quinta-feira, 16 de junho de 2011

O carimbo do bullying

Vanessa Fagionatto Vicentin*
A mãe de Letícia está preocupada com a filha. Várias vezes ela foi chamada para buscá-la na escola, porque a garota apresentava queixas de dor de cabeça. Além disso, as notas da menina, que sempre foram boas, decaíram. Percebeu também que a filha já não se interessa em participar das festas de aniversário dos colegas da escola.
Questionada pela mãe, Letícia não relata o que está acontecendo. No entanto, Letícia está sendo alvo de bullying. Com sobrepeso, ela é ironizada por dois garotos de sua classe – a chamam de “baleia”. Letícia teve crises de choro na escola, após vários episódios de sátiras.
O termo bullying tem sido citado por pais, professores, profissionais de comunicação e até mesmo entre as crianças. Mas, afinal, o que é bullying? Segundo a precursora do tema no país, a professora Cléo Fante, o bullying é um fenômeno tão antigo quanto o surgimento da escola. Desde que existe agrupamento de crianças, existe bullying. O termo inglês é traduzido como maltrato entre pares e designa a prática de atos agressivos de um ou mais autores contra uma pessoa que será um alvo.
Atualmente, em razão de inúmeros casos de violência na escola apresentarem sinais de bullying, existe uma grande e talvez excessiva preocupação em relação ao tema. Por exemplo, a tragédia de Realengo traz indícios de que o agressor tenha sido alvo de bullying. O fenômeno bullying pode ter favorecido a sua reação vingativa em relação à escola? Sim, pode ter favorecido, mas não determinado. O que determinou a ação do autor foi a sua personalidade desequilibrada.
Sem compreender essa situação, muitos pais e educadores entram em desespero e acreditam que tudo é bullying, confundindo o mesmo com as situações de conflitos interpessoais, fundamentais para o desenvolvimento psicológico da criança e do adolescente. Dia desses, uma professora relata que um garoto de sete anos chamava uma colega de classe de “gorda” e a mãe da criança, que chegava para buscá-la e ouvia o comentário, disse: “Olha! Isto é bullying! É crime”. A preocupação da professora com o imprevisto foi com o fato de que a garota havia provocado o colega anteriormente e a agressão foi isolada, o que não se configura bullying.

Conflitos necessários

É importante salientar que a maioria das ações agressivas na escola tem relação com os conflitos, e não com o bullying. Conflitos interpessoais são situações naturais de desacordo entre as pessoas e necessários ao desenvolvimento de crianças e adolescentes. É por meio dos conflitos que eles têm a chance de aprender a se colocar no lugar do outro e a falar o que pensam e sentem de forma respeitosa. Na visão construtivista, as crianças não nascem sabendo dialogar e trocar pontos de vista de forma harmônica. É natural que agridam ou permitam ser agredidas até que cheguem à conclusão de que existem formas mais evoluídas de resolver desentendimentos interpessoais. Portanto, os alunos batem, xingam, ironizam, acusam injustamente como forma de resolver muitos conflitos. Contudo, o outro envolvido no desacordo bate, xinga, ironiza, acusa injustamente como forma de defesa. Em outros termos, envolve uma relação de igualdade. Diferentemente do bullying, que envolve uma criança que se sente com pouco poder e fica sendo alvo de outra que se sente com muito poder, envolve uma relação de desigualdade.
Apesar da maior frequência dos conflitos interpessoais na escola, quando comparados ao bullying, os danos para o segundo podem causar marcas quase irreversíveis na personalidade dos envolvidos. Por este fato, e por ser um fenômeno silencioso diante das figuras de autoridade, a comunidade escolar deve se mobilizar, já que o bullying não é brincadeira.
As consequências são inúmeras para os personagens. Para o alvo de bullying, os problemas físicos decorrentes do estresse, isolamento, tristeza, ansiedade e dificuldades escolares são algumas das implicações imediatas. Futuramente, o alvo de bullying que não recebeu tratamento pode ser constantemente envolvido em situações cíclicas de maltrato. Tende a ser alvo de abuso no trabalho, nos relacionamentos amorosos e nas amizades. Depressão, suicídio e vingança são algumas alternativas para o alvo de bullying. Para o autor de bullying, a hostilidade e as atitudes desafiadoras em relação às figuras de autoridade são bastante comuns. As atitudes de humilhação tendem a ser cíclicas em outras relações como a família e o trabalho.
Ainda que as conquências sejam preocupantes, alguns podem dizer que, em uma classe, uma criança é alvo de bullying ou às vezes nenhuma. Para que tamanho alarde? Nem todas as crianças que foram agredidas sairão metralhando criancinhas na fase adulta. Muitos vão superar, tormando-se pais de família e trabalhadores responsáveis. Será que a preocupação é excessiva e estamos transformando as exceções em regras?

O papel dos alunos e da escola

Nossa maior preocupação: a formação dos alunos. Autor, alvo e plateia de bullying mostram uma evidência que pode não estar muito explícita para as pessoas: sérios problemas na construção de valores como justiça e respeito mútuo. O autor tem dificuldade de respeitar o próximo. O alvo, de colocar o seu valor ao outro. E a plateia… a maioria dos alunos, que riem ou apenas assistem à humilhação e nada fazem diante do maltrato, apresenta dificuldade de se indignar com o desrespeito. Em outros termos, em uma situação que envolve um autor e um alvo, nós temos evidências de dezenas de alunos com problemas na formação moral.
O que os educadores fazem quando sabem de um caso de bullying? Suspendem e advertem o autor e poupam o alvo. Nem se dão conta de que existe uma plateia. É preciso entender que o autor de bullying é alguém que também precisa de ajuda. Ele não é um criminoso. Os educadores precisam limitar a sua ação com respeito. Só assim ele entenderá a necessidade desse princípio. Existem ações diretas que podemos realizar quando surge o problema e ações indiretas. Entrevistas individuais com o autor e o alvo para realizar acordos entre as partes, encorajar o autor a reparar a sua ação, e as sanções por reciprocidade caso o autor rescinda a agressão são algumas estratégias diretas utilizadas quando o problema já ocorreu. Trabalho com assembleias escolares, discussão de conflitos hipotéticos e de dilemas morais e trabalho com sentimentos são procedimentos indiretos que a escola precisa adotar sistematicamente para favorecer a formação moral dos alunos.
Esses últimos procedimentos não devem ser usados apenas para prevenir o bullying. Devem constar para que os alunos possam construir recursos cognitivos e afetivos mais evoluídos, visando a resolver os conflitos que todos enfrentarão. A escola muitas vezes fica preocupada apenas com o bullying. A preocupação deve ser maior: como formar pessoas que respeitam e se fazem respeitar, seja em situações de bullying, de conflitos ou de indisciplina e incivilidades. A preocupação, portanto, é necessária, mas não restrita ao bullying, e sim à formação moral dos alunos.
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* Vanessa Fagionatto Vicentin é doutora em Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano e professora de pós-graduação da Unifran.
** Publicado originalmente no suplemento Carta na Escola, no site da revista Carta Capital.
Fonte: http://envolverde.com.br/educacao 16/06/2011

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