O filósofo francês Luc
Ferry durante palestra no ciclo Fronteiras do Pensamento
Foto: GREG
SALIBIAN/FRONTEIRAS DO PENSAMENTOO
Pensador e ex-ministro da Educação francês esteve no Brasil para
palestrar no ciclo Fronteiras do Pensamento
André
Cáceres, O Estado de S.Paulo
07 de dezembro de 2019
Luc Ferry é um pensador multifacetado. Além de filósofo premiado, com
livros publicados no mundo todo, inclusive no Brasil, ele foi ministro da
Educação da França entre 2002 e 2004 – ocasião em que tomou a polêmica decisão
de banir os véus islâmicos das escolas francesas – e é autor de histórias em
quadrinhos que adaptam lendas da mitologia grega para o público contemporâneo,
algo inusitado para um filósofo.
Ferry esteve no Brasil em novembro para se apresentar no Fronteiras do Pensamento,
ciclo de palestras que em 2019 girou em torno do tema Sentidos da Vida. O
autor, que acaba de lançar na França Sagesse et Follie du Monde Qui Vient
(Sabedoria e Loucura do Mundo por Vir), concedeu uma entrevista por e-mail ao Aliás.
Leia a seguir:
Há quase uma década, em seu livro ‘A Revolução do Amor’, o senhor
afirmou que no Ocidente ninguém morreria por uma religião. Hoje, como o senhor
vê a ascensão do nacionalismo e do fundamentalismo em vários países ocidentais?
Nacionalismo e fundamentalismo são coisas completamente diferentes. O
primeiro cresce em nossos países, o segundo vem do exterior, do mundo das
teocracias islâmicas. A verdade é que, neste início do século 21, os valores
democráticos se impõem cada vez mais como os únicos legítimos, se não como os
únicos imagináveis. Comparando-se com os regimes totalitários dos anos 1930, os
terroristas do Estado Islâmico continuam sendo, apesar de tudo, atores menores.
O exército do terrorismo é temível, mas é no máximo o exército dos fracos
contra o dos poderosos. Está longe de ter o poder dos mísseis soviéticos e dos
tanques alemães. No fundo, se pensarmos objetivamente, fora do terrorismo o
mundo todo mostra há 40 anos mais as vantagens da democracia que suas
desvantagens. Essa evolução salutar tem uma razão de fundo, essencial ou
estrutural, que vai além dos imprevistos da história: a democracia não é
ocidental, ela é humana; não é particular, é universal, simplesmente por ser o
único modo de governo que convém às pessoas adultas, a uma humanidade
autônoma e livre. Perto dela, todos os outros regimes são regressão. Podemos
sem dúvida aperfeiçoar os regimes democráticos, melhorá-los em vários aspectos,
lutar contra corrupção, dar mais peso às consultas populares. Considerando-se
tudo, porém, é sob essa forma política que a humanidade, pesando bem a
liberdade que a caracteriza mais que tudo, tornou-se ela mesma. Daí a ideia de
um fim da história, que não é tão estúpida. Pode-se argumentar que os
nacionalismos de hoje são catastróficos, na Itália, na Hungria, nos Estados
Unidos, no Brasil. Mas são muito menos se comparados àqueles do século 20. A
1.ª Guerra Mundial fez 20 milhões de mortos; a 2.ª, 60 milhões. Podemos não
gostar de Trump, mas por enquanto ele não matou em massa. Ao mesmo tempo, os
sistemas democráticos sobrevivem em paz, as eleições não foram suspensas nos
países que acabei de citar e os eleitores podem sempre mudar o voto no próximo
pleito. Enfim, o nacionalismo é ligado ao fato de que a globalização assusta. O
mercado se tornou mundial, mas as políticas continuaram nacionais, o que as
torna pouco efetivas. As pessoas têm o sentimento de que, voltando aos valores
nacionais, retomarão o controle do mundo. É um erro, mas compreensível.
Como ex-ministro, como o senhor vê a importância do investimento em
educação?
Investir na educação é vital, não apenas pelo bem das crianças, mas pelo
bem do país. Por que ela é necessária? Porque o mundo que vem aí é o da
tecnologia. A terceira revolução industrial é a das novas tecnologias, do
digital, da robótica e, principalmente, da inteligência artificial. Para quem
não estiver preparado para esse mundo, viver nele será terrível. Eles estarão
sem rumo, relegados a profissões medíocres, condenados ao desemprego. É
essencial para nossas crianças, mas também para nossos países, estar preparados
para esse mundo que vem, e isso só pode acontecer por meio de nossos sistemas
educativos.
Como poderemos lutar por um humanismo secular como o que o senhor
defende em uma época na qual as pessoas não têm como distinguir informações
verdadeiras das falsas?
Nada de pânico, por favor! Assumir que somos manipulados pelos dados é
paranoia, visto que na realidade não há nada de misterioso no fato de a
publicidade e o discurso político tentarem nos convencer: é seu papel
explícito, sua finalidade manifesta. Cabe a nós reagir, conservar nosso
espírito crítico. Que os estrategistas da inteligência artificial possam prever
e antecipar nossas escolhas não tem nada de errado e nem vai contra a
liberdade, uma vez que nosso uso da tela ou de objetos conectados a redes lhes
dá essas informações. Todos os nossos amigos sabem mais ou menos como votamos,
onde passamos férias e se gostamos de chocolate. O fato de que a máquina à qual
você confiou livremente essas informações saiba coisas a seu respeito não prova
que suas escolhas não sejam livres. Na verdade, tentando superproteger as
pessoas, tratando-as como menores incapazes, negamos-lhes a liberdade.
Seus quadrinhos falam de mitologia grega. Como o senhor explica a
presença tão forte de muitos mitos gregos em nosso mundo contemporâneo?
Por que essas “velhas histórias” de gigantes, ninfas, sátiros, górgonas,
nos interessam até hoje? Porque elas levantam uma questão que nos toca a todos,
a do que é a vida boa para os mortais. Vejamos um pouco a Odisseia, de Homero.
Sob muitos aspectos, ela é a matriz, com a Teogonia, de Hesíodo, da mitologia e
da filosofia gregas. A Odisseia não é uma narrativa de aventuras, nem uma
epopeia literária, mas o itinerário filosófico de um homem, Ulisses, que vai da
guerra à paz, do ódio ao amor, do exílio à volta para casa, do caos à harmonia
– em resumo, da vida má à vida boa. Ele busca a solução da questão da qual
derivará toda a filosofia: existe uma vida boa para os mortais? E ele nos dá a
primeira grande resposta: para se chegar à vida boa, é preciso vencer os medos
e fugir da nostalgia do passado, da esperança de um futuro melhor, a fim de
viver no presente. Como Ulisses em Ítaca, o sábio se ajusta ao cosmo como uma
pequena peça de um quebra-cabeça se integra ao quadro formado. Ora, como o
cosmo é eterno, o próprio sábio se torna um fragmento da eternidade. É uma
mensagem grandiosa que atravessa os séculos: a vida boa é a harmonia do homem
com a harmonia do mundo. Meus quadrinhos oferecem um meio de entrar no universo
grego: os desenhos são fiéis aos menores detalhes das roupas, armas, joias,
palácios, barcos e carruagens da época. Além disso, eu sempre parto dos textos
e histórias originais mais antigos, o que põe os quadrinhos no mesmo nível dos
melhores cursos universitários…
O senhor veio ao Brasil falar sobre o significado da vida. Qual seria
uma forma satisfatória de dar sentido à vida sem criar um sistema religioso de
pensamento, mantendo-se uma filosofia secular?
Muita gente pensa que espiritualidade signifique religião. É um erro
grave, pois todas as grandes filosofias são espiritualidades laicas. Para
entender isso, é necessário fazer uma distinção infelizmente oculta do debate
público: é preciso evitar confundir duas esferas de valores muito diferentes,
comparáveis àqueles pelos quais nossas vidas se orientam permanentemente:
valores morais de um lado e valores espirituais de outro. Vejamos isso um pouco
melhor. A moral, em qualquer sentido que se entenda, é o respeito ao outro, aos
direitos do homem, ao qual se soma a benevolência, a generosidade, a gentileza.
Atuar moralmente é respeitar o próximo e lhe desejar, se possível ativamente, o
bem. Não conheço nenhuma moral que diga o contrário. Seja Sócrates, Jesus, Buda
ou Kant, todos nos convidam a respeitar o outro, a ter compaixão e a rejeitar a
violência. Imaginemos por um instante que dispuséssemos de uma varinha mágica
que nos permitisse, de um só golpe, fazer com que todos os seres humanos se
conduzissem moralmente uns com os outros. Se aplicássemos com perfeição os
valores morais, não haveria mais neste planeta nem massacres, nem estupros, nem
roubos, nem assassinatos, nem injustiças e nem, provavelmente, uma desigualdade
social tão grande. Seria uma revolução. Entretanto – e é aí que vem à luz a
diferença entre valores espirituais e valores morais – isso não impediria que
envelhecêssemos, morrêssemos, perdêssemos um ente querido, sofrêssemos por amor
ou simplesmente nos aborrecêssemos com uma vida cotidiana marcada pela
banalidade. Pois essas questões – velhice, luto, amor, tédio – não são
essencialmente morais. Você pode viver como um santo ou uma santa, ser gentil
como os anjos, respeitar e ajudar o próximo, defender os direitos do homem...
que mesmo assim envelhecerá, morrerá, sofrerá. Essas realidades, como diz
Pascal, são de outra ordem, que depende da “espiritualidade” compreendida no
sentido da vida do espírito, aquela espiritualidade que não se limita ao
religioso e vai além da moral. De que se ocupa ela? De nossa relação com a
morte ou, na verdade com a questão da vida boa para os mortais, o que é a mesma
coisa. Desse ponto de vista, é evidente que existem dois tipos de
espiritualidade, duas maneiras de abordar a questão da sabedoria e do bem viver
para os que vão morrer e sabem disso, ou seja, todos nós: a espiritualidade que
tem deuses e fé são as religiões; a espiritualidade sem Deus e pelo caminho da
simples razão são as grandes filosofias – que, de Platão a nossos dias, se
ocupam da questão final sem passar por Deus e pela fé. / TRADUÇÃO DE ROBERTO
MUNIZ
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