Por Edgard Pimentel*
Ilustração: Julia Jabur -
A teoria que explica por que um cubo de gelo fica arredondado quando derrete
Sempre que mergulhava um cubo de gelo num copo d’água, eu notava a mesma coisa: ao derreter, não só o cubo mudava de tamanho (diminuía, é claro), como ficava mais arredondado. Suas arestas e quinas desapareciam. E era sempre assim: a fronteira entre o cubo de gelo e a água parecia cada vez mais suave. Entender o que se passava em meus copos de água gelada demorou pelo menos 30 anos. Mas me dei conta de que uma percepção mais acurada dessas coisas passava por aprender mais (e melhor) matemática. Afinal, o comportamento que observava no meu copo d’água não acontecia por acaso. Na verdade, era um importante teorema.
Para minha sorte, essa mesma curiosidade também havia afetado o físico esloveno Jošef Stefan (1835-93). Por volta de 1890, Stefan, o primeiro entre seus pares, se debruçava sobre esse problema que acabou por receber seu nome. Sua curiosidade soava menos infantil do que a minha, e era motivada pela formação de gelo nas águas marinhas e pelo congelamento de solos.
Podemos descrever essa classe de problemas da seguinte forma. Em uma região maior (o copo) temos duas sub-regiões: a água e o cubo de gelo. As leis que governam a difusão de temperatura no líquido são diferentes daquelas que regem a temperatura no interior do cubo de gelo. Entretanto, com o passar do tempo, o formato dessas regiões muda. E a fronteira que separa o cubo do líquido não é fixa, mas livre. Por consequência, entender o problema implica não só encontrar um perfil de temperatura para o cubo de gelo e para o líquido, mas também estudar as propriedades da interface entre os dois. Ou seja, considerar a geometria do cubo de gelo. Entender a fronteira livre do problema.
Vejamos outro exemplo. Imagine que alguém cubra o Pão de Açúcar e a Pedra da Urca com um imenso lençol. Em algumas áreas, o lençol tocará as pedras; em outras, não. A região em que o lençol começa a se separar das pedras é uma interface entre dois mundos: aquele em que ambas as estruturas estão em contato e aquele em que elas estão separadas. Assim como no caso do cubo de gelo, a interface que se forma depende dos processos que acontecem em ambas a regiões. Também se trata de uma fronteira livre.
Outro exemplo são os materiais inteligentes – um casaco que "nota" quando se entra no metrô e passa a esquentar menos; uma parede que "ouve" barulho numa sala e aumenta sua capacidade de isolamento acústico; um calçado que "percebe" se você está andando mais rápido e passa a apertar menos. Materiais heterogêneos, membranas a se descolar de um obstáculo, e até mesmo o momento ótimo para exercer uma opção de compra e venda de um dado ativo financeiro são mais alguns exemplos.
Em comum, esses problemas têm leis de difusão que governam processos distintos em sub-regiões diferentes do problema. Essas sub-regiões estão separadas por uma fronteira que é determinada pela difusão. É matemática do tipo Tostines: a fronteira depende da difusão, mas a difusão também depende da fronteira.
Matematicamente, esses problemas são bastante desafiadores. Além das leis de difusão em cada sub-região (descritas geralmente por equações diferenciais parciais), o problema ainda depende de uma interface que se altera ao longo do processo. E esses diversos elementos devem ser estudados conjuntamente, o que em geral requer novas técnicas e estratégias.
Imensos progressos dessa teoria - cujo nome oficial é teoria de problemas de fronteiras livres - ocorreram na segunda metade do século 20. E até hoje, resultados surpreendentes e novas técnicas aparecem na literatura especializada. E muitos problemas permanecem ainda sem uma resposta completa, ou sequer satisfatória. Em particular, um teorema importante da área garante que, por mais que as arestas e quinas de um cubo estejam afiadas, elas se suavizam instantaneamente ao mergulhar em nossa bebida favorita.
Aqui, a diversão fica por perceber que há uma interface que separa a curiosidade infantil do conhecimento científico de alto nível. Como há uma interface que separa o estoque de conhecimento atual e as técnicas disponíveis daquilo que queremos conhecer. Com sorte, nota-se que se trata de um fronteira livre.
*Edgard Pimentel é pesquisador do Centro de Matemática da Universidade de Coimbra e professor da PUC-Rio.
Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/blogs/ciencia-fundamental/2023/04/a-matematica-tostines.shtml
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