terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Luc Ferry: 'A democracia não é ocidental, é humana', diz filósofo.


Luc Ferry
 O filósofo francês Luc Ferry durante palestra no ciclo Fronteiras do Pensamento 
Foto: GREG SALIBIAN/FRONTEIRAS DO PENSAMENTOO

Pensador e ex-ministro da Educação francês esteve no Brasil para palestrar no ciclo Fronteiras do Pensamento

André Cáceres, O Estado de S.Paulo 
07 de dezembro de 2019 
 
Luc Ferry é um pensador multifacetado. Além de filósofo premiado, com livros publicados no mundo todo, inclusive no Brasil, ele foi ministro da Educação da França entre 2002 e 2004 – ocasião em que tomou a polêmica decisão de banir os véus islâmicos das escolas francesas – e é autor de histórias em quadrinhos que adaptam lendas da mitologia grega para o público contemporâneo, algo inusitado para um filósofo. 

Ferry esteve no Brasil em novembro para se apresentar no Fronteiras do Pensamento, ciclo de palestras que em 2019 girou em torno do tema Sentidos da Vida. O autor, que acaba de lançar na França Sagesse et Follie du Monde Qui Vient (Sabedoria e Loucura do Mundo por Vir), concedeu uma entrevista por e-mail ao Aliás. Leia a seguir:

Há quase uma década, em seu livro ‘A Revolução do Amor’, o senhor afirmou que no Ocidente ninguém morreria por uma religião. Hoje, como o senhor vê a ascensão do nacionalismo e do fundamentalismo em vários países ocidentais?
Nacionalismo e fundamentalismo são coisas completamente diferentes. O primeiro cresce em nossos países, o segundo vem do exterior, do mundo das teocracias islâmicas. A verdade é que, neste início do século 21, os valores democráticos se impõem cada vez mais como os únicos legítimos, se não como os únicos imagináveis. Comparando-se com os regimes totalitários dos anos 1930, os terroristas do Estado Islâmico continuam sendo, apesar de tudo, atores menores. O exército do terrorismo é temível, mas é no máximo o exército dos fracos contra o dos poderosos. Está longe de ter o poder dos mísseis soviéticos e dos tanques alemães. No fundo, se pensarmos objetivamente, fora do terrorismo o mundo todo mostra há 40 anos mais as vantagens da democracia que suas desvantagens. Essa evolução salutar tem uma razão de fundo, essencial ou estrutural, que vai além dos imprevistos da história: a democracia não é ocidental, ela é humana; não é particular, é universal, simplesmente por ser o único modo de governo que convém às pessoas adultas, a uma humanidade autônoma e livre. Perto dela, todos os outros regimes são regressão. Podemos sem dúvida aperfeiçoar os regimes democráticos, melhorá-los em vários aspectos, lutar contra corrupção, dar mais peso às consultas populares. Considerando-se tudo, porém, é sob essa forma política que a humanidade, pesando bem a liberdade que a caracteriza mais que tudo, tornou-se ela mesma. Daí a ideia de um fim da história, que não é tão estúpida. Pode-se argumentar que os nacionalismos de hoje são catastróficos, na Itália, na Hungria, nos Estados Unidos, no Brasil. Mas são muito menos se comparados àqueles do século 20. A 1.ª Guerra Mundial fez 20 milhões de mortos; a 2.ª, 60 milhões. Podemos não gostar de Trump, mas por enquanto ele não matou em massa. Ao mesmo tempo, os sistemas democráticos sobrevivem em paz, as eleições não foram suspensas nos países que acabei de citar e os eleitores podem sempre mudar o voto no próximo pleito. Enfim, o nacionalismo é ligado ao fato de que a globalização assusta. O mercado se tornou mundial, mas as políticas continuaram nacionais, o que as torna pouco efetivas. As pessoas têm o sentimento de que, voltando aos valores nacionais, retomarão o controle do mundo. É um erro, mas compreensível. 

Como ex-ministro, como o senhor vê a importância do investimento em educação?
Investir na educação é vital, não apenas pelo bem das crianças, mas pelo bem do país. Por que ela é necessária? Porque o mundo que vem aí é o da tecnologia. A terceira revolução industrial é a das novas tecnologias, do digital, da robótica e, principalmente, da inteligência artificial. Para quem não estiver preparado para esse mundo, viver nele será terrível. Eles estarão sem rumo, relegados a profissões medíocres, condenados ao desemprego. É essencial para nossas crianças, mas também para nossos países, estar preparados para esse mundo que vem, e isso só pode acontecer por meio de nossos sistemas educativos. 

Como poderemos lutar por um humanismo secular como o que o senhor defende em uma época na qual as pessoas não têm como distinguir informações verdadeiras das falsas?
Nada de pânico, por favor! Assumir que somos manipulados pelos dados é paranoia, visto que na realidade não há nada de misterioso no fato de a publicidade e o discurso político tentarem nos convencer: é seu papel explícito, sua finalidade manifesta. Cabe a nós reagir, conservar nosso espírito crítico. Que os estrategistas da inteligência artificial possam prever e antecipar nossas escolhas não tem nada de errado e nem vai contra a liberdade, uma vez que nosso uso da tela ou de objetos conectados a redes lhes dá essas informações. Todos os nossos amigos sabem mais ou menos como votamos, onde passamos férias e se gostamos de chocolate. O fato de que a máquina à qual você confiou livremente essas informações saiba coisas a seu respeito não prova que suas escolhas não sejam livres. Na verdade, tentando superproteger as pessoas, tratando-as como menores incapazes, negamos-lhes a liberdade.  

Seus quadrinhos falam de mitologia grega. Como o senhor explica a presença tão forte de muitos mitos gregos em nosso mundo contemporâneo?
Por que essas “velhas histórias” de gigantes, ninfas, sátiros, górgonas, nos interessam até hoje? Porque elas levantam uma questão que nos toca a todos, a do que é a vida boa para os mortais. Vejamos um pouco a Odisseia, de Homero. Sob muitos aspectos, ela é a matriz, com a Teogonia, de Hesíodo, da mitologia e da filosofia gregas. A Odisseia não é uma narrativa de aventuras, nem uma epopeia literária, mas o itinerário filosófico de um homem, Ulisses, que vai da guerra à paz, do ódio ao amor, do exílio à volta para casa, do caos à harmonia – em resumo, da vida má à vida boa. Ele busca a solução da questão da qual derivará toda a filosofia: existe uma vida boa para os mortais? E ele nos dá a primeira grande resposta: para se chegar à vida boa, é preciso vencer os medos e fugir da nostalgia do passado, da esperança de um futuro melhor, a fim de viver no presente. Como Ulisses em Ítaca, o sábio se ajusta ao cosmo como uma pequena peça de um quebra-cabeça se integra ao quadro formado. Ora, como o cosmo é eterno, o próprio sábio se torna um fragmento da eternidade. É uma mensagem grandiosa que atravessa os séculos: a vida boa é a harmonia do homem com a harmonia do mundo. Meus quadrinhos oferecem um meio de entrar no universo grego: os desenhos são fiéis aos menores detalhes das roupas, armas, joias, palácios, barcos e carruagens da época. Além disso, eu sempre parto dos textos e histórias originais mais antigos, o que põe os quadrinhos no mesmo nível dos melhores cursos universitários… 

O senhor veio ao Brasil falar sobre o significado da vida. Qual seria uma forma satisfatória de dar sentido à vida sem criar um sistema religioso de pensamento, mantendo-se uma filosofia secular? 
Muita gente pensa que espiritualidade signifique religião. É um erro grave, pois todas as grandes filosofias são espiritualidades laicas. Para entender isso, é necessário fazer uma distinção infelizmente oculta do debate público: é preciso evitar confundir duas esferas de valores muito diferentes, comparáveis àqueles pelos quais nossas vidas se orientam permanentemente: valores morais de um lado e valores espirituais de outro. Vejamos isso um pouco melhor. A moral, em qualquer sentido que se entenda, é o respeito ao outro, aos direitos do homem, ao qual se soma a benevolência, a generosidade, a gentileza. Atuar moralmente é respeitar o próximo e lhe desejar, se possível ativamente, o bem. Não conheço nenhuma moral que diga o contrário. Seja Sócrates, Jesus, Buda ou Kant, todos nos convidam a respeitar o outro, a ter compaixão e a rejeitar a violência. Imaginemos por um instante que dispuséssemos de uma varinha mágica que nos permitisse, de um só golpe, fazer com que todos os seres humanos se conduzissem moralmente uns com os outros. Se aplicássemos com perfeição os valores morais, não haveria mais neste planeta nem massacres, nem estupros, nem roubos, nem assassinatos, nem injustiças e nem, provavelmente, uma desigualdade social tão grande. Seria uma revolução. Entretanto – e é aí que vem à luz a diferença entre valores espirituais e valores morais – isso não impediria que envelhecêssemos, morrêssemos, perdêssemos um ente querido, sofrêssemos por amor ou simplesmente nos aborrecêssemos com uma vida cotidiana marcada pela banalidade. Pois essas questões – velhice, luto, amor, tédio – não são essencialmente morais. Você pode viver como um santo ou uma santa, ser gentil como os anjos, respeitar e ajudar o próximo, defender os direitos do homem... que mesmo assim envelhecerá, morrerá, sofrerá. Essas realidades, como diz Pascal, são de outra ordem, que depende da “espiritualidade” compreendida no sentido da vida do espírito, aquela espiritualidade que não se limita ao religioso e vai além da moral. De que se ocupa ela? De nossa relação com a morte ou, na verdade com a questão da vida boa para os mortais, o que é a mesma coisa. Desse ponto de vista, é evidente que existem dois tipos de espiritualidade, duas maneiras de abordar a questão da sabedoria e do bem viver para os que vão morrer e sabem disso, ou seja, todos nós: a espiritualidade que tem deuses e fé são as religiões; a espiritualidade sem Deus e pelo caminho da simples razão são as grandes filosofias – que, de Platão a nossos dias, se ocupam da questão final sem passar por Deus e pela fé. / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ
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