O sociólogo Michel Maffesoli é professor emérito da SorbonneCLAUDIO FACHEL/ARQUIVO/JC
Economia colaborativa mostra que é preciso andar contra a adversidade, diz Maffesoli
"Não sei no Brasil, mas vejo na França compartilhamento de
carro, colocação, coworking, "coetc.". Isso vem do latim "cum",
com", diz Michel Maffesoli. O esclarecimento é necessário para quem
comece a conhecer a obra do sociólogo francês por "A Palavra do
Silêncio" (trad. Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco, Palas
Athena, R$ 38, 110 págs.), lançado no Brasil em setembro. Para ele,
é cada vez mais difícil viver nas megalópoles, das quais São Paulo é uma
expressão; há uma necessidade de andar juntos contra a adversidade.
No livro, o professor emérito da Sorbonne, onde fundou e dirige o
Ceaq (Centro de Estudos sobre a Atualidade e o Cotidiano), defende a
ideia de que uma nova espiritualidade, que revalorize o rito sobre a
palavra, é necessária. Mas, embora tenha se debruçado sobre a religião
ao longo de toda sua carreira, Maffesoli amplia o termo, falando das
mais diversas formas de congregação - como as "tribos urbanas", termo
cunhado por ele.
"Gosto muito de etimologia, religião vem de 'religare', religar.
Sempre tentei mostrar que só era possível compreender a estrutura do
'viver juntos' compreendendo seus mitos, suas fantasias, tudo o que é
seu imaginário. E a religião ocupa um lugar importante nesse
imaginário." Em passagem por São Paulo para lançar "A Palavra do
Silêncio", Maffesoli falou sobre as diferentes formas de espiritualidade
e congregação que vê no cotidiano.
O senhor vem dizendo que nosso século verá um aumento da
espiritualidade. Ela seria como o senhor defende em "O Silêncio da
Palavra", um nexo mais direto, menos racional?
Michel Maffesoli - Minha obsessão tem sido, ao
longo dos anos, refletir sobre o fato de que estamos passando de uma
época moderna a outra que, na falta de termo melhor, chamamos
pós-moderna. O que chamamos de modernidade começa com o cartesianismo;
prossegue com a Reforma Protestante e se funda, filosoficamente, no
Iluminismo; conforma no século 19, os grandes sistemas sociais; e, no
meu ponto de vista, dura até a metade do século 20. Nesses três séculos e
meio, o tripé da vida social é a emergência do individualismo, a
prevalência do racionalismo e a ideia de progressismo. As novas gerações
não creem mais nesse tripé e privilegiam a comunidade, o que em outra
época chamei "tribo"; não mais o racional, mas o emocional; não mais o
progressismo, mas o presente. Para mim isso é a religiosidade juvenil.
Eles não se reconhecem mais no materialismo econômico que se encontra
tanto no que resta dos marxismos quanto entre os liberais. Por outro
lado há, mais e mais, o apelo do qualitativo da existência, o fazer da
vida uma obra de arte, dito à moda de Nietzsche. O fato de que não será
mais o trabalho o valor essencial; de que coisas muito simples, os
compartilhamentos, as novas formas de solidariedade, elementos de
generosidade - elementos que são religiosos.
Parece uma perspectiva otimista.
Maffesoli - Não gosto desse adjetivo que me
atribuem muitas vezes, porque é um qualificativo moral, e não sou
moralista. Sou realista. Meu trabalho consiste em ver. É isso a
fenomenologia, para usar um termo um pouco mais chique. Sob essa
perspectiva, muito concretamente, vejo que funciona. Não sei no Brasil,
mas vejo na França compartilhamento de carro, colocação, coworking,
"coetc.". Isso vem do latim "cum", com. Esse é o elemento empírico. É
cada vez mais difícil viver nas megalópoles, das quais São Paulo é uma
expressão; há uma necessidade de andar juntos contra a adversidade.
O senhor também vem falando, ao longo desses anos, que a
emoção vem ganhando terreno sobre um projeto racionalista. Existe uma
ligação entre essa prevalência do emocional e a ascensão dos populismos?
Maffesoli - A intelligentsia - os jornalistas, os
políticos, os acadêmicos - tendem a ver o copo meio vazio. É um problema
das elites, desconectadas do povo, pensar que tudo vai mal. Já deu para
compreender que eu gosto de ver o copo meio cheio. Tenho um livro,
"Elogio da Razão Sensível", em que digo que não é o caso de separar a
razão da emoção, que é uma questão de "holos", o todo. Que somos o
conjunto. Não pretendo dar à emoção o lugar único, como não quero dar à
razão esse lugar. A modernidade repousou sobre a ruptura. Tentei mostrar
que deve haver essa sinergia.Para mim, essa perspectiva complexa, de
complementaridade, é da ordem da sabedoria popular. E tenho um pouco de
medo dessas elites que, agora, vão tachar o povo de populista. Lancei um
livro, "La Faillite des Élites" [a falência das elites, em coautoria
com Hélène Strohl, recém-publicado na França], no qual tento mostrar que
há uma estigmatização da palavra "populista" porque há uma espécie de
incompreensão dessa sabedoria popular que faz a ligação entre o espírito
e o corpo. Escrevi alguns artigos sobre os "coletes amarelos", fui até
eles ver o que estava acontecendo e vi que há uma espécie de sabedoria
que não se reconhece mais no aspecto racional dos tecnocratas, dos
políticos de direita ou de esquerda. Mas, ao contrário, há um retorno
desse que é o fundamento mesmo da democracia, "demos" [povo].
O senhor já deu como exemplo desse retorno da emoção as
manifestações de jovens no Brasil em 2013. Esses protestos acabaram
reunindo aqueles que eram contra a política tradicional. Seguiram-se o
impeachment de Dilma Rousseff e a eleição de Bolsonaro. Essa resposta
emocional é desejável?
Maffesoli - É difícil falar de Bolsonaro. Não sou brasileiro.
Ele está bastante presente no noticiário, mesmo na França.
Maffesoli - Bom, vou ter que falar [ri]. O que me
impressiona, no mundo todo, é que haja tal distanciamento entre as
elites e o povo que cause a emergência dessas figuras - além de
Bolsonaro, Salvini, na Itália, Trump, nos Estados Unidos, Boris Johnson,
na Inglaterra. Meu presidente é um homem inteligente. Não, é instruído.
Tem essa capacidade de dominar as ferramentas econômicas e
diplomáticas, mas nenhum contato com o povo. Esse é para mim o perigo.
Como disse num artigo, esses democratas não são demófilos [amigos do
povo]. Digo aos meus amigos brasileiros que têm de se questionar; por
que vocês têm essa coisa terrível [ri], por que na França temos o que
temos? É preciso ter a humildade de aceitar que não é "culpa do povo".
Em seu livro, o senhor critica o protestantismo, em que a
palavra supera o rito e a liturgia. Mais de 30% dos brasileiros são
evangélicos. Onde entram essas designações religiosas no quadro do
retorno à espiritualidade?
Maffesoli - O protestantismo foi a marca da
modernidade e esse protestantismo é uma forma muito racionalista de
disfarçar o ateísmo. Costumo dizer que o Brasil é o laboratório da
pós-modernidade, e também nisso o é. Vemos aqui um afluxo dessas
denominações, por motivos individuais, como sair de vícios, mas também
por um sentido de comunidade nada desprezível. Do meu ponto de vista,
porém, é um combate de retaguarda. Acho muito mais interessante, no
quadro brasileiro, o papel que têm o candomblé ou a umbanda. Tenho
amigos da minha idade no Brasil, marxistas, que se tornaram pais de
santo!
O culto do natural, do ancestral, o retorno ao campo seriam movimentos sociais que denotam uma busca por religação espiritual?
Maffesoli - Quanto a esse retorno à "mãe terra" e
outras manifestações, falo de uma "invaginação do sentido", por oposição
à modernidade, em que prevaleceu o falo espermático. O sentido só se
compreendia pela projeção fálica. Um dos meus livros, "Matrimonium",
tinha como subtítulo "Pequeno Tratado de Ecosofia". Com "ecosofia"
--"oikos", casa, "sofia", sabedoria-- faço a oposição da ecologia
política. É a sabedoria da casa comum. Não se trata do homem mestre e
possuidor da natureza de Descartes. É uma religiosidade ambiental que
atinge uma enormidade de pessoas. As novas gerações, que vão garantir o
futuro da sociedade, têm uma sensibilidade para esse tema.
Isso nos leva à ativista Greta Thunberg, para alguns uma figura messiânica. Essas figuras são necessárias hoje?
Maffesoli - Pessoalmente não gosto dela, acho
desagradável, agressiva. Mas o que ela representa é interessante. Cada
época tem sua figura emblemática, é Durkheim quem diz. A figura
emblemática moderna é o adulto sério, racional, produtor e reprodutor. O
grande burguês. Uma das minhas hipóteses acerca da pós-modernidade
repousa na figura de Dionísio, a criança eterna. É interessante que ela
seja uma representação dessa criança.
O seu livro fala da necessidade do silêncio. Mas cada vez
mais as pessoas dizem tudo o que pensam. Quando nos manifestamos nas
redes sociais, buscamos uma tribo ou tentamos nos individualizar?
Maffesoli - Auguste Comte - ele era de
Montpellier, como eu, hoje é pouco lido, mas o li bastante-- definia a
sociedade e a sociologia por uma fórmula em latim, "reductio ad unum",
redução a um - a unidade do Estado, da identidade. Quando cunhei o termo
"tribo" era uma uma provocação para mostrar como havíamos explodido
essa unidade e que, de certa forma, já não prevaleceria o indivíduo, mas
a pessoa plural. "Persona" significa "máscara", se sou uma "pessoa
plural" tenho máscaras. Nas redes sociais, vivem-se essas máscaras.
Então, de certa forma, no nível das redes sociais, que é para mim o
nível do tribalismo pós-moderno, o que se dá é a aplicação do que diz
Arthur Rimbaud: "Eu é um outro". Não é ou isso ou aquilo, é isso e
aquilo. Não deixa de ter uma dimensão religiosa, no sentido de
"religare", de estar em relação com o outro.
No livro, o senhor diz que só existimos pelo olhar do
outro. Essa comunhão na alteridade encontra expressão em frases como "Eu
sou Charlie" e suas variações. A palavra substitui o ato?
Maffesoli - Acho que, nesse "eu sou isso, sou
aquilo" o que importa não é o "isso" ou o "aquilo", mas o "eu sou". A
modernidade tem como uma de suas marcas o encerramento em si mesmo.
Todos conhecem o "penso, logo existo" de Descartes, mas poucos sabem o
que completa a frase--"na fortaleza da minha mente". A fortaleza da
mente foi a grande ideia do indivíduo moderno. Quando digo "eu sou
Charlie", "sou isso", "sou aquilo", é essa explosão de si no outro. Para
o bem e para o mal. Na guerra santa islâmica também há a explosão de si
no outro. Não estamos mais encerrados numa identidade pessoal. É o
outro que me cria e, de novo, há nisso uma dimensão religiosa. Estamos
passando da era do eu para a do nós. Voltando à sua questão sobre as
denominações protestantes, para mim elas são o fim. Elas encerram. Que
os políticos, como seu presidente, saibam se valer delas, é outra coisa.
Esse nós, porém, não é coeso.
Maffesoli - Poderíamos terminar dizendo que
estamos num momento em que há uma diferença entre a sociedade oficial e a
sociedade oficiosa. A oficial é representada por pessoas da minha
idade, acadêmicos, políticos, jornalistas, a intelligentsia, os que têm
poder de dizer e fazer. Ela continua nos velhos caminhos modernos -
individualismo, racionalismo, progressismo. Quando olhamos as práticas
juvenis da sociedade oficiosa - e, quando digo juvenis não me restrinjo
às novas gerações, como disse antes, há esse mito da criança eterna -,
essa sociedade está em desacordo com a oficial. Na França, um eleito, do
presidente a um deputado, representa 12% da população. Muita gente não
se inscreve para votar, 60% da população ficam de fora, a partir daí é
que vem a divisão. Essa sociedade oficial é endogâmica. E há algo
diferente em gestação, que para mim é o retorno do povo. A primavera do
povo. E que vem sendo chamado de populismo - uma maneira de estigmatizar
o fato de que esse povo já não se reconhece porque não é mais
representado. Retomando Hannah Arendt, ela dizia que, para que haja
representação política, primeiro deve haver representação filosófica.
Que eu tenha coisas a dizer que lhe agradem, que eu convença você e você
me dê sua voz. Agora há essa espécie de secessão entre oficial e
oficioso. Já deve ter dado para entender, o que me interessa é o
oficioso. - Folhapress
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Fonte: https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/cadernos/empresas_e_negocios/2019/12/718178-economia-colaborativa-mostra-que-e-preciso-andar-contra-a-adversidade-diz-maffesoli.html
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