por José Luís Fiori e William Nozaki*
Publicado 04/04/2023 às 20:06 - Atualizado 04/04/2023 às 20:08
Por José Luís Fiori e William Nozaki
Título original:
DE VOLTA À QUESTÃO DO DESENVOLVIMENTO e à necessidade de uma “bússola de investimentos”
O “debate desenvolvimentista” latino-americano
não teria nenhuma especificidade se tivesse se reduzido
a uma discussão macroeconômica entre
“ortodoxos” neoclássicos ou liberais
e “heterodoxos” keynesianos ou estruturalistas.
Na verdade, ele não teria existido se não fosse
por causa do Estado e da discussão sobre a eficácia ou não
da intervenção estatal para acelerar o crescimento econômico,
por cima das “leis de mercado”
Fiori, J.L, “Estados e Desenvolvimento: notas para um novo programa de pesquisa”
Documentos de projetos, estudos e pesquisas, Escritório da Cepal, Brasilia, 2013.
A crise e abandono do “desenvolvimentismo”
A história do debate latino-americano do
século XX, sobre a “questão do desenvolvimento” é bastante conhecida,
assim como a história da ascensão e declínio das políticas
desenvolvimentistas praticadas no período entre a Segunda Guerra Mundial
e a “crise econômica americana”, que marca o fim do sistema de Bretton
Woods, no início da década de 70.
Durante este período, a
hegemonia das teses e “politicas desenvolvimentistas” foi sustentada
pelos Estados Unidos e apoiada pelos países europeus, como resposta às
teses econômicas socialistas que exerceram grande influência teórica e
política em todo o mundo durante todo o período da Guerra Fria. Mas
durante a década de 70, o fim do sistema de Bretton Woods e a derrota
militar americana no Vietnã, somados à alta do preço do petróleo e das
taxas de juros, provocaram em conjunto a primeira grande crise e
recessão da economia mundial do pós-Segunda Guerra.
Alguns
chegaram a falar numa “crise terminal da hegemonia americana”, mas foi
exatamente esta crise que abriu as portas para uma mudança drástica na
política externa, e, sobretudo, na política econômica dos Estados
Unidos. Foi nesta década de 70 que os Estados Unidos deixaram para trás o
seu projeto desenvolvimentista do pós-Guerra, e passaram a defender em
todo mundo (menos nos Estados Unidos), sua nova estratégia neoliberal de
desregulação e abertura dos mercados nacionais, privatização das
empresas estatais, desmontagem das políticas de bem estar social, e
globalização das grandes cadeiras produtivas e dos mercados financeiros.
Essas
reformas liberais deveriam ser acompanhadas pela adoção da mesma
política macroeconômica ortodoxa em todos os países capitalistas
tutelados pela política de juros do Banco Central americano e pelo
sistema bancário e financeiro europeu (“free markets and sound money”).
O
abandono completo do projeto de “estado desenvolvimentista” deu origem à
aposta exclusiva na força motora dos “mercados globalizados”. Esta
mesma estratégia foi adotada por quase todos os países capitalistas do
“mundo ocidental”, e teve um impacto profundo nos países
latino-americanos, com a redução ao mínimo do investimento público
submetido à austeridade fiscal e à sanção instantânea dos agentes
privados e públicos coordenados pelos “bancos centrais independentes” de
cada país em particular.
De volta à “questão do desenvolvimento” no cenário global
Entretanto,
nesta terceira década do século XXI, os Estados Unidos e seus satélites
europeus, uma vez mais, estão deixando para trás esta estratégia
econômica global, constrangidos pelos seus próprios fracassos, expressos
na assimetria de desenvolvimento, na hiperconcentração de renda e
riqueza, na explosão da miséria e do desemprego, nas instabilidades e
crises financeiras, nas emergências climáticas e ambientais, na
fragilização das democracias e no avanço da extrema-direita.
A todos esses problemas se somam ainda aos efeitos “desglobalizantes”
da pandemia de COVID-19 e seu impacto disruptivo sobre as cadeias
internacionais de produção e distribuição, por exemplo, de fármacos,
fertilizantes e alimentos. Além disso, a Guerra entre Rússia e Ucrânia
tem deixado impactos econômicos deletérios sobre o mercado internacional
de energia e sobre as taxas de inflação do bloco euro-americano de
países.
A crise que está em pleno curso não tem nenhuma
perspectiva imediata de solução ou mudança de rumo, pelo contrário, tudo
indica que deva se arrastar por um longo período, talvez por toda a
década de 2020, com consequências econômicas e financeira que devem
mudar o desenho geoeconômico do mundo projetando-se sobre toda a
primeira metade do Século XXI.
Desta vez, portanto, a mudança da política econômica internacional
dos Estados Unidos e dos demais países do G7 e seus satélites, e também
da Rússia e demais economias nacionais do sistema mundial, está se dando
por pressão dos fatos e sem nenhum tipo de defesa ideológica ou
teorização econômica. Em todos os casos, os governos destes países
voltaram a dar primazia econômica ao princípio da sua segurança e da sua
defesa nacional, deixando de lado suas antigas crenças nas virtudes
autônomas dos mercados.
No caso dos Estados Unidos, da Europa, da
Rússia e da China, e de vários outros países envolvidos no confronto
geopolítico e militar que está em curso, suas novas políticas econômicas
estão cada vez mais submetidas aos desígnios estratégicos dos seus
governos. Sem se submeter nem levar em conta a opinião da imprensa
liberal e as críticas tradicionais dos economistas ortodoxos às
políticas econômicas de corte “mercantilista”, “nacionalista” ou
“protecionista”.
Ninguém dentro destes governos está preocupado
neste momento com o fato de sua política econômica ser mais ou menos
ortodoxa ou heterodoxa, e todos vão aderindo às novas políticas através
de decisões emergenciais que vão sendo tomadas a cada dia, como resposta
ao desafio militar imediato, e à crise econômica e social que está se
avolumando dentro dos principais países envolvidos na Guerra da Ucrânia.
Estes
mesmos países vem tomando decisões e levando à frente políticas cada
vez mais voltadas para as possíveis guerras futuras que estão ameaçando o
seu. Na verdade, cada vez mais, a guerra está se transformando na
bússola comum que vem orientando os principais investimentos públicos e
privados destas grandes potências. Mas mesmo no caso dos países
distantes da guerra, o que todos tem em comum neste momento é uma
preocupação cada vez maior com o problema da sua segurança, seja ela
industrial, tecnológica, alimentar, energética ou sanitária.
Ao
que tudo indica, o sistema mundial hegemonizado pelo bloco
euro-americano já se fragmentou e não há nenhuma perspectiva neste
momento de que a nova “ordem multipolar” venha a ser consagrada por
algum grande acordo diplomático, ou por algum grande Tratado de Paz. Da
mesma forma, declina a passos largos a hegemonia do dólar dentro do
sistema econômico eurasiano, abrindo portas para nascimento progressivo
de um novo sistema econômico mundial plurimonetário.
De volta à “questão do desenvolvimento” no cenário brasileiro
Situado
ao sul do continente americano, o Brasil também vem enfrentando o
desafio de redefinir sua inserção internacional no meio deste tufão que
está sacudindo os alicerces geopolíticos e econômicos do sistema
internacional construído depois da Segunda Guerra, e, em particular,
depois do fim da Guerra Fria.
O Brasil encontra-se neste momento
sob a pressão simultânea da velha e da nova ordem em construção. Ou
seja, encontra-se com um pé geográfico e militar no hemisfério
ocidental, e o outro pé econômico e financeiro cada vez mais envolvido
com a China e com o grupo do BRICS, sofrendo a pressão simultânea,
geopolítica e financeira, dos dois lados deste mundo em transformação.
Pressionado, o Brasil não tem como se desfazer, nem tem por que abrir
mão neste momento, destas suas várias conexões e articulações mundiais.
Mas,
ao mesmo tempo, o país não tem como avançar em meio a este nevoeiro se
não for capaz de construir, por sua própria conta, a bússola que deve
orientar seus investimentos públicos e seus acordos econômicos e
tecnológicos com os grandes capitais privados, nacionais e
internacionais que se proponham investir na economia brasileira.
A
bússola estratégica do Brasil não é a guerra, nem deve ser a
participação em guerras futuras de terceiros países, e é por isto que a
hierarquização dos seus grandes objetivos nacionais e dos seus grandes
eixos de investimento acaba sendo mais complexa do que no caso dos
países que estão envolvidos com a guerra.
Esta discussão pode
tomar tempo para amadurecer, mas é preciso começá-la imediatamente. E é
com este objetivo que reunimos e colocamos sobre a mesa algumas ideias e
propostas que não são novas, mas que podem ter sido esquecidas ou
obscurecidas pelo fanatismo ultraliberal que tomou conta do debate sobre
política econômica.
Nunca é demais lembrar, somos um país de
território continental, de demografia populosa, de cultura diversa, e,
portanto, com vocação para nos desenvolvermos geograficamente em
múltiplas dimensões. A superação da pobreza e a construção da riqueza da
nação dependem de construirmos a nossa própria bússola.
Os
arcabouços fiscais e monetários são meros instrumentos para viabilizar
onde queremos chegar, são meios e não fins em si mesmos. Saber o lugar
que pretendemos atingir – sobretudo na atual conjuntura internacional de
reativação do papel do Estado, do investimento e da segurança – exige
que saibamos em que regiões, setores e projetos devemos apostar,
começando por um mapeamento simultâneo das áreas, desafios e
oportunidades em que as nossas vantagens comparativas e competitivas
podem estar a serviço da reindustrialização.
Ao Norte temos a
Floresta Amazônica, área com potencial para desenvolvermos uma
bioeconomia baseada em recursos naturais, biodiversidade e florestas,
com um modelo intensivo em CT&I e mobilizador de redes de
conhecimento produtivo, capaz de aproveitar as vantagens comparativas do
bioma Amazônia e capaz de se articular ao sistema de provisão do SUS
por meio de biofármacos e bioquímicos, itens em que nosso coeficiente de
importação é altíssimo.
Ao Sul temos uma região historicamente
estratégica, a Bacia do Prata, área propícia para a construção de uma
infraestrutura capaz de fazer com que o país volte seus olhos para a
América do Sul e para o Pacífico, num modelo que estimule a integração
sul-americana e que facilite a conexão com os principais parceiros
comerciais da região na Ásia, um projeto, por seu turno, que pode ser
materializado na construção de infraestrutura bioceânica que liga o
Atlântico ao Pacífico.
Ao Leste temos os olhos voltados para o
Atlântico e a África negra, com potencial para o avanço de uma indústria
offshore capaz de mobilizar recursos naturais estratégicos energéticos e
minerários, orientada pela verticalização de cadeias produtivas que nos
permitam alcançar autossuficiência em refino, gás e fertilizantes, os
principais itens da nossa pauta importadora.
A Oeste temos o
coração estratégico voltado para a integração nacional, que para se
consolidar deve conter a expansão predatória e ilegal da fronteira
agropecuária em favor do estímulo a novos sistemas agroalimentares mais
inovadores e com compromissos socioambientais.
O país tem
potencial para desbravar novas fronteiras associadas a recursos naturais
estratégicos, com o do lítio e dos novos minerais energéticos, e a
recursos industriais e tecnológicos, como a produção de semicondutores e
circuitos integrados, fundamentais para todos os segmentos ligados à
chamada Quarta Revolução Industrial.
Hierarquizar os objetivos e
projetos dentro destas grandes áreas é um trabalho político que tomará
tempo, porque não se trata de uma problema puramente técnico, ou mesmo
econômico, e envolverá uma negociação permanente entre grupos de
interesse que são extremamente heterogêneos e possuem um poder
extremamente desigual.
Mas, mesmo assim, a definição destes
objetivos e a construção desta “bússola” é uma tarefa urgente e
incontornável. Sem ela, o país pode alcançar o pleno “equilíbrio fiscal”
e se transformar em um barco encalhado à espera dos mercados e dos
investimentos privados, quando em todo o resto do mundo os estados já
estão atuando agressivamente, conscientes de que o capitalismo não opera
– sobretudo nas suas horas de crise – como uma mera economia de
mercado, mas funciona sim, como dizia o historiador francês Fernand
Braudel, como um verdadeiro “antimercado”.
* José Luís Fiori é professor titular do Programa de Pós-graduação em
Economia Política Internacional (IE/UFRJ); pesquisador do Instituto de
Estudos Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis (INEEP).
William Nozaki é professor da Fundação Escola de Sociologia e Política
de São Paulo (FESPSP) e diretor técnico do Instituto de Estudos
Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis (INEEP).
Fonte: https://outraspalavras.net/mercadovsdemocracia/fiori-de-volta-ao-desenvolvimento/
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