Por Fernando Gabeira*
PUBLICADO ORIGINALMENTE EM O GLOBO E NO SITE DO AUTOR, www.gabeira.com.br, EDIÇÃO DE 3 DE ABRIL DE 2023
Se fizeram isso com o Pontífice, o que não fariam no cotidiano contra simples mortais, cujas imagens podem ser manipuladas?
Três imagens circularam com intensidade na internet: o Papa Francisco vestindo um estiloso casaco branco, Trump sendo preso e Macron sentado na rua, em cima de uma lata de lixo. As imagens são muito verossímeis porque foram criadas por inteligência artificial (IA). O fato de terem viralizado estimula a discussão sobre IA e seu controle, debate já iniciado também no Brasil.
Como se não bastasse a complexidade do controle das redes sociais, surge mais um desafio: como tornar os algoritmos transparentes, como proteger os dados, como frear a corrida das grandes plataformas para oferecer os serviços da IA. E, de um ponto de vista social, como salvar empregos que podem desaparecer com esses novos serviços. Sou favorável ao debate sobre controle desses instrumentos, que têm grande influência na saúde da democracia. Mas, como tenho enfatizado, prefiro também desenvolver uma outra estratégia.
Nestas tardes quentes de Ipanema, visito sempre a Finlândia. O que procuro num país tão distante? O antídoto para fake news, desinformação e discurso de ódio. Creio que a Finlândia o obteve instituindo desde 2013 um projeto de educação para a mídia e redes sociais. Esse projeto foi remodelado em 2019 e não se destina apenas aos alunos nas escolas. Há vários cursos para idosos.
Nas aulas de matemática, as crianças aprendem também a não ser manipuladas pelos números: nas aulas de arte, conhecem os métodos de manipulação de imagens e chegam ao ponto de aprender também a localizar textos escritos por estrangeiros, passando-se por finlandeses. Esse detalhe, creio, deve ser uma espécie de defesa contra o poderoso vizinho, a Rússia, especialista em campanhas de desinformação.
Recentemente, a primeira-ministra da Finlândia, Sanna Marin, foi filmada cantando e dançando. Algumas professoras mostraram aos alunos como repercutiu no TikTok e no Twitter. Nessas redes sociais, havia insinuação de que ela estava drogada. As professoras, que já conheciam o resultado do exame negativo, aproveitaram para mostrar como funciona a desinformação.
A Unesco também lançou seu curso na mesma direção. Chama-se em inglês Media and Information Literacy. Foi traduzido para o português e é reproduzido pela Universidade de Campinas. Aliás, as universidades de São Paulo trabalham esse tema há algum tempo. Tenho acompanhado esse curso da Unesco. Vejo nele algumas coisas que deveriam ser divulgadas mais amplamente, como a tática contra teorias conspiratórias. Há um jeito de lidar com o assunto, sem negativas veementes para não romper o diálogo. Uma das vantagens do curso da Unesco é que, com base no artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, prepara as pessoas não apenas para interpretar as mídias, mas para participar delas e se expressar com eficácia.
O casaco branco do Papa apenas estimulou que eu apressasse minhas pesquisas e começasse a mostrar algo na televisão. É urgente combinar as duas estratégias: controle legal e educação para a mídia e informação digital. A Finlândia foi considerada o país mais resistente a fake news entre 38 pesquisados na Europa. Acho que é o caminho mais eficaz para, de certa forma, proteger não só as crianças, mas também evitar que as novas tecnologias subvertam a democracia.
A atividade para mim é nova. Vou me dedicar a ela com calma, para não repetir as descobertas da juventude que me deixaram um pouco chato quando me apaixonava por um tema. Cientistas pediram às plataformas que atenuem sua corrida desenfreada para oferecer os serviços de IA. Essa pausa, caso seja conseguida, nos daria mais tempo também para preparar as defesas e incorporar novas técnicas de proteção.
Se fizeram isso com o Papa, o que não fariam no cotidiano contra simples mortais, cujas imagens podem ser manipuladas, cujas vozes podem ser reproduzidas? Enfim, cada um de nós pode ser duplicado e se voltar contra nós mesmos. É assustador.
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