A
turbulenta política latino-americana sempre fascinou o escritor peruano
Mario Vargas Llosa*, ganhador do Nobel de Literatura de 2010 – do
peronismo argentino às guerrilhas nicaraguenses, o autor não se furta de
fazer ácidos comentários. É o que inspirou seu romance mais recente, Tiempos Recios (Tempos Difíceis), ainda sem tradução no Brasil.
A
obra se inspira em um golpe militar apoiado pelos Estados Unidos contra
o presidente guatemalteco Jacobo Árbenz em 1954, episódio que Llosa
acredita ter sido definitivo para o destino do continente.
Na
trama, o autor desvenda conflitos e conspirações que devastaram a
política regional naquela década. Obcecado pela guerra fria, o governo
dos EUA acusou Árbenz de ser um fantoche soviético ao empreender uma
reforma agrária contrária aos interesses de um grande conglomerado de
frutas.
Llosa
tem o olhar de um intelectual liberal, moldado pelas ideias de sete
pensadores, que formaram sua base de leitura e fomentaram a defesa da
liberdade de expressão como um valor fundamental para o exercício da
democracia. O processo de formação desse pensamento é revelado em O Chamado da Tribo
(Objetiva), autobiografia intelectual de um jovem que, desgostoso com o
marxismo, descobre a tradição de um pensamento que favorece o indivíduo
frente a um grupo social, uma nação, ou mesmo a um partido político e
que defende a liberdade de expressão como um valor fundamental para a
vivência democrática. Sobre os dois livros, Llosa conversou com Estado, por telefone, de Madri, na Espanha.
Como o senhor analisa a democracia praticada na América Latina?
É
muito melhor ter democracias imperfeitas, até corrompidas, que
ditaduras que não são eficientes por fomentar a delinquência, o roubo, a
manipulação da realidade. Ao menos, não temos, na América Latina atual,
ditaduras militares – temos ditaduras ideológicas, presentes em Cuba,
Venezuela, Nicarágua. Temos democracias imperfeitas, mas que podem ser
corrigidas por meio de denúncias de roubos e das políticas mafiosas dos
governos. Temos polícias imperfeitas, mas, no caso do Peru, vemos
políticos e empresários que foram presos por má conduta. Isso é um fato
novo em nossa história republicana. Ao menos significa um progresso em
relação às ditaduras de anos passados, que nunca reconheciam os roubos, a
putrefação em que viviam, privilegiando os tiranos que voltavam ricos
para suas casas. A situação hoje é outra, tivemos um progresso. Não
podemos nunca nos esquecer: a corrupção é uma praga terrível para a
democracia, é preciso combatê-la com muita resolução e energia.
E como avalia o liberalismo em prática no continente?
O
caso mais notável é o do Chile, que primeiro optou por acabar com uma
ditadura feroz, sanguinária, que foi a de Pinochet. Mesmo assim, houve
algo positivo para o país, que foi a política econômica que trouxe muita
prosperidade. Assim, o acordo entre a direita e a esquerda para manter
essa política econômica dentro da legalidade foi algo extraordinário do
ponto de vista político e econômico, pois atraiu um progresso que o
Chile nunca teve em sua história, uma política de pleno emprego. E não
houve, na América Latina, um país que diminuiu tanto a pobreza,
convertendo socialmente essas pessoas em classe média. Então, desse
ponto de vista, o Chile era um caso de sucesso e, por isso, não se
esperava aquela explosão social que tomou conta do país e que realmente
surpreendeu o mundo. As bases materiais não justificam esse tipo de
protesto. Mas algo falhou. A impaciência da classe média que se descobre
limitada e impossibilitada de alcançar o progresso por causa de um
sistema de privilégios é uma explicação. Nesse campo, o Chile não
evoluiu como deveria e não criou um sistema de educação e de saúde
públicas ao nível da privada. É uma hipótese para tentar explicar algo
muito surpreendente.
O senhor acredita, então, que a crise chilena está mais próxima do ocorrido na Europa que propriamente na América Latina?
Sim,
o caso chileno está mais próximo da Europa. Primeiro porque Chile é
quase um país de primeiro mundo. E o que houve lá é parecido com
explosões sociais como a que aconteceu na França, com os jalecos
amarelos. São movimentos claramente populares, sobretudo de classes
médias que veem um limite em suas aspirações. Os revoltosos acusam o
sistema de haver criado artificialmente esse limite, que impede sua
ascensão por causa de privilégios, a setores que se valem de relações
para alcançar postos mais altos no sistema. Um tipo de problema que
assola praticamente todos os países desenvolvidos. E me impressiona que
isso aconteça no Chile.
Como o senhor avalia a vitória de Alberto Fernández na eleição argentina, com Cristina Kirchner como vice?
Foi
uma tragédia para a Argentina. Essa vocação suicida dos argentinos é
algo verdadeiramente extraordinário, pois já se sabe que todos os
problemas atuais do país foram causados pelo peronismo. Portanto, é
impressionante que os eleitores reconduzissem ao poder essas pessoas que
produzem uma política absolutamente catastrófica. Os argentinos vão
lamentar enormemente a derrota de Mauricio Macri – claro que não foi um
governo perfeito, mas, mesmo assim, não terá sido pior do que está por
vir.
Falando agora de seu mais recente livro, Tempos Difíceis,
o senhor acredita que, se os Estados Unidos, em vez de derrubar Árbenz,
tivessem apoiado suas reformas, a história da América Latina
provavelmente teria sido diferente?
Com
certeza, foi um grande erro. Claro que havia um contexto que explicava
muitas atitudes – estamos falando da guerra fria, do Macartismo. Mas
houve uma falta de lucidez do governo americano naquele momento. O
presidente anterior, Harry Truman, evitou invadir a Guatemala, resistiu
às pressões e respeitou o que se passava lá. Mas a América Latina era
uma terra de ditadores. Guatemala teve dois governos democráticos e o de
Árbenz não era comunista nem socialista – ele queria modernizar um país
que vivia ainda na era dos latifúndios com base na democracia moderna,
fomentada por empresários independentes, dispostos a pagar impostos.
Isso gerou o conflito com a multinacional americana United Fruit, que
organizou, por meio de fake news, um aparato publicitário que permitiu a
invasão. Se os EUA tivessem apoiado esse governo democrático,
provavelmente a América Latina não teria vivido o pesadelo que durou os
50 anos de guerrilhas em quase todos os países para alcançar o suposto
paraíso comunista, à maneira de Cuba. O que aconteceu foi a América
Latina se inchar de ditadores militares, provocando a morte de milhares
de pessoas. Isso atrasou tremendamente a democratização da região. Foi
uma tragédia. Talvez nem a revolução cubana tivesse essa face radical,
marxista, comunista, caso a Guatemala tivesse outra sorte.
É
curioso o prólogo do livro, em que o americano Edward L. Bernays
defende a necessidade de um golpe na Guatemala – a quantidade de
inverdades seria caracterizada hoje como fake news.
E
foi uma jogada de grande êxito, pois as pessoas acreditaram nessa
ficção tomada por verdade de que a Guatemala era uma praia particular da
União Soviética quando, na verdade, não havia um russo sequer no país.
Árbenz foi acusado de abrir as portas para a União Soviética. Um
disparate. Mas esse fruto de propaganda criminosa – que hoje, sim, seria
fake news – fez com que os americanos acreditassem na possibilidade de
uma invasão russa.
Quão danosas são as fake news, na sua opinião?
É
um problema mundial provocado pela revolução digital, que transforma
cada pessoa do planeta em uma espécie de jornalista ao divulgar
notícias. Hoje, é difícil distinguir as notícias verdadeiras das fake
news, vivemos uma espécie de confusão extraordinária. Temos de tomar
todos os cuidados, pois não é impossível que uma sociedade seja
manipulada pelas fake news.
E como a democracia convive com a mentira?
Infelizmente,
não é possível existir uma democracia sem mentiras. O mais importante é
a existência de uma imprensa responsável, um jornalismo autêntico,
honesto, que se dê conta da sua responsabilidade – muito maior hoje em
dia, por conta da abundância das fake news. Não acredito que exista no
governo democrático outra maneira de combate, porque já sabemos o
resultado quando se estabelecem sistemas de censura na América Latina:
surgem governos que só defenderam mentiras.
E o que o senhor pensa sobre a autocensura, também muito praticada em países com governos com grande patrulhamento?
É
muito importante, para os cidadãos responsáveis, ter coragem de
defender a verdade, de não aceitar a censura e muito menos a
autocensura. Isso é o princípio do fim em uma democracia. É essencial
que os meios de comunicação mantenham sua independência diante do poder.
Na América Latina, o populismo surge outra vez, como na Bolívia, com
Evo Morales ficando 12 anos no poder à base de fraudes. É uma vergonha.
Sobre seu livro O Chamado da Tribo, o que motivou a escrita?
Era um livro que tinha muita vontade de escrever desde que li Rumo à Estação Finlândia,
do crítico americano Edmund Wilson, uma obra sobre a ideia do
socialismo por meio de seus grandes pensadores, grandes dirigentes
políticos, e que termina com a chegada de Lenin à estação Finlândia, em
São Petersburgo, pronto para iniciar a Revolução Russa. Desde que li,
pensei em fazer algo parecido, mas com o liberalismo. O resultado não
foi bem isso – “tribo” seria um grupo de pensadores liberais que tiveram
muita influência sobre mim, por isso que se trata de um texto
autobiográfico. É a trajetória intelectual e política de sete pensadores
em uma época em que eu já vivia o desencanto do socialismo.
O senhor buscou explicar no livro que ideologias contrárias à liberdade veem o liberalismo como seu grande inimigo?
O
liberalismo não é uma ideologia, que é uma espécie de religião laica e
só admite crentes – em alguns casos, só fanáticos. Liberalismo é um
punhado de ideias compartilhadas por pessoas com diferenças de
pensamento, como aliás ocorre na sociedade, onde sempre há muita
discordância. O liberalismo reconhece que as diferenças devem
prevalecer. Por isso, não diferencio liberalismo de democracia. Para
mim, o liberalismo deu ideia e consistência de liberdade, além da
legalidade, para a constituição da democracia, deu um fundamento
econômico muito importante que permitiu que as democracias fossem
prósperas, modernas, que pudessem evoluir tanto na área da ciência como
na empresarial. Criou ainda condições materiais para o surgimento de uma
política social avançada. São ideias fundamentadas na liberalidade e na
legalidade. Finalmente, a ideia de que um Estado para ser eficiente tem
de ser grande é equivocada. Os Estados grandes são, em geral,
ineficientes. O ideal é ser pequeno, mas forte, que garanta a segurança,
a propriedade, a liberdade de imprensa e de mercados, ao mesmo tempo em
que defenda, de forma sistemática e sem concessões, a liberdade.
Reportagem por Ubiratan Brasil 22/12/2019
*Nascido em Arequipa, no Peru, em 1936, Mario Vargas Llosa
é jornalista, dramaturgo, ensaísta, crítico literário e escritor
consagrado internacionalmente. Com vasta produção literária, que inclui
peças teatrais, ensaios e memórias, recebeu o Nobel de Literatura em
2010. Também venceu os prêmios Cervantes, Príncipe de Astúrias e
PEN/Nabokov, entre outros. Em 1990, foi candidato à Presidência do Peru,
mas perdeu a eleição para Alberto Fujimori. A experiência foi relatada
no livro Peixe na Água. É colunista do Estado.
Fonte: https://www.estadao.com.br/infograficos/cultura,melhor-democracias-imperfeitas-ate-corrompidas-que-ditaduras-eficientes,1063841
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