Kivitz,
que preside a Igreja Batista de Água Branca, em São Paulo, é uma voz
dissonante
entre lideranças evangélicas
— Foto: Claudio Belli/Valor
Para Kivitz, teólogo e pastor, cristão tem
direito de defender
seus valores na esfera pública, mas
não o de impô-los à
sociedade
Por Marília de Camargo Cesar — Para o Valor,
de São Paulo
O universo conservador cristão ganhou um
protagonismo inédito no período pós-redemocratização com a ascensão de Jair
Bolsonaro (sem partido). Nos dois discursos que fez no dia de sua vitória nas
urnas, o presidente eleito citou 13 vezes o nome de Deus. Nada surpreendente,
porém. “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, seu slogan de campanha, já
deixava clara a intenção de dialogar diretamente com o expressivo contingente
evangélico no Brasil. E, desde a sua posse, em 1º de janeiro, nos templos, no Planalto,
na ONU ou no Twitter, Deus está mais presente ainda na retórica governista.
Mas Bolsonaro não se restringiu à oratória e
tem concedido um amplo poder para os pentecostais em seu governo. O presidente,
que mencionou a intenção de indicar um ministro “terrivelmente evangélico” para
o Supremo Tribunal Federal, também abriu espaço para a “Bancada da Bíblia” -
frente parlamentar que reúne 195 deputados e oito senadores -, cercou-se de
pastores como conselheiros e escolheu uma pastora para ser a ministra da
Mulher, da Família e dos Direitos Humanos: Damares Alves.
Além disso, o Aliança pelo Brasil, partido
político que o presidente pretende criar, traz em seu programa menções que o
vinculam a preceitos cristãos. Fazer a política andar de mãos dadas com a fé
não é um fenômeno novo, mas hoje reflete uma grande transformação social: a
expansão dos evangélicos, segmento religioso que poderá tornar-se o maior do país
em 2030, segundo projeções do demógrafo José Eustáquio Diniz Alves, do IBGE.
Não por acaso, a aprovação de Bolsonaro entre os evangélicos/pentecostais é de
39%, contra 30% da média geral da população, de acordo com pesquisa Datafolha
divulgada nesta semana.
Essa aliança de várias esferas de governo com
a religião, contudo, tem sido alvo de críticas até mesmo entre protestantes.
“Quando um Estado e um governo passam a ser vistos com os braços das agendas e
interesses de um segmento religioso, a degeneração é dupla, da ‘res publica’ e
da experiência da fé”, diz o teólogo Ed René Kivitz, escritor e pastor batista”.,
afirma Kivitz.
Apelar ao nome de Deus e ao capital simbólico da religião
implica um sacrilégio, pois Deus deixa de ser
fim e passa a ser meio”
Para ele, a ascensão evangélica a
postos-chaves de governo e o uso frequente do nome de Deus nos discursos do
presidente são um péssimo sinal. “A religião que se permite tornar um
instrumento político de controle perde a credibilidade. Além de trair a causa
do verdadeiro Evangelho.”
Kivitz, que preside a Igreja Batista de Água
Branca, em São Paulo, é uma voz dissonante entre lideranças evangélicas
populares que frequentam os importantes gabinetes do Palácio do Planalto, em
Brasília.
Por ter uma visão crítica desse movimento que,
segundo ele, “vulgariza a experiência religiosa”, Kivitz tem sido procurado
para dar palestras pelo Brasil. Em todas elas reafirma o direito dos cristãos
de defender seus valores na esfera pública, mas não o de impô-los à sociedade.
“A lógica religiosa é por definição antipluralidade e avessa à diversidade.”
O presidente Jair Bolsonaro toma café da manhã
com a bancada da Frente Parlamentar Evangélica
no Congresso Nacional — Foto:
Antonio Cruz/Agência Brasil
Para o teólogo, ao usar o nome de Deus a todo
instante em seus discursos, o presidente Bolsonaro comete “sacrilégio”. “Os
usos da Bíblia e do nome de Deus falam a dimensões do inconsciente humano que
nenhum outro tipo de discurso é capaz de alcançar. Apelar ao nome de Deus e ao
capital simbólico da religião implica um sacrilégio, pois Deus deixa de ser fim
e passa a ser meio”.
Leia, a seguir, os principais trechos da
entrevista que Kivitz concedeu ao Valor.
Valor: A igreja evangélica parece ter atingido o auge de seu protagonismo no
Brasil. O governo Bolsonaro conta com pastores ocupando cargos no primeiro e
segundo escalões e a influência dessa vertente religiosa nunca foi tão grande.
Que impactos esse movimento tem para a igreja na sua opinião?
Ed René
Kivitz: A chamada igreja evangélica é hoje uma das
protagonistas do velho modelo de aparelhamento privatizante do Estado.
Representações evangélicas têm, pela primeira vez em sua história, a
possibilidade de utilizar o poder político do Estado para efetivar as pautas
morais baseadas em suas convicções religiosas. Por outro lado, o espaço privativo
da religião passa a operar como espaço público de negociações políticas: o
púlpito se torna palanque, a marcha para Jesus é de fato uma marcha para presidente,
congressos e eventos religiosos passam a promover e defender o governo, e se
tornam, direta e indiretamente, espaços de formação ideológica do poder. O
contingente evangélico passa a ser visto e instrumentalizado como massa
eleitoral útil e diferenciada, o que vulgariza a experiência religiosa,
reduzida à estética estratégico-eleitoral. Quando um Estado e um governo passam
a ser vistos com os braços das agendas e interesses de um segmento religioso, a
degeneração é dupla, da “res publica” e da experiência da fé.
Valor: O presidente Bolsonaro costuma citar a passagem do Evangelho de João,
que afirma que a verdade liberta. O mote de sua campanha também foi “Brasil
acima de tudo, Deus acima de todos”. Esse tipo de discurso contribui para o
fortalecimento da igreja evangélica?
Kivitz: O uso do texto bíblico é uma estratégia discursiva para estabelecer
vinculação ideológica com o público religioso conservador cristão. Os usos da
Bíblia e do nome de Deus falam a dimensões do inconsciente humano que nenhum
outro tipo de discurso é capaz de alcançar. Apelar ao nome de Deus e ao capital
simbólico da religião implica um sacrilégio,
pois Deus deixa de ser fim e passa a ser meio. Nesse sentido, o empoderamento
da chamada igreja evangélica deve estar entre aspas, pois a religião capturada
para finalidades extrínsecas à sua identidade sempre sofrerá perda de sua
credibilidade. Os evangélicos deslumbrados com os aparentes benefícios que a adesão
ao governo lhes proporciona, na verdade, estão traindo a causa do Evangelho.
Valor: O que quer dizer com trair a causa do Evangelho?
Kivitz: Trair a causa do Evangelho é jogar fora a credibilidade e a
autoridade, que resta, da igreja evangélica: comprometer o mensageiro é
comprometer a mensagem.
Valor: O novo partido que está sendo criado pelo presidente Bolsonaro
declara, em seu programa, que “toma como seus os valores fundantes do Evangelho
e da civilização Ocidental, herdeira do virtuoso encontro entre as cidades de
Jerusalém, de Atenas e de Roma, ciente de que o povo brasileiro acredita que
Deus é o garantidor do verdadeiro desenvolvimento humano...”. Como analisa essa
declaração?
Kivitz: O primeiro impulso é concordar com a declaração, pois, de fato, a civilização
ocidental deve muito à síntese que a tradição cristã fez da religião judaica, a
filosofia grega e o direito romano, e também é muito bom que sejam reafirmados
os direitos humanos universais e sua fundamentação no princípio judaico-cristão
da dignidade intrínseca do ser humano como criado à “imago Dei” (imagem de
Deus). O problema é o contexto e prováveis intenções que emolduram essa
declaração, a saber, a eventual imposição de um paradigma religioso para o todo
da sociedade. Apoio que sejam afirmados os valores éticos e morais da tradição
cristã, em boa parte presentes também em outras tradições. Mas resisto
veementemente à sugestão de que um governo deva impor sobre a sociedade
quaisquer crenças religiosas. A experiência religiosa é fruto da fé, jamais da
imposição. A fé é uma escolha, nunca uma obediência.
Valor: Outro episódio recente parece ilustrar o fortalecimento dos políticos
cristãos na América Latina, o dia em que Jeanine Añez, a senadora que se
autoproclamou presidente interina da Bolívia após a renúncia de Evo Morales,
exibiu orgulhosa duas Bíblias nas mãos, afirmando que “Deus permitiu que a
Bíblia voltasse a entrar no Palácio”. O Estado laico está sob ameaça na América Latina?
Kivitz: A democracia e o Estado laico estão sempre sob risco. São
experiências recentes na história da humanidade, com pouco mais de 300 anos. Os
fenômenos recentes da América Latina são oportunismo inescrupuloso de quem sabe
do potencial do amálgama entre religião e política. A célebre expressão de Lord
Acton (1834-1902) é atualíssima: “O poder tende a corromper, e o poder absoluto
corrompe absolutamente”. O poder exercido em nome de Deus pretende se tornar
absoluto, pegando emprestada de Deus a prerrogativa de ser inquestionável. Além
da laicidade do Estado, portanto, estão em risco também os ideais e valores que
preservam sociedades livres, plurais e democráticas.
Valor: Quais são as consequências de se reforçar o caráter moral e religioso
das decisões de governo?
Kivitz: O sacrifício da laicidade coloca em risco as pluralidades sociais,
possibilita a normatização de certas formas de vida e a criminalização das
diferenças. A lógica religiosa é por definição antipluralidade e avessa à
diversidade. A religião está baseada em dogmas e tabus, verdades em que se deve
crer e comportamentos que se deve observar. É imperativo afirmar que os
ambientes sociais caracterizados pela garantia das liberdades individuais,
inclusive em termos de crenças e códigos morais, são os mais favoráveis para a
experiência da fé cristã.
“Eu resisto veementemente à sugestão de que um
governo deva impor sobre a sociedade quaisquer crenças religiosas”
Valor: Como seus colegas de outras religiões têm avaliado esse novo cenário
político-religioso? O que eles dizem?
Kivitz: Há quem enxergue o fundamentalismo religioso ocupando o Estado.
Outros temem as tendências protofascistas de uso da religião por parte do poder
político. Para as religiões mais tradicionais, como as indígenas e as de matriz
africana, teme-se, dado o nível de intolerância religiosa de certo segmento de
evangélicos, que, mais uma vez, passe-se a utilizar o Estado como forma de
criminalização ou extermínio de certas formas de vida religiosa e social. Há,
ainda, os que temem uma espécie de censura ou perseguição à pluralidade de
expressões culturais e de sensibilidades daqueles que não professam nenhuma
religião formal.
Valor: Em seus discursos, o presidente Bolsonaro costuma externar o desejo
de colocar “evangélicos” em determinados postos estratégicos. Podemos falar de
um aparelhamento evangélico da máquina? Com que objetivo?
Kivitz: O aparelhamento da máquina ocorre quando uma das representatividades
da sociedade usa a prerrogativa de governar para fazer prevalecer sua visão de
mundo particular, seja ideológica ou religiosa. A participação de religiosos no
governo não implica necessariamente aparelhamento, desde que atuem respeitando
os termos democráticos estabelecidos no pacto constitucional.
Valor: Algumas correntes de pensamento teológico, como a que defende o
estabelecimento de uma “cosmovisão cristã”, apontam para as vantagens sociais e
econômicas de se ter cristãos praticantes exercendo influência, por meio de
seus valores morais, nas esferas de poder político. Como analisa essas
correntes?
Kivitz: A participação nas esferas do poder político é uma prerrogativa dos
cidadãos. Os cristãos são também cidadãos. E muitos cidadãos são também cristãos.
É natural que cada cidadão leve consigo para a arena pública tanto sua
cosmovisão quanto seus valores éticos e morais, e também suas convicções
religiosas. Defender seus valores na arena pública é um direito dos cristãos,
impô-los ao todo da sociedade é uma traição do pacto democrático. Os
testemunhos do cristianismo primitivo foram desenvolvidos e estruturados num
tempo em que não existia lógica racionalizadora da política, não existia teoria
da especialização dos poderes. Evangelizar é diferente de colonizar.
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