Depois
de fazer uma longa e tumultuada viagem de Manaus às cabeceiras do Rio
Purus, Euclides da Cunha escreveu uma série de artigos e ensaios sobre a
Amazônia, reunidos no livro póstumo À margem da história (1909). Nele, o autor de Os Sertões faz uma crítica aguda à atividade predadora do extrativismo do látex e ao trabalho semiescravo dos seringueiros.
São
famosas estas frases euclidianas: “O seringueiro é um homem que
trabalha para escravizar-se”. Ou: “Os ‘caucheiros’ aparecem como os mais
avantajados batedores da sinistra catequese a ferro e fogo, que vai
exterminando naqueles sertões remotíssimos os mais interessantes
aborígenes sul-americanos”.
O
uso do verbo “exterminar” não é um exagero retórico. Euclides percebeu
que o extrativismo predador operava uma dupla destruição: da floresta e
dos povos indígenas. Durante o Ciclo da Borracha (1880-1920) mais de 30
mil indígenas da região de La Chorrera (Colômbia) foram escravizados,
torturados e assassinados por capatazes da Peruvian Amazon Company.
Essas atrocidades – conhecidas como “O massacre do Rio Putumayo” –
constam no relatório de Roger Casement, um diplomata britânico nascido
na Irlanda. Em 1910, Casement, que era cônsul em Belém, viajou a La
Chorrera, onde testemunhou e depois divulgou as barbaridades cometidas
por capangas de barões da borracha.
No
século passado, as tentativas de “ocupar” e “desenvolver” a Amazônia
foram, além de fracassadas, extremamente danosas ao meio ambiente e aos
indígenas, ribeirinhos, quilombolas, pescadores. Alguns exemplos
conhecidos: Fordlândia, no Vale do Tapajós (1927-45); a Rodovia
Transamazônica e o Projeto Jari (empreendimento agroflorestal e
industrial de Daniel Ludwig), ambos realizados no começo dos anos 1970. A
partir desta década, a grilagem de áreas de proteção ambiental, terras
da União e territórios indígenas, e a ação predadora de mineradoras,
madeireiras e grandes fazendeiros, se intensificaram, e nunca foram
interrompidas.
Esses
“empreendimentos”, nefastos aos povos da floresta, estimularam um fluxo
enorme de migração interna, gerando mais miséria e violência em
municípios e capitais da região.
Desde
a redemocratização do País, nenhum governo refletiu seriamente sobre a
diversidade social, econômica, geográfica, cultural e antropológica da
Amazônia. Obras megalômanas – como construções de hidrelétricas – afetam
duramente indígenas e moradores de vilas, comunidades e cidades. Uma
crítica lúcida e bem argumentada a essas edificações faraônicas foi
feita pelo premiado jornalista Lúcio Flávio Pinto no livro A Amazônia em questão: Belo Monte, Vale e outros temas (B4 editores, 2012).
Mas
é também verdade que nenhum governo anterior a este foi tão cúmplice da
destruição do bioma amazônico. O ministro do Meio Ambiente, incapaz de
entender a complexidade da Amazônia, nem sequer se interessa pelos
anseios e pelas expectativas de sua população. Além disso, ignora
estudos de cientistas e pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas
da Amazônia (Inpa), Museu Goeldi, Instituto Butantan (Belterra),
Fiocruz e de universidades brasileiras. Nesse aspecto, o ministro é
coerente com as correntes do governo que desprezam o conhecimento
científico, as humanidades e a tecnologia.
São
inúmeros os diagnósticos, análises, pesquisas científicas e
antropológicas feitos por estudiosos brasileiros e estrangeiros. Um
exemplo notável é o volume Amazônia: do discurso à práxis
(Edusp, 2.º ed., 2004), do saudoso geógrafo Aziz Ab’Sáber. Os ensaios
reunidos nessa coletânea são importantíssimos para a compreensão da
Amazônia. Mas nada disso parece sensibilizar o primeiro mandatário e sua
equipe ministerial, cujo desprezo por um mínimo de racionalidade terá
consequências desastrosas, senão trágicas, para todo o País.
A
tragédia não se limita ao desmatamento e à invasão de terras indígenas.
É preciso lembrar que nas cidades da Amazônia, onde vive a grande
maioria de seus habitantes, a desigualdade é brutal. Em 1905, Euclides
da Cunha já alertava para o contraste social e econômico em Manaus, que
crescia “à gandaia”. Hoje, mais de 60% dos domicílios dessa cidade não
têm acesso ao saneamento básico, e 30% ao abastecimento de água. Esses
índices – também alarmantes quanto à violência em Manaus, Belém e outras
capitais – refletem a miséria e a degradação urbana na região mais rica
em recursos naturais do planeta.
Mas
quem de fato usufrui dessa riqueza? Quem realmente se beneficia com a
exportação de minérios, madeira e com a construção de hidrelétricas?
Para que serviu a construção, em Manaus, da Arena da Amazônia? Ou da
Arena Pantanal, em Cuiabá?
Vários
artigos publicados em revistas científicas sérias já alertaram para a
alta concentração de gases de efeito estufa sobre a floresta tropical, o
que certamente será desastroso para o Brasil e para todo o planeta. Uma
catástrofe se aproxima. Mesmo assim, o presidente está interessado em
exportar troncos de árvores nativas.
Se
argumentos científicos não convencem os que professam uma fé fervorosa
na irracionalidade, é o caso de perguntar: quais ambições estão ocultas
nessa sanha devastadora da Amazônia? Ou: o que há por trás de tantos
atos irracionais? Sem dúvida, um alucinado projeto de poder. Mas esse
projeto tem aliados poderosos, dentro e fora do Congresso. O empenho do
governo federal em perdoar multas ambientais e fragilizar a fiscalização
de atividades predadoras é uma carta branca aos grandes grileiros e
incendiários. Não se trata de política liberal. O nome disso é barbárie
mesmo.
* Milton Hatoum
nasceu em 1952, em Manaus. Formado em Arquitetura pela USP, trabalhou
como jornalista cultural e foi professor universitário de História da
Arquitetura e depois de Literatura Francesa. Seu romance de estreia, Relato de um certo Oriente, ganhou o Prêmio Jabuti em 1989. Sua obra já foi traduzida para 12 línguas e publicada em 14 países. É colunista do Estado.
Fonte: https://www.estadao.com.br/infograficos/cultura,amazonia-uma-catastrofe-se-aproxima,1062699 22/12/2019
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