Anselmo Borges*
Uma antiga aluna, agora avó, enviava-me há dias um vídeo com o seu
neto. É uma alegria comovedora ver aquele bebé a gesticular e a sorrir,
agitando-se... Uma outra avó: “É uma emoção muito grande”. E eu
alegro-me também e reflicto: Estes bebés vão crescer, aos poucos vão
tentar articular palavras, e muito lentamente, depois de se referirem a
si como o menino, a menina ou pronunciando o seu nome, dizer “eu”. Ao
princípio sem consciência do que isso significa na sua grandeza, mas,
depois, mais uma vez lentamente, com tom acentuado e afirmativo de
autonomia... Evidentemente, sempre em contraposição com o outro, um tu:
afinal, há eu porque há tu, e a primeira tomada de consciência é mesmo a
do tu, mas sempre numa interação e inter-relação permanentes. E num
processo nunca verdadeiramente acabado...
E perguntamos: o que diz alguém, quando diz "eu", fazendo-o de forma
autenticamente consciente? Afirma-se a si mesmo, a si mesma, como
sujeito, autor/a das suas acções conscientes, centro pessoal responsável
por elas, alguém referido a si mesmo, a si mesma, na abertura e em
contraposição a tudo.
Mas, reflectindo, deparamos com observações perturbadoras. Por
exemplo, pode acontecer que alguém adulto, ao olhar para si em miúdo, se
veja de fora, apontando como que para um outro: aquele era eu, sou eu?
Há filósofos que se referem à ilusão do eu. Certas interpretações do
budismo caminham nessa direcção. No quadro da impermanência e da
interdependência de todas as coisas, fala-se da inexistência do eu.
Matthieu Ricard, investigador em genética celular e monge budista,
deu-me uma vez, num congresso no Porto, um exemplo: veja ali o rio
Douro. O que é o rio Douro, onde está? Ele não existe como substância,
pois não há senão uma corrente de água. Está a ver a consciência? O que é
ela senão um fluxo permanente de pensamentos fugazes, de vivências? O
Eu não passa de um nome para designar um continuum, como nomeamos um
rio.
Por mim, afirmo que há a experiência vivida e inexpugnável do eu,
ainda que numa identidade em transformação, que continuamente se faz,
desfaz e refaz. De facto, vivemo-nos numa identidade em processo. Em
relação ao eu, o que se passa é que, não se tratando de uma realidade
coisista, é inobjectivável e inapreensível. Nunca nos captamos
totalmente, porque nos experienciamos como uma subjectividade reflexiva:
somos objecto de conhecimento para nós próprios, mas, uma vez que a
possibilidade de nos objectivarmos é uma subjectividade que se retrai
sempre, nunca nos conhecemos adequada e plenamente, de tal modo que
seremos sempre enigma para nós mesmos.
E é e será sempre enigmático como aparecem no mundo corpóreo o eu e a
consciência, consciência da consciência, consciência de que somos
conscientes... É claro que o Eu não pode ser pensado à maneira de uma
alma, um homunculus, um observador dentro do corpo — o fantasma dentro
da máquina. Há, portanto, uma correlação entre a consciência e os
processos cerebrais. Mas significa isto que essa correlação é de
causalidade, de tal modo que haverá um dia uma explicação neuronal
adequada para os estados espirituais? Ou, como já viu Leibniz e é
acentuado também pelo filósofo Th. Nagel, mesmo que, por exemplo,
tivéssemos todos os conhecimentos científicos sobre os processos
neuronais de um morcego, não saberíamos o que é o mundo a partir do seu
ponto de vista? A questão é: como se passa de acontecimentos eléctricos e
químicos no cérebro — processos neuronais da ordem da terceira pessoa —
para a experiência subjectiva do eu na primeira pessoa?
Apesar de não se afastar por princípio a possibilidade de se poder
vir a dar essa compreensão, o filósofo Colin McGinn pensa que talvez
nunca venhamos a entender como é que a consciência surge num mundo
corporal, a partir de processos físicos. Também o neurocientista W.
Prinz disse: "Os biólogos podem explicar como funcionam a química e a
física do cérebro. Mas até agora ninguém sabe como se chega à
experiência do eu nem como é que o cérebro é capaz de gerar
significados."
E sou livre ou não? É claro que, como escreveu o filósofo M. Pauen,
se as nossas actividades espirituais se identificassem com processos
cerebrais, segundo leis naturais, já se não poderia falar em liberdade:
"as nossas acções seriam determinadas não por nós, mas por aquelas
leis."
Mas, afinal, quem age, quem é o autor das minhas acções: o meu
cérebro ou eu? "Como não é a minha mão, mas eu, quem esbofeteia esta ou
aquela pessoa, não é o meu cérebro, mas eu, quem decide. O facto de eu
pensar com o cérebro não significa que seja o cérebro, e não eu, quem
pensa", escreve o filósofo Th. Buchheim.
Só existe liberdade, se há alguém capaz de autodeterminação. A
determinação por um "eu", segundo um juízo de valor, é que faz com que
uma acção seja livre e não puro acaso ou enquadrada no determinismo das
leis naturais. Como já aqui tentei explicar, a liberdade é-nos dada numa
experiência — faço a experiência de ser dado a mim mesmo e,
consequentemente, a experiência de ser dono de mim próprio e, portanto,
dono dos meus actos. Por isso, sou responsável por mim e por eles, isto
é, respondo por eles e por mim. Dada a neotenia — nascemos por fazer —,
a nossa missão e tarefa é, fazendo o que fazemos, fazermo-nos a nós
próprios. E todos morremos inacabados. Para os crentes, morremos para
Deus, o Outro absoluto que finalmente nos dirá quem somos para Ele e Ele
para nós. A plenitude.
*Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 22 de abril de 2023
fonte: https://e-cultura.blogs.sapo.pt/dizer-eu-alguem-livre-1463023
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