Januária Cristina Alves*
Foto Gazeta do Povo
Parece que, de repente, a panela de pressão explodiu
e as escolas passaram a ser o alvo predileto
para a descarga da ‘raiva do mundo’
A violência nas escolas continua entre os chamados trending topics das mídias, para usar um jargão com o qual nos acostumamos para indicar a relevância de um tema, aquele que está em todas as rodas de conversa que frequentamos, sejam elas no universo real ou virtual. Depois do ataque de um jovem à uma escola em São Paulo no dia 27 de março, que resultou na morte de uma professora, outros se somaram, incluindo o da creche que chocou o país no dia 5 de abril, por envolver crianças pequenas, que brincavam tranquilamente no parquinho da escola. Parece que, de repente, a panela de pressão explodiu e as escolas passaram a ser o alvo predileto para a descarga da “raiva do mundo” que está no subtexto de cada ataque ou ameaça às instituições de ensino. E nós, cidadãos, estamos assistindo perplexos e impotentes a tudo isso, nos questionando o que é possível – e se é – fazer para conter essa escalada de ódio, que se expressa sem limites, especialmente nas redes sociais. O que pode o cidadão comum diante da magnitude e da complexidade desse problema?
Ter a pergunta como mote para a construção das respostas possíveis já é um bom ponto de partida. A perplexidade, o desconcerto e a necessidade de encontrar um sentido para o que nos acontece pode ser o motor a nos movimentar em direção às saídas possíveis, tendo-se em vista, inclusive, que não haverá soluções prontas ou fáceis, e que, como tudo que envolve mudança de mentalidades e de atitudes, o tempo é o senhor e ao contrário do que nos conta na internet, ele não é célere, pois o amadurecimento requer reflexão, silêncio e o passar dos dias.
Vimos um movimento acontecer em todos os setores da sociedade, o que nos acende a luz da esperança de que já estamos fazendo algo, mesmo que não pareça suficiente. O Ministério da Justiça agiu rapidamente pedindo às plataformas de mídias para removerem conteúdos que incitem a violência nas escolas. Foi criado um Grupo de Trabalho Interministerial de combate à violência nas escolas coordenado pelo ministro da Educação, Camilo Santana. Dentre as ações previstas para serem implementadas nos próximos 90 dias temos o monitoramento de redes sociais; plano de reforço na segurança das escolas; ações de apoio psicológico e estímulo esportivo; e a criação de um disque denúncias exclusivo para alunos, professores e cidadãos alertarem as autoridades sobre postagens e comportamentos agressivos no ambiente escolar e nas redes sociais. São ações emergenciais fundamentais, mas sabemos que o caminho é longo e que é imprescindível que toda a sociedade se envolva nessa cruzada.
Talvez possamos começar com algo bastante simples e absolutamente necessário: precisamos falar sobre isso com as crianças e jovens. Se pararmos para pensar e “colocar os sapatos deles” podemos imaginar o quão assustador é ir para a escola – aquele lugar protegido, que a gente vai para aprender coisas interessantes e encontrar os amigos – e saber que lá “mora um inimigo”, que corremos o risco de ser feridos, agredidos e até mortos. Qual a sensação? Some-se a isso ainda termos de dar conta de ver os semblantes assustados, desesperados até, de quem nos dá suporte e segurança na vida, nossos pais e cuidadores. Como dar conta de tudo isso? O diálogo, como se sabe, é uma das ferramentas mais antigas para lidar com o que não conhecemos, com o medo e as inseguranças que a vida nos apresenta. Sendo assim, é imperativo conversar com as crianças e jovens, concedendo-lhes tempo e atenção, a moeda mais preciosa que temos e que as mídias sociais insistem em nos roubar.
O Brasil é o terceiro país do mundo que mais acessa redes sociais. Segundo a Safernet Brasil o aumento de denúncias envolvendo discurso de ódio online foi de 67,7% durante o ano de 2022, sendo que os temas que obtiveram um maior aumento foram xenofobia, intolerância religiosa e misoginia. Em termos práticos, no que concerne à população jovem que acessa essas redes e que é vítima do discurso de ódio, a consequência é apresentar uma baixa autoestima, sentir-se solitários ou isolados, sofrer de distúrbios do sono, aumento da ansiedade e sentimentos de medo e insegurança, bem como níveis reduzidos de confiança. Despreparados para lidar com essa violência online eles começam a “odiar o mundo” e a buscar vingança, muitas vezes encontrando apoio e aplausos nessas redes. Conversar sobre esses abusos e esse sentimento que, além de causar angústia e medo, também gera vergonha e desconfiança, pode ser preventivo e curativo.
Imagine o quão assustador pode ser ir para a escola agora – aquele lugar protegido, que a gente vai para aprender coisas interessantes e encontrar os amigos – e saber que lá corremos riscos
Essa é a proposta do projeto “Como se eu fosse”, uma ferramenta de aprendizagem que usa o WhatsApp (ele mesmo, o responsável pela maioria dos conteúdos de desinformação que circulam no universo online) para mitigar os efeitos danosos no bem-estar mental e social produzidos pelo discurso de ódio entre os jovens entre 18 e 29 anos, público-alvo da iniciativa. A Talk2U, uma healthtech que busca melhorar o bem-estar social, emocional e mental dos jovens, com apoio da Unicef Fund Venture, e em parceria com a Unicef Brasil, Redes Cordiais e Viração Educomunicação, criou uma nova tecnologia de conversa terapêutica automatizada via esse aplicativo, para ensinar estratégias de como lidar com esse tipo de violência online. O projeto prevê que os jovens interajam com uma personagem de inteligência artificial via WhatsApp e passem por uma jornada personalizada de até sete conversas que fornecerão um conjunto de ferramentas destinadas a prevenir crimes e lidar com o discurso de ódio. O projeto é gratuito e estará disponível por tempo limitado. Iniciativas como essa podem fazer a diferença quando se trata de comunicação direta com o público jovem.
Desde o lançamento do podcast “Curti, e daí”, uma iniciativa do Instituto Vero que tenho o privilégio de coordenar e apresentar, temos recebido relatos preciosos de como, a partir da escuta ativa do podcast, combinada com a proposta de um conjunto de reflexões mediadas por um educador, os jovens têm se posicionado sobre a sua relação com o mundo online. O simples fato de saber que há um momento específico para falar e ouvir, que existe um grupo que suporta e ampara as angústias de cada um, tem feito a diferença para jovens em busca de um equilíbrio para os usos das redes sociais. Conscientes das armadilhas às quais estão expostos, os meninos e meninas dessas muitas escolas agora à mercê dessa violência indiscriminada, acreditam que traçar novos caminhos é possível, mas precisam de uma oportunidade e uma mediação para isso.
Lembrando o conceito de “desconfinamento cultural” concebido pelo prof. dr. Edmir Perrotti, que embasou minha tese de mestrado defendida na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo no início dos anos 1990, é preciso devolver às crianças e jovens a condição de se relacionar com a cultura, a sociedade e com a vida política. Confinados em suas bolhas digitais, esses criadores de cultura por natureza tiveram sua expressão contida e solapada pelos modos de ser e viver impostos por uma sociedade cujos valores se sustentam no consumo. Segundo Perrotti, “...o país vem estimulando fantasias consumistas compensatórias para consolar nossas crianças do vazio de relações socioculturais plenas. Tudo se passa como se graciosos ursinhos e delicados cachorrinhos de pelúcia pudessem substituir com vantagens relações humanas subtraídas. (...) Oferecer o consumo como prêmio de consolação à falta de participação ativa e criadora na vida cotidiana é com certeza tiro pela culatra…”
Nesse momento é fundamental compreender a mensagem dos jovens, aquilo que estão buscando nas redes e que não estão encontrando fora delas: escuta, fala, relações verdadeiras. Parem tudo: precisamos dialogar com eles.
*Januária Cristina Alves é mestre em comunicação social pela ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira, coautora do livro “Como não ser enganado pelas fake news” (editora Moderna) e autora de “#XôFakeNews - Uma história de verdades e mentiras”. É membro da Associação Brasileira de pesquisadores e Profissionais em Educomunicação - ABPEducom e da Mil Alliance, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco.
Fonte: https://www.nexojornal.com.br/colunistas/2023/O-que-fazer-para-combater-o-discurso-de-%C3%B3dio-online?utm_medium=Email&utm_campaign=NLDurmaComEssa&utm_source=nexoassinantes
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