terça-feira, 21 de junho de 2011

Ação Cultural nos tempos do cólera

Leonardo Brant*


Foto Celso Tissot
Era uma vez Ação Cultural. Nasceu bela, sedutora, frágil e vive até hoje por um fio, pela vontade de viver. Sua mãe gentil a abandonou de cara, sequer a amamentou. Seu pai, ditador, educou para ser obediente. Logo após a morte do pai, Ação Cultural enamorou-se por Mecenas. Lindo, garboso, com carro tração nas 4 rodas e óculos RayBan, convidou-a para sair.
Ação Cultural nunca havia se sentido tão linda e bem tratada em toda a sua vida. O namoro virou casamento. Descobriu-se que o interesse de Mecenas por Ação Cutltural baseava-se em seu dote, uma herança dos tempos da pátria com o ditador. Mecenas só tinha olhos para si mesmo e não percebeu o descontentamento de Ação Cultural. Ela queria ir ao cinema de arte, a peças experimentais, queria viajar pelo país, conhecer e se encantar pela diversidade. Ele só queria shopping center.
Ela obediente e ele cheio de si, Mecenas enclausurou Ação Cultural. Sem coragem de falar e sem clima de diálogo, Ação Cultural não teve outra saída senão pular o muro, traí-lo com a gente do povo. Se misturou com o Brasil.
Em suas andanças reencontrou sua mãe, que lhe prometeu mundos e fundos, mostrou-se arrependida por todo o descaso e abandono. Ela havia se casado novamente, agora um pernambucano afável, boa praça, carinhoso, daqueles que não sabem dizer não. Com a crença na mudança, Ação Cultural resolveu fazer tudo aquilo que sempre quis, mas nunca teve coragem.
Foi um período fértil, de muitos amigos, de esperança. Seu novo pai, entusiasta, pôs lenha na fogueira: – Vá em frente minha filha, faça o que tiver de fazer, largue tudo, conte comigo. O dinheiro não chegava, mas a confiança naquilo que fazia era tanta que Ação Cultural se endividou. A vida no vilarejo mudou, ficou mais rica. Agora não era só o Mecenas a andar de automóvel. Gente comum comprava eletrodoméstico e televisão de plasma.
Chegou a eleição. O pai precisou se ausentar, mas deixou no lugar alguém de confiança para tomar conta do barraco. Pelo tamanho da festa dava-se a impressão de que todas as prestações atrasadas seriam coisa do passado. Foi tanta cachaça, carne de porco, pé-de-moleque… teve até ópera, uma companhia inteira criada só para a ocasião. E veio gente de twitter, transmitindo via streaming, um luxo só. Ação Cultural se sentiu chique no meio de tanta gente famosa e descolada.
No meio de tanta farra, Ação Cultural resolveu profissionalizar tudo aquilo que antes fazia de graça. E como era certo que o dinheiro de painho iria chegar, fez tudo financiado pelo Banco do Brasil. A conta da festa foi tão alta que faltou para Ação Cultural. A outra filha, Propaganda, comeu quase tudo. Só agora começou a pingar feito água em chapa quente: – Os juros consomem tudo o que é da gente…
Ação Cultural está inadimplente. Não pode mais receber herança. Mecenas perdeu o interesse, sabe-se que perdeu todo o dinheiro na bolsa. Perdida, Ação Cultural quer painho, quer viver de emoção, quer ter esperança.
Em tempos de cólera, resolveu procurar o novo médico da cidade, Dr. Gestão, que também está cuidando da mãe gentil. Diz que ele é capaz de curar Ação Cultural de todos os males. Além de tirá-la da inadimplência, pode reatar com Mecenas e, ao mesmo tempo, viver livre pelos bosques, se engraçar com o Mercado, um cabra mulherengo com fama de mau caráter.
Ação Cultural abriu conta no Google, Twitter, Facebook, Youtube, virou digital e está no Creative Commons, de olho na Banda Larga. Dizem que é o melhor caminho para chegar à classe C. Só que dessa vez, Ação Cultural vai ter de se virar sozinha.
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*Pesquisador independente de políticas culturais, autor do livro "O Poder da Cultura". Diretor do documentário "Ctrl-V VideoControl, criou e edita o site Cultura e Mercado. É sócio-diretor da Brant Associados, consultoria para desenvolvimento de negócios culturais.

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