"Ninguém precisa gostar de um grupo de humor. Mas este desconforto
e revolta que vários cristãos estão sentindo podem ser um alerta: a sátira,
talvez, nos coloque diante do verdadeiro risco de blasfêmia que
estamos correndo (nós, que cremos). Não esqueçamos: nas Escrituras,
Deus transmitiu sua mensagem até mesmo pela boca de uma mula!",
escreve Francys Silvestrini Adão, padre jesuíta, professor da
Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), de Belo Horizonte, e doutor
em Teologia pelo Centre Sèvres-Facultés Jésuites de Paris, onde defendeu sua
tese "La vie comme nourriture. Pour un discernement eucharistique de
l’humain fragmenté" (“A vida como alimento. Por um discernimento
eucarístico do humano fragmentado”).
Eis o artigo.
Algumas considerações sobre a polêmica do momento: cancelar ou não
cancelar a assinatura da Netflix por causa do “Especial de Natal”
produzido pelo grupo Porta dos Fundos.
1. Blasfêmia e sátira estão em dois campos de sentido
diferentes. A blasfêmia é uma possibilidade de desvio dentro da
comunidade de fé. A sátira é uma linguagem e um recurso crítico do campo
das artes, de tipo humorístico.
2. Quando, por diversas razões, os humoristas tentam
entrar no campo religioso, é
importante distinguir o “alvo” que querem atingir. O “alvo” da blasfêmia é
Deus. O “alvo” da sátira é a imagem de Deus projetada publicamente por aqueles
que dizem crer nEle. Os que se utilizam da sátira falam sobre nós, nossas
crenças, nossas práticas; não sobre Deus.
3. A sátira se constrói com caricaturas: às vezes, exagerando
traços que vão na linha da crença comum, para fazer enxergar o que não se vê;
às vezes, construindo imagens chocantes, para provocar criticamente a crença
comum.
4. Um grupo de humor não tem, em si mesmo, compromisso com o Jesus dos
Evangelhos. As igrejas cristãs, essas sim, deveriam sempre ter.
Num momento em que uma figura de Jesus domina a cena pública, com implicações
políticas para toda a população, essa “figura” (que, como qualquer
interpretação, nunca será idêntica a Jesus) pode se tornar alvo de todos os
sujeitos de uma sociedade.
5. Ninguém precisa gostar de um grupo de humor (este, pessoalmente
falando, não é o estilo que aprecio). Mas este desconforto e revolta que vários
cristãos estão sentindo podem ser um alerta: a sátira, talvez, nos coloque
diante do verdadeiro risco de blasfêmia que estamos correndo (nós, que
cremos). Não esqueçamos: nas Escrituras, Deus transmitiu sua mensagem
até mesmo pela boca de uma mula!
6. Ocasião, então, para um exame de consciência: a imagem de Jesus que
temos projetado publicamente (em palavras e em gestos) é, realmente, aquela que
nos transmitem os Evangelhos? Trata-se d'Aquele que, encarnando-se na
periferia da periferia daquele tempo, veio trazer Vida em abundância para
todos? Somos reflexo do Jesus que – para anunciar a vitória da graça sobre as
infidelidades de todos nós – preferiu caminhar e conversar com pecadores,
prostitutas, pobres e doentes, ao invés de convencer sacerdotes do Templo,
mestres da Lei e fariseus?
7. Será que a caricatura satírica, para muitos desagradável, deste
controverso “Especial de Natal” não seria uma ocasião favorável para
examinarmos a possível caricatura blasfemadora que muitos de nós, crentes,
estamos projetando no espaço público de nosso país? Declaramos guerra a um
“mundo perdido”, sem considerarmos nossa sempre necessária e contínua conversão
à Santidade de Deus, que deseja que nenhum de Seus filhos se perca?
8. Neste tempo de Advento, façamos nosso
próprio “Especial de Natal”, agradável a Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus
Cristo: cancelemos todas as falsas imagens de Jesus que estamos consumindo e
divulgando. Abracemos, de modo definitivo, o Jesus dos Evangelhos, o Cordeiro
manso e humilde de Deus, o Anunciador incansável da Misericórdia do Pai, o
Único que é uma Boa Notícia para nós e para todos.
PS.: Não estou jogando com teorias... Se não ficou claro, que fique
agora: há, no mínimo, silêncio nosso diante dos feminicídios, invasões e assassinatos em terras
indígenas e quilombolas, precarização do direito dos idosos,
truculência com pessoas pobres que não cometeram crime (inclusive
crianças!)... Segundo a mais sólida doutrina cristã, essas pessoas são
"imagem de Deus". O risco de blasfêmia ao qual faço alusão é
absolutizar símbolos (ainda que importantes) e relativizar vidas (sempre
insubstituíveis). Seria o contrário do que fez Nosso Senhor Jesus Cristo.
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FONTE: http://www.ihu.unisinos.br/595171-o-que-deve-ser-cancelado-eis-a-questao
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