João Pereira Coutinho*
(Também há um "Indignation", de Philip Roth, igualmente autografado. Mas, como dizia a minha avó, não me estico porque a cama é curta.)
Então subo mais um piso e continuo a minha caça. Ao meu lado, participando no mesmo safari, está um cavalheiro de certa idade, alto, magro, cabelo branco, óculos escuros. Impecavelmente vestido. Olho. É o ator Bill Nighy.
Se houvesse uma foto no dicionário para ilustrar um "gentleman" ("cavalheiro", na defeituosa tradução portuguesa; "gentil homem" talvez fosse melhor), teria de ser Nighy. A pose, a reserva, o culto do "understatement".
Já o vi no cinema, já o vi no teatro. Fora da tela e dos palcos, ele continua dentro do personagem, o que significa que não há personagem. Mas será isso um elogio?
Ou existem perigos na ambição de ser um "gentleman"?
Depende do que entendemos pela palavra –e o próprio Bill Nighy refletiu sobre o assunto no filme "Living", pelo qual foi indicado ao Oscar de melhor ator esse ano.
No filme, Nighy é o sr. Williams, um burocrata da prefeitura de Londres, a quem uma das funcionárias trata clandestinamente por "sr. Zumbi".
De fato. Williams é um morto-vivo. Todas as manhãs, de terno escuro e chapéu de coco, ele toma o trem para Waterloo Station. Parco em palavras, trabalha imperturbável na sua mesa.
Quando existem processos urgentes –como o pedido para a construção de um parque infantil–, ele redireciona o processo para os outros departamentos da prefeitura.
Sem surpresa, os outros departamentos fazem o mesmo –até tudo voltar ao ponto de partida.
O sr. Williams, sem levantar o sobrolho, coloca o processo no limbo e daí lava as suas mãos, como um Pilatos para quem o tempo e a urgência não existem. "Delay is life" ("atraso é vida"), como dizia o premiê Salisbury.
Tudo muda com um diagnóstico de câncer terminal. O tempo, e a urgência em vivê-lo, passa a contar de outra forma para aquele homem. Mas ele não sabe como agir. Não sabe como "viver um pouco" antes da despedida prematura.
No fim das contas, e como ele confessa no momento mais importante do filme, a sua ambição sempre foi ser um "gentleman".
E por "gentleman" entenda-se: cultivar a atitude certa, usar a indumentária certa. Usar a armadura certa, em suma, para se proteger da vida como ela é.
O sr. Williams lembra o Ivan Ilitch de Tolstói, aprisionado a uma existência "comme il faut".
Só a morte, a proximidade da morte, ensinará ao sr. Williams que existe um outro sentido para a palavra "gentleman": é ser capaz de fazer o que está certo, o que é decente, o que é humano, sobretudo quando todos os outros se mostram incapazes da tarefa, perdidos no mesmo labirinto de aparência e afetação.
Pela primeira vez na vida, o sr. Williams entende que ser um "gentleman" não é uma questão estética; é um chamamento ético, uma forma de liberdade interior. A felicidade, mesmo na morte, só é possível assim.
"Living" é uma adaptação da obra-prima de Akira Kurosawa, "Ikiru". Adaptação livre, diga-se, porque o mais importante é a impressão digital do escritor Kazuo Ishiguro, autor do roteiro.
Como acontece nos seus livros, em particular no magistral "The Remains of the Day", interessa a Ishiguro analisar a tirania de uma ideia –no caso, a ideia de "gentlemanship", entendida como mera formalidade elegante.
O perigo de tal ideia está no fato de ela secar "a santidade dos afetos do coração", como diria o poeta John Keats. É uma máscara que se usa sobre o rosto, atrofiando as suas emoções mais vitais, até o dia em que a máscara devora o rosto.
Perdido nesses pensamentos, me apercebo, envergonhado, que estou há demasiado tempo olhando fixamente para Bill Nighy.
Ele, talvez temendo pela minha sanidade, olha para mim e esboça um sorriso de compaixão. Sorrio de volta e confirmo: há um rosto por trás da máscara.
* Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.
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