Ana Cristina Silva*
Há meses, os jornais portugueses fizeram machetes sobre a ausência de hábitos de leitura dos portugueses. Um estudo encomendado pela Fundação Gulbenkian demonstrava que apenas 39% da população tinha lido pelo menos um livro e 27% destes eram pequenos leitores com um máximo de 5 livros lidos num ano. O eco da dramática manchete estendeu-se durante uma semana pelos ouvidos dos leitores de jornais e, depois, como é habitual nestas coisas, foi-se esbatendo sendo substituído pela sonoridade de um outro escândalo igualmente veemente. O estudo revela que muitos dos não leitores têm ambientes de literacia familiar relativamente pobres -- na linha do que algumas investigações feitas pela Prof.ª. Lourdes Mata do ISPA têm demonstrado. Curiosamente apresenta ainda um outro dado digno de registo: apenas 12 % dos leitores com habilitações de nível superior leem por prazer, o que significa que, para estes, a leitura de ficção e de poesia não faz parte do seu cardápio habitual de leitura.
A relevância da leitura de romances e poesia tem sido objeto, em anos, recentes de diversas investigações no domínio da psicologia com estudos que abordam o seu efeito ao nível do bem-estar emocional, com estudos que avaliam o impacto da ficção e da poesia como recurso de terapias, com estudos que avaliam o impacto da literatura infantil no desenvolvimento de competências emocionais, verbais e cognitivas em crianças, etc. Em diversos países são proporcionados aos alunos de psicologia, de medicina, de sociologia, etc. cadeiras opcionais de escrita criativa e poesia, não com o objetivo de criar grandes analistas literários, mas como uma estratégia para promover nos alunos o contacto com as suas emoções e as dos outros. É de assinalar, por exemplo, que uma das faculdades de medicina do Porto tem uma cadeira opcional de Poesia ministrada por um médico que é igualmente um poeta de renome, tendo sido aliás o último Prémio Pessoa. O Prémio Nobel da Literatura Elias Canetti afirmou que "Não temos conhecimento daquilo que sentimos, sendo necessário que o vejamos nos outros para o reconhecermos" e a literatura pode ser um dos meios possíveis para despoletar esse tipo de autoconhecimento.
A narrativa e a ficção são elementos que fazem parte da natureza humana e isso é um dado que a psicologia tem repetidamente demonstrado. Por exemplo o desenvolvimento socioemocional das crianças está associado de perto à capacidade de aprenderem a narrar-se; a memória individual em relação ao passado tem frequentemente componentes ficcionais. A narrativa e a metáfora são recurso e asas para a terapia. No entanto, a literatura vai mais fundo na arte da narrativa procurando ir além do efémero, desvendando com as suas histórias individuais a dor que faz parte de todo e qualquer ser humano. Como refere Joyce Carol Oates, os escritores esforçam-se por, a partir do que lhe é próximo e da sua voz individual, chegar à voz comum, criando dessa maneira uma inesperada intimidade com os leitores. E a criatividade literária busca tantas vezes o processo alquímico de transformar sofrimento em beleza.
A literatura pelos recursos linguísticos e narrativos que mobiliza e que fazem parte do processo de criar uma obra de arte permite que a dimensão emocional e cognitiva seja simultaneamente tocada no decurso da leitura e desse modo, poderá conduzir o leitor a entrar em contacto de uma forma mais profunda com as suas emoções e as dos outros. «Aprendi com a primavera a deixar-me cortar e a voltar sempre em inteira» diz
Cecília Meireles num dos seus poemas, estendendo deste modo a mão ao processo de renovação tão necessário num processo terapêutico. Joan Didion escreve no seu célebre romance, «O ano do pensamento do pensamento mágico»: "O sofrimento do luto é assim: um longo corredor que não é possível passar a correr", tateando com esta imagem o coração de muitos leitores em processo de luto. Pretendo com estes exemplos, e poderia ir buscar muitos mais, demonstrar como a literatura é capaz de tocar a duas mãos nas emoções e cognições; e com este, texto apelar aos futuros psicólogos, futuros docentes, futuros biólogos - e provavelmente a muitos dos seus professores - para lerem boa literatura pois o nosso ramo de negócio, como se diz nos tempos atuais, é a alma humana e para qual precisamos de abrir todos os horizontes possíveis.
*Professora do Ispa - Instituto Universitário e escritora
Imagem da Internet
Fonte: https://www.dn.pt/opiniao/ler-ou-nao-ler-eis-uma-questao-sobre-a-qual-e-importante-refletir-16254464.html
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