de mortalidade dos brancos de meia idade nos EUA. É uma coisa
que não ocorreu na Europa.
Valor: E na América Latina, há um elemento comum aos protestos? É a
desigualdade?
Gianetti: Acho que é também a desigualdade, mas é o ressentimento e
a insatisfação com a vida tal como ela está. E é agravado por um quadro de
precariedade material, de corrupção, de uma percepção de falta de horizonte, de
ter aquilo em que se realizar, aquilo em que se realizar, aquilo em que
encontrar alguma plenitude. E essas novas tecnologias afetam tudo isso de
maneiras que a gente não sabe muito bem quais são.
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