terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Conceição Evaristo: ‘Uma hora você dá murro em ponta de faca; na outra, recolhe a mão’

‘Às
‘Às vezes, o racismo está tão naturalizado que não sabemos se 
é isso mesmo ou se é paranoia’. Na foto, marcha da consciência negra 
em SPSergio Castro / Estadão - 20/11/2012
Conceição Evaristo não dá conta de tantos convites para participar de eventos literários. Ela bem gostaria que fosse para falar sobre seus livros, seu processo criativo ou o que motiva sua escrita, mas sabe o lugar que ocupa – e que há assuntos urgentes.

Aos 73 anos, ela é uma das principais escritoras negras brasileiras e inspiração para uma nova geração de leitores e escritores. Autora de Ponciá Vicêncio, Becos da Memória e Olhos D’Água, entre outras obras publicadas também na França, Espanha, Estados Unidos e no mundo árabe, esta professora aposentada, que começou a vida profissional trocando faxina por livros ou aulas particulares, trabalhou como doméstica, deixou a Belo Horizonte natal para viver no Rio e depois Maricá e que foi a personalidade do ano do Prêmio Jabuti, recebeu o Estado em um hotel na Bela Vista, em São Paulo. Conceição falou sobre literatura, representatividade, história, medos, sonhos e o Brasil de 2019.

“Uma hora você dá murros em ponta de faca. Na outra, põe a mão para trás. Brinco que talvez este seja o tempo de fingir de morto para enganar o coveiro. E, trabalhando em silêncio, retomar trabalhos que já deram certo”, disse.

O texto literário pode ser um caminho para que se chegue à história?
Sim, e no caso de um texto literário que traz a memória dos afrodescendentes, em determinados momentos, é um dos únicos caminhos.

Como o negro vem sendo retratado na literatura brasileira? Isso mudou hoje?
A mudança não é significativa porque a criação literária não nasce imune. Como a sociedade brasileira ainda tem um imaginário estereotipado sobre o negro, ele aparece estereotipado nas obras contemporâneas – e isso, muitas vezes, é inconsciente. A mudança de olhar sobre o negro vem com a literatura de autoria negra. Isso também não quer dizer que a gente esteja imune a esses estereótipos na construção dos nossos personagens, porque nossa formação literária foi lendo homens e mulheres brancas. Mas os efeitos são menores.

O mercado editorial publica pouco e poucos autores negros, mas está publicando mais do que antes. Isso é reflexo de uma maior preocupação com a diversidade, resultado do trabalho que vem sendo feito por autores negros ou o mercado está apenas se apropriando de um discurso de lutas sociais que está repercutindo na sociedade?
Pode ser tudo isso. O livro é um objeto de consumo. Se ele vende, a temática passa a ser interessante. Hoje, essa é uma temática interessante para os politicamente corretos, para quem realmente assumiu essa consciência e para quem quer vender. E talvez o mercado editorial tenha descoberto o público leitor negro. Temos buscado essa autoria negra com muita veemência e as casas editoriais vão apostar nessa possibilidade de venda. Isso é importante, mas, por outro lado, sabemos quando estamos sendo apropriados, quando se apropriam do nosso discurso, como também sabemos quando as pessoas estão realmente compactuadas e cumpliciadas conosco.

Hoje, pós-empoderamento, pós-ações afirmativas, depois de anos de silenciamento, é diferente ser um autor negro?
Sim, e muito por nossa força de combate. Para mim, o grande exemplo foi a Flip de 2017, quando intelectuais negras, lideradas por (historiadora) Giovana Xavier, chamaram a Flip de “arraiá da branquidade”. Acho que, a partir daí, a Flip tomou outra característica. Eu já era muito convidada para feiras de livros, mas hoje eu não dou conta do convite. Mas essa mudança só acontece pela nossa insistência, a partir de nosso questionamento. Não ganhamos isso de presente; buscamos os nossos lugares. 

Hoje há uma nova geração de leitores que, como mostrou uma pesquisa sobre hábito de leitura feita na Festa Literária das Periferias, escolhe ler obras de autoria negra por identificação.

Tudo é um conjunto. Esses resultados não nascem milagrosamente ou desvinculados de outras ações. Esse público se forma a partir das ações afirmativas, da criação da Lei nº 10639/2003, que inclui o estudo das culturas africanas e depois das culturas indígenas - e cria uma necessidade de mercado, ampliando a possibilidade de divulgação desse texto de autoria negra. Sem falar nas cotas, que colocaram alunos afro-brasileiros nas faculdades e isso vai influenciar nos currículos, nos objetos de pesquisa. Essas meninas e esses meninos chegam cobrando uma bibliografia negra. É um círculo.

Uma literatura que evoca uma experiência africana e afro-brasileira é necessariamente uma literatura de resistência?
Sim, independentemente de se apresentar como tal. Quando pensamos no espaço da literatura - de criação, publicação, divulgação, leitura, concessão de prêmios - a autoria negra conquista aos poucos o seu lugar. Insistimos, então pode-se pensar num espaço de resistência, sim. Eu me refiro ao texto e também à temática, porque é mais fácil, por exemplo, a crítica aceitar um texto de autoria branca falando sobre nós do que aceitar um texto em que nós somos objeto e sujeito de nossos próprios discursos. Assim, uma literatura que se impõe com o sujeito sendo ele o criador do discurso e da história, e falo de sujeitos que têm a identidade menosprezada, é uma literatura de resistência.

O nicho foi importante em um momento, mas incomoda ser convidada para eventos literários como a autora negra?
Sim, parece que para nós são reservadas determinadas falas. E o que eu tenho dito muito também é: não leiam somente a minha biografia. Quem lê talvez consiga ampliar mais o sentido do meu texto, mas isso não significa que esse texto precise necessariamente da minha biografia. Quero falar do meu processo de criação, contar como surgiu um livro. Quero discutir literatura e não somente determinados assuntos. Mas, por outro lado, eu sou uma escritora afro-brasileira, e essa é uma afirmativa identitária no sentido de valorizar uma ancestralidade africana. Falar de uma autoria negra é importante. Mas o meu texto é um texto literário que cabe perfeitamente na literatura brasileira e quero ser reconhecida como uma escritora brasileira - que traz essa especificidade de ser uma escritora afro-brasileira.

A senhora é otimista com relação ao futuro do Brasil?
Por instinto de conservação, tenho de ser. Aos 73, se não for, vou selar a minha morte antes da hora. E acredito que esse país tem jeito - não para mim. Há 20 anos, nós nem colocávamos o dedo na ferida. Eu acredito muito na juventude. Ao mesmo tempo em que vejo uma juventude negra sendo dizimada, vejo uma juventude negra estudando, pesquisando, afirmando a sua identidade e vejo uma juventude branca mais cumpliciada conosco. Se olharmos a geração dos pais deles, é um passo avante. E acredito nesse processo histórico. Uma hora você dá murros em ponta de faca. Na outra, põe a mão para trás. Brinco que talvez este seja o tempo de fingir de morto para enganar o coveiro. E, trabalhando em silêncio, retomar trabalhos que já deram certo. Algo que vem surgindo é a preocupação com a questão da violência. O Brasil e outros países da América Latina foram formados pela dizimação dos donos da terra e escravização dos africanos. Temos a violência na nossa raiz.

A senhora vem conquistando a cada dia novos leitores e tem inspirado muitas meninas e mulheres a começar a escrever. O que diria para quem está começando?
Escrever, escrever sempre, independentemente do que pode resultar disso. Romper a autocensura. As feministas negras dizem que escrever é um ato político. Concordo plenamente e acrescento que para mulheres negras é escrever e publicar. E crer que o direito à escrita e à leitura também é nosso.

É mais fácil ou mais difícil ser uma mulher negra no Brasil hoje?
Depende do lugar em que essa mulher negra está colocada. Hoje, com todos os enfrentamentos que eu tenho, ser mulher negra se tornou mais fácil. Mas para uma mulher negra que mora numa favela, que está abaixo da linha da pobreza e trabalha numa função subalternizada, não sei. Na ocasião da Ocupação Conceição Evaristo, no Itaú Cultural, me perguntaram como eu me sentia com a homenagem, e disse que muito bem. Mas, quando eu saio da exposição, sou uma mulher negra vulnerável, como qualquer outra mulher negra. Daquela vez, saí da exposição, atravessei a rua, entrei num shopping e todos os meus passos foram vigiados pelo segurança. Acontece também na recepção do hotel, no restaurante.

O racismo te acompanhou na vida?
Sim. Constitui o branco e constitui essas relações na sociedade brasileira. E às vezes ele se torna tão naturalizado que corre até o risco de nós, negros, não percebermos o que está acontecendo. Ou então, quando percebemos, ficamos sem saber se é isso mesmo, se é paranoia.

Se dependesse das redes sociais, a senhora teria sido eleita imortal da Academia Brasileira de Letras em 2018, mas os acadêmicos não concordaram. E este ano foi a grande homenageada do Jabuti. 

Como vê esse momento da sua carreira?
Eu vejo que determinados espaços estão realmente um passo à frente e que outros continuam num conservadorismo cruel. Mas não me espanta, e a ABL não me espantou. Tenho dito que não perdi nada. Quem perdeu foi a Academia, que podia ter dado um grande passo e ter sido realmente mais representativa da literatura brasileira. A ABL perdeu o bonde da história e eu saí com muita dignidade. Acho que vai haver o momento que nós teremos escritores negros, escritoras negras e escritores indígenas na Academia. Se eles quiserem acompanhar este processo histórico, eles vão ter de abrir.

A senhora acaba de fazer 73. A vida tem valido a pena?
Sim. Todo dia eu bendigo a vida. Acho que a vida e a literatura me escolheram. Foi a literatura que me trouxe até aqui. Ter hoje também leitores jovens e inspirar essa meninada certifica para mim que eu estou conseguindo trilhar um caminho - e com dignidade.
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REPORTAGEM POR  | Maria Fernanda Rodrigues | 22 de dezembro de 2019
Conceição Evaristo nasceu em Belo Horizonte, em 1946. Autora de obras como Ponciá Vicêncio e Olhos D’Água, ela trabalhou como empregada doméstica até concluir os estudos secundários em Minas. Professora, se mudou para o Rio em 1973, formou-se em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e seguiu com o mestrado e doutorado sem abandonar a sala de aula. Estreou na literatura na série Caderno Negros, tem obras publicadas em diversos países e foi a Personalidade do Ano do Prêmio Jabuti em 2019.
Fonte:  https://www.estadao.com.br/infograficos/cultura,uma-hora-voce-da-murro-em-ponta-de-faca-na-outra-recolhe-a-mao,1062761

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