José de Souza Martins*
Jair Messias não teve a capa da
“Time” como Greta Thunberg, mas tem a primeira página do “Diário Oficial da
União”
Pirralha com maiúscula, porque
ela mesma assumiu como batismo de fogo a classificação descabida e
preconceituosa que lhe foi aplicada pelo presidente do Brasil. Como reação
descabida por ter ela manifestado horror e indignação contra o assassinato de
dois índios guajajara no Maranhão. E por ter compreendido que não se trata de
um acaso, mas de um descaso, de um desinteresse do Estado brasileiro pela sorte
dos nativos.
Na sequência, a adolescente sueca
Greta Thunberg foi escolhida “Pessoa do Ano” pela “Time” e teve seu retrato na
capa da famosa revista, que milhões leem, por sua luta justa e necessária em
defesa de um mundo limpo, que seja, de fato, patrimônio da humanidade. E não
usurpação
praticada pela lucrativa economia
de emporcalhamento da Terra. Justa homenagem, porque ela infunde esperança e o
ânimo da resistência em milhões de jovens e estudantes do mundo inteiro, por
sua coragem de interpelar os poderes e os poderosos.
Jair Messias não teve a capa da
“Time”, mas tem a primeira página da Secção do Executivo do “Diário Oficial da
União”. Não é a mesma coisa, pois é publicação que ninguém lê. Mas é o consolo
que pode ter. Seu desdém pelas lutas sociais, pelo direito à diferença, pela liberdade
de opinião, pelas questões humanitárias, nestes poucos meses de Presidência,
tornou-se emblemático.
Aparentemente, ele quer falar
apenas para a minoria obscurantista de seus iguais, os não esclarecidos, os
condenados à solidão antissocial e antipolítica do autoritarismo e da
intolerância.
O presidente brasileiro saiu em
desvantagem, perdeu para uma adolescente. Ela fala a língua do mundo. Ele
acabou sendo vítima do efeito bumerangue da falta de clareza e de consciência
política nas decisões que toma, cujo sentido não é decidido por ele, o que
nenhum político pode ignorar.
Não adianta socorrer-se dos
explicadores oficiais do vocabulário presidencial para corrigir esses
descuidos. O que o presidente diz não tem o sentido que ele quer que tenha, mas
o sentido que pode ter, o da compreensão ditada pela circunstância social e
política. Em boa parte, o sentido que o povo, a Pirralha incluída, sabe que
tem.
O assassinato de dois índios
guajajara, no Maranhão, indica que 519 anos depois da descoberta do Brasil
ainda se mata índios no país com base na mesma dúvida que foi severa e
criticamente analisada pelo padre Manoel da Nóbrega, no século XVI - se os
índios tinham alma ou não, se eram gente ou não. Ou em termos do discurso
político oficial, de hoje e da “política indigenista” atual, se são homens da
caverna ou não.
Maior se tornam o problema e a
apreensão decorrente quando as próprias autoridades do país minimizam as
vítimas, satanizam quem as defende e desdenham a gravidade da violência
descabida.
Não se trata de tomar ou não
providências administrativas e providências policiais, se elas são
implicitamente negadas nas falas e nos discursos e sobretudo nos clamorosos
silêncios do Estado brasileiro, o silêncio da cumplicidade tácita.
O governante não é obrigado a
gostar de índio nem de preto, de pirralho, de quem professa ideias de que
discorda porque não as tem. Mas o mandato de nenhum governante tem legitimidade
se quem governa não tem apreço por gente.
Do mesmo modo que ninguém é
obrigado a gostar do governante tosco e preconceituoso, como mostram os
significativos números das estatísticas de opinião política e eleitoral destes
dias. Mas não pode deixar de respeitar as instituições e o contrato social que
nas leis nos rege e o pacto da unidade na diferença que é próprio da sociedade
brasileira.
Hoje, os índios são 900 mil
pessoas, de 305 diferentes povos indígenas. Desde a violência genocida dos anos
70, multiplicaram-se nove vezes. Uma verdadeira insurreição demográfica. Já
estão chegando ao Congresso Nacional.
São falantes de 274 línguas
nativas. Uma delas, a língua tupi ou língua geral, que o general Couto de
Magalhães, seu estudioso, batizou com o nome de nheengatu, língua bonita. Ela
influiu significativamente na formação do que é propriamente a língua
brasileira.
É a língua que falamos no dia a
dia, no sotaque, na sonoridade, no vocabulário, na mansidão da pronúncia, nos
significados propriamente brasileiros de nossa fala. Em nossa linguagem
peculiarmente dupla, no dito e no não dito, na coisa e na sobrecoisa. Uma
língua, de vários modos, diferente da língua mãe, a que se fala em Portugal.
O antropólogo brasileiro Darcy
Ribeiro, em um de seus livros, sublinha que o branco do contato com o índio é o
pior tipo de branco, o mais desprovido de valores relativos à condição humana e
ao seu semelhante. Cuja mentalidade pode estar perto do poder. Há exceções, e muitas,
mas não suficientes.
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*José de Souza Martins é
sociólogo. Pesquisador emérito do CNPq, professor emérito da Faculdade de
Filosofia da USP, membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros,
autor de "Desavessos" (Criarte).
— Foto: Carvall
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