segunda-feira, 24 de abril de 2023

Polarização, silêncio e escuta: a era da reatividade

 Adriana Ferreira Silva*

 Imagem de Livro Escute teu Silêncio Petria Chaves

Livro da jornalista Petria Chaves retrata as consequências de não saber silenciar. O resultado é assustador

Sento em frente ao notebook para escrever este texto e um barulho ensurdecedor embaralha ideias que, até então, pareciam tão claras. O ruído que me incomoda não vem de fora. Faz silêncio em casa. A manhã está fresca, o céu, azul, e as crianças brincando no playground abaixo da minha janela estão concentradas. A zoada que me leva a voltar mil vezes ao primeiro parágrafo está dentro de mim. Ela grita que tenho de finalizar esta coluna na próxima hora; secar os cabelos; pensar no almoço; me preparar para uma reunião; fazer compras; mandar e-mails; responder mensagens de WhatsApp; terminar de ler um livro; começar outro; fazer um post no Instagram; outro no LinkedIn; me atualizar das notícias; convidar as amigas para um vinho. Grita para eu fazer tudo isso agora e o efeito é paralisante.

Retomo o fio da meada e me lembro que “silenciar é sabedoria”, tema que não me sai da cabeça desde que li “Escute teu silêncio - Como a arte da escuta nos torna melhores profissionais, pais mais presentes e pessoas mais interessantes” (ed. Planeta), recém-lançado livro da jornalista Petria Chaves. Em entrevistas com psicoterapeutas, filósofas/os, psicanalistas, psicólogas/os, neurocientistas, lideranças religiosas, entre outras e outros profissionais, Petria trata das múltiplas consequências que a falta da escuta e do silêncio imprimem em nossa sociedade, e o resultado é assustador. “O espírito da nossa época é de uma desenfreada ansiedade, o que gera um constante mal-estar”, escreve a jornalista.

Mal-estar esse que se traduz numa reatividade do próprio corpo, como descreve Petria. É por isso que aquela mensagem incômoda de um chefe, colega de trabalho, ex- ou coisa que o valha pode provocar sensações e sentimentos como irritação, medo, inconformismo, dor de estômago, ódio profundo. A resposta, em geral, é imediata e na mesma toada, alimentando um ciclo de atitudes impensadas que nunca acaba bem, pois “não conseguimos esperar pelo silêncio, queremos agir e responder prontamente”, afirma a jornalista. (Acrescentaria que não só não somos capazes de silenciar e postergar, como existe uma convenção informal de que os retornos devem ser instantâneos, sob o risco de parecermos desatentas, relapsas, descomprometidas…)

Nos transformamos numa multidão de falantes em que os ouvintes estão ali apenas para confirmar nossas premissas. Argumentar dá trabalho, pede prudência, e perdemos a habilidade e o tempo para isso

Essa mesma reatividade está na base do que chamamos de “cultura do cancelamento”, na qual redes sociais são usadas “como palco e combustível” para linchamentos virtuais, numa velocidade que, segundo Petria, é “exponencial a nossa inabilidade crescente de dialogar”. Isso porque, como diz o filósofo Luiz Felipe Pondé no livro, a escuta do outro é um fetiche: “ninguém quer de fato escutar ninguém”, e isso se escancara nessas plataformas. São ferramentas que ocupamos para consumir doses de dopamina em forma de likes, pouco importando o que as pessoas estão de fato escrevendo, lendo e pensando, num formato desenvolvido e aprimorado para alimentar egos, premiar reações extremas e acabar com todas as formas possíveis de argumentação. Não há reflexão, autocontrole ou sabedoria. Ninguém se lê. Ninguém se respeita. Tudo é gritaria e ameaças.

Pouca coisa muda quando estamos frente a frente. Sento à mesa de um restaurante e o casal ao lado está mudo, cada um muito focado em seu smartphone. O mesmo ocorre quando encontro amigas e os aparelhos de telefone são o primeiro item a sair da bolsa para checagens constantes de novas mensagens, novos posts, novas notícias. Tudo é urgente. Por outro lado, ouço confidências pensando na resposta pronta que darei no instante seguinte, num monólogo ao qual minha interlocutora estará pouco atenta, pois fala mais sobre mim do que dela.

Nos transformamos numa multidão de falantes em que os ouvintes estão ali apenas para confirmar nossas premissas. Argumentar dá trabalho, pede prudência, e perdemos a habilidade e o tempo para isso. Por esse motivo, nos encerramos em bolhas, cuja repercussão mais nefasta é a polarização que coloca de um lado os que concordam com a gente e, do outro, os feios, sujos e malvados que discordam. Tudo isso considerando que “todes” têm permissão à escuta e ao silêncio, o que não é verdade. Mulheres não têm. Mulheres negras, menos ainda. Recortes interseccionais de gênero, raça, classe social, nacionalidade determinam quem têm ou não a prerrogativa de falar e ser ouvido.

Nesse ambiente, adoecemos. Silenciamos nossas crianças com telas. Nos tornamos parceiras e parceiros incapazes de dedicar um tempo a compreender as dores do outro. Somos filhas sem paciência frente à perplexidade das mães. Bebemos muito, comemos em excesso e nos entorpecemos com drogas e apps, pois silenciar e escutar-se é também ter de lidar com as angústias que nos atormentam. Nos tornamos, em resumo, insuportáveis.

Então, sim, a falta de silêncio e de escuta é um dos grandes dramas da humanidade e confrontar a indisposição a ouvir e a dialogar exige atenção, esforço e treino. No livro, Petria elenca aprendizados que recolheu em diferentes áreas do conhecimento. Dedicar um tempo para silenciar e ouvir-se por meio da meditação é a principal recomendação, mencionada por praticamente todas e todos os profissionais entrevistados para o livro. Não há regra para essa pausa no fluxo de pensamentos, que cada uma/um pratica de acordo com o que lhe cai bem - Frei Beto, por exemplo, a realiza por meio de orações. O famoso mindfulness, ou seja, a concentração total no que se está fazendo, seja lá o que for, é outra sugestão em comum. É com essa fórmula que tento manejar a ansiedade de ser tentada a me conectar a muitas coisas, ao mesmo tempo.

Refletir antes de reagir. Fugir de respostas imediatas. Ouvir o outro com verdadeiro interesse e atenção. Conscientizar-se de que a vida criada por e para as redes sociais é uma ilusão. Acima de tudo, como diz Petria, experimentar mais do que seguir regras. Sigo uma aprendiz que levou muito mais horas do que deveria para finalizar este texto, pois não resisti a checar mensagens, atualizar o feed e visualizar notícias. Mas, agora, vou sair para tomar um café sem o smartphone, acompanhada de livro, papel e caneta. Garanto que, na volta, o mundo estará tal e qual o deixei.

Adriana Ferreira Silva é jornalista especialista em estratégias e conteúdos digitais; editora voltada a pautas interseccionais com recorte de gênero, representatividade e inclusão; curadora de eventos de liderança feminina, literatura e jornalismo; mediadora e palestrante. Em 25 anos de carreira, atuou como correspondente internacional em Paris e trabalhou nas redações das revistas Marie Claire, Vogue Brasil e Veja São Paulo, no jornal Folha de S.Paulo e como colunista da rádio CBN. Escreve para a revista de literatura Quatro Cinco Um e é cofundadora da Grená - Agência de Criação.

Fonte:  https://www.nexojornal.com.br/colunistas/autor/Adriana-Ferreira-Silva

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