segunda-feira, 17 de abril de 2023

Mulheres no metaverso: violências reproduzidas

 Por  Beatriz de Freitas Alves Vicente e Ingrid Fischer Carvalho


Desigualdade de gênero persiste no ambiente virtual. Casos de estupro e assédio já atingem avatares femininos

Não é de hoje que vemos o avanço tecnológico impactar a sociedade e alterar comportamentos, especialmente no cenário pós-pandêmico, em que as relações, sejam elas pessoais, profissionais ou de consumo, tiveram que migrar abruptamente para o mundo virtual, em razão do lockdown.

Nesse contexto, vem à tona uma nova fase da internet, advinda da quarta revolução industrial e conhecida como Web 3.0, momento em que os indivíduos assumem um papel mais estratégico, voltado para o conhecimento técnico, e não apenas operacional. Essa fase é marcada por um ecossistema descentralizado e imersivo, decorrente de tecnologias emergentes, como o blockchain, NFTs, realidade aumentada e inteligência artificial.

Totalmente atrelado a isso, o metaverso propõe que as pessoas interajam entre si, por meio de avatares, em um ambiente digital que conecta o mundo virtual à vida real, oferecendo experiências imersivas.

Embora o termo metaverso tenha repercutido nos últimos anos, especialmente em função da alteração da razão social do Facebook Inc. para Meta Inc., a expressão não indica um conceito novo ou que tenha necessariamente relação com a empresa. O termo foi cunhado em 1992, no livro “Snow crash”, de Neal Stephenson, referindo-se a um mundo virtual no qual os personagens adquiriam uma nova identidade como fuga de uma realidade distópica.

Contudo, o conceito de metaverso, como vemos hoje, tem se mostrado distinto daquele proposto por Stephenson, especialmente no que se refere à utopia. Contrariamente, o metaverso tem refletido a realidade no plano virtual, reproduzindo, inclusive, as desigualdades e a violência contra a mulher, que infelizmente persistem mesmo em um “universo virtual paralelo”.

Em 2021, por encomenda do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Datafolha lançou a 3ª edição da pesquisa “Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil”, a fim de apurar os índices de violência contra a mulher durante a pandemia. A pesquisa concluiu que uma a cada quatro brasileiras com mais de 16 anos sofreu algum tipo de violência no período de um ano. Ou seja, aproximadamente 17 milhões de mulheres foram vítimas de violência física, sexual ou psicológica em 2020.

Assim como a violência, o assédio sexual também apresenta um cenário entristecedor. Como comentou a juíza Rejane J. Suxberger acerca dessa pesquisa: “37,9% das brasileiras foram vítimas de algum tipo de assédio sexual nos últimos 12 meses, o que equivale a 26,5 milhões de mulheres. O assédio mais frequente são as cantadas ou comentários desrespeitosos nos espaços públicos (31,9% das mulheres foram vítimas, ou seja, 22,3 milhões)”.

Como se não bastasse esse cenário na realidade, já se têm notícias de casos de estupro e assédio contra avatares femininos no metaverso.

A ONG Sum of Us, por exemplo, recentemente denunciou um caso de violência sexual no metaverso, envolvendo uma de suas pesquisadoras, de 21 anos, que participava de um experimento no mundo virtual. O episódio, ocorrido na plataforma Horizon Worlds, da Meta Inc., se deu quando dois avatares masculinos se aproximaram do avatar da pesquisadora proferindo comentários ofensivos.

Se o metaverso é o que podemos chamar de futuro, ainda há tempo para repensarmos padrões, a fim de criar uma sociedade mais justa e igualitária neste ambiente

Embora a Meta tenha desenvolvido um recurso para distanciamento mínimo de um metro entre cada avatar, que pode ser habilitado a critério do usuário, o recurso estava desabilitado no momento do incidente, sendo que, pela situação constrangedora, a usuária não lembrava como habilitá-lo — razão pela qual seria interessante que as empresas por trás das plataformas do metaverso tivessem atuação mais incisiva para mitigar casos como esse, como a habilitação automática do recurso de distanciamento a depender do teor dos comentários ou da proximidade dos avatares.

Outro triste caso que ocorreu no metaverso foi o da britânica Nina Patel, de 43 anos, que denunciou um estupro. Ela relatou que quatro avatares masculinos se aproximaram de seu avatar, que reproduz as mesmas características físicas de Nina, e começaram a assediá-la verbalmente e, em seguida, sexualmente, por meio de diversos comentários com insinuações sexuais, além de tocarem, de forma inadequada e sem qualquer tipo de consentimento, o seu avatar.

Esse caso gerou grandes reflexões no mundo jurídico, uma vez que não houve conjunção carnal ou ato libidinoso, como exige o Código Penal brasileiro e outras legislações estrangeiras relacionadas, trazendo à tona, inclusive, discussões acerca do que a doutrina chama de estupro virtual. Ainda assim, foi debatida a necessidade de se “punir” o ato virtual, uma vez que o impacto causado pela violência traz consequências psicológicas reais para a vida da dona do avatar violado, como transtorno de estresse pós-traumático (o chamado TEPT), ansiedade, depressão, alterações na qualidade do sono, aumento da sensação de medo pela reação e julgamento alheios, dificuldades nas relações interpessoais, impacto negativo na qualidade da vida sexual e sentimentos negativos como vergonha, culpa e autopercepção negativa sobre si. Sintomas estes que são ocasionados na vida real da usuária, mesmo que o fato tenha se dado de forma virtual.

Apesar desses incidentes, o relatório da McKinsey & Company publicado em 21 de novembro de 2022 apurou que as mulheres são maioria no metaverso. Os percentuais mostram que as mulheres são as que mais utilizaram o metaverso, além de serem as que mais demandam tempo para suas atividades virtuais, contabilizado mais de três horas por semana.

Não obstante, a pesquisa também destacou que são as mulheres que lideram a maioria das iniciativas no metaverso para suas empresas, sendo cerca de 60% das executivas entrevistadas para 50% dos executivos. Apesar dos números, as mulheres ocupam apenas de 8% a 10% das posições de liderança em organizações que ditam os padrões do metaverso, como o Metaverse Standards Forum e a Open Metaverse Alliance for Web 3.0.

De igual modo, no cenário geral de empresas de tecnologia, as mulheres ocupam apenas 14,7% dos cargos atuantes nas áreas de tecnologia, mídia e telecomunicações, como apontado pela pesquisa da Deloitte, apesar da previsão para o futuro ser de ascensão.

Há, portanto, uma evidente lacuna de gênero no metaverso, semelhante à lacuna existente nas startups e empresas listadas na pesquisa Fortune 500, que apurou que apenas 10% dos CEOs dessas empresas são mulheres, além de que apenas 17% dos investimentos (capital de risco) vão para empresas lideradas ou colideradas por mulheres, e apenas 15% dos investidores nos Estados Unidos são mulheres.

Em artigo para a Startup Magazine, Emma Ridderstad, CEO de uma empresa de tecnologia imersiva, aborda de forma contundente a falta de representatividade no metaverso e menciona, inclusive, que as mulheres têm duas vezes mais chances de sofrerem enjoo cibernético em comparação com os homens, uma vez que os headsets de realidade virtual são normalmente projetados por e para homens.

Este cenário evidencia a razão pela qual o metaverso tem reproduzido padrões negativos advindos da realidade, uma vez que faltam mulheres nas programações e na liderança dessas plataformas. Por experiências e vivências próprias, as mulheres possuem maior aptidão para criar e desenvolver mecanismos para evitar a reprodução de violências e assédio no metaverso.

Apesar das diversas campanhas e datas comemorativas contra a violência à mulher hoje existentes, como o Dia Internacional da Mulher, celebrado anualmente no dia 8 de março, ainda há muito o que se falar no combate à desigualdade de gênero que persiste, física e virtualmente, no século 21.

Se o metaverso é o que podemos chamar de futuro, ainda há tempo para repensarmos alguns padrões, a fim de criar uma sociedade mais justa e igualitária neste ambiente. Assim, quanto mais mulheres estiverem atuando na área de tecnologia, seja programando, desenvolvendo, decidindo ou apenas utilizando os recursos tecnológicos a seu favor – provavelmente teremos um ecossistema mais equilibrado e garantidor dos direitos das mulheres.

Beatriz de Freitas Alves Vicente é advogada do time de Tecnologia, Mídia e Entretenimento no Opice Blum, Bruno e Vainzof Advogados Associados, e pós-graduada em Cibersegurança, Governança e Gestão de Dados pela PUC-RS.

Ingrid Fischer Carvalho é advogada do time de Tecnologia, Mídia e Entretenimento no Opice Blum, Bruno e Vainzof Advogados Associados, e pós-graduanda em Direito Internacional e Direitos Humanos pela PUC-MG.

Fonte:  https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2023/04/16/Mulheres-no-metaverso-viol%C3%AAncias-reproduzidas

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