"Se máquinas artificialmente inteligentes têm uma alma,
terão elas a capacidade de estabelecer uma relação com Deus? A Bíblia
ensina que a morte de Jesus redimiu 'todas as coisas' na criação e
tornou possível a reconciliação com Deus. Então Jesus morreu pela
inteligência artificial também? A IA pode ser 'salva'?"
Em seu mandato relativamente curto, o Papa Francisco vem trabalhando duro para acolher, na Igreja Católica, as pessoas que buscam desenvolver-se espiritualmente. Ele se recusou a julgar pessoas LGBTs, procurou integrar os fiéis divorciados e recasados e estendeu a atribuição dos padres de perdoar o aborto. É bem provável, porém, que os braços estendidos de Francisco não tenham se estendido tanto quanto numa missa em 2014, onde deu a entender que a Igreja deveria batizar os marcianos.
“Se, por exemplo, amanhã uma expedição de marcianos vier até aqui e
um deles disser ‘eu quero ser batizado’, o que aconteceria?”,
perguntou-se ele. “Quando o senhor mostra o caminho, quem somos nós para
dizer: ‘Não, o senhor não é decente’. Não, nós não podemos fazer dessa
maneira”.
Embora brincalhão, esse cenário recebeu um ar sério sobre até que
ponto pode chegar a acolhida da Igreja. O cristianismo, a maior religião
do mundo, deveria abraços “toda” a vida inteligente? Até mesmo alienígenas?
Havemos de concordar: a chegada de criaturas espaciais verdes em busca
de salvação é pouco provável. Mas essa lição do papa abre a porta à
aceitação de um outro ser da ficção científica também – um que não é
facilmente ignorado. A saber, as máquinas hiperinteligentes.
Embora a maior parte dos teólogos não esteja prestando muita atenção
ao assunto, alguns estudiosos da tecnologia estão convencidos de que a inteligência artificial está
em um trajeto inevitável em direção à autonomia. Que a distância que
estamos desta realidade depende de a quem perguntamos, mas o percurso
levanta algumas dúvidas fundamentais para o cristianismo – da mesma
forma para a religião em geral, embora, para neste artigo, irei me deter
na tradição de fé que melhor conheço. De fato, a inteligência
artificial – ou simplesmente IA – pode ser a maior ameaça à teologia cristã desde “A origem das espécies”, de Charles Darwin.
Durante décadas, a inteligência artificial vem
avançando a uma velocidade vertiginosa. Hoje, os computadores podem
pilotar aviões, interpretar exames de raio-X e esquadrinhar provas
forenses; algoritmos podem pintar obras-primas de arte e compor
sinfonias no estilo de Bach. A empresa Google está desenvolvendo um “raciocínio moral artificial” de forma que os seus carros sem motoristas possam tomar decisões diante de acidentes potenciais.
“A IA já está aí, é real”, diz Kevin Kelly, uma das fundadoras da revista Wired e autora do livro “The Inevitable: Understanding the 12 Technological Forces That Will Shape Our Future
[O inevitável: como entender as 12 forças tecnológicas que irão moldar o
nosso futuro, sem tradução ao português]. “Eu acho que a fórmula para
as próximas 10 mil startups é pegar algo que já existe e acrescentar-lhe a IA”.
Apesar da promessa da IA, alguns pensadores estão
profundamente preocupados com um momento em que as máquinas poderão se
tornar agentes plenamente sencientes, racionais – seres com emoções,
consciência e autoconsciência. “O desenvolvimento de inteligência artificial plena pode significar o fim da raça humana”, disse Stephen Hawking à BBC
em 2014. “Assim que os humanos desenvolverem a inteligência artificial,
ela irá decolar por conta própria e redesenhar a si mesma em um ritmo
cada vez maior. Os humanos, limitados por uma evolução biológica lenta,
não poderiam competir e seriam substituídos”.
Essa explosão de inteligência artificial é um dos
muitos futuros que os estudiosos da tecnologia imaginam para os robôs,
nem todos necessariamente apocalípticos. Porém a possibilidade de uma
ameaça aos seres humanos, por menor que seja, é real a ponto de alguns
estarem defendendo medidas de precaução. Mais de 8 mil pessoas,
incluindo Hawking, Noam Chomsky e Elon Musk, assinaram uma carta aberta [1] advertindo contra as “armadilhas” potenciais do desenvolvimento da inteligência artificial. Ryan Calo, professor de direito da Universidade de Washington, propõe o desenvolvimento de uma Comissão Robótica Federal para monitorar e regular os desdobramentos na área de forma que não inovemos de modo irresponsável.
Enquanto as inquietações se centram, em sua maior parte, na economia,
no governo e na ética, há também uma “dimensão espiritual para o que
estamos produzindo”, diz Kelly. “Se criarmos outras coisas que pensam por si próprias, uma grave ruptura teológica ocorrerá”.
A história empresta credibilidade a essa previsão, visto que muitos
importantes avanços científicos tiveram impactos religiosos. Quando Galileu defendeu o heliocentrismo
no século XVII, esta teoria desafiou as interpretações cristãs
tradicionais de certas passagens bíblicas, que pareciam ensinar que a
terra era o centro do universo. Quando Charles Darwin popularizou a teoria da seleção natural
no século XIX, esta contestou as crenças cristãs tradicionais sobre as
origens da vida. Tal tendência continuou com a genética moderna e a
climatologia.
A criação de robôs autônomos não
humanos desorganizaria a religião, como todo o restante, em uma escala
inteiramente nova. “Se os humanos criarem seres com vontades livres”,
afirma Kelly, católica de nascimento e que se identifica como cristã, “absolutamente todos os aspectos da teologia tradicional estarão desafiados e terão de ser reinterpretados”.
Por exemplo, consideremos a alma. Em sua maioria, os cristãos
entendem a alma como um elemento singularmente humano, um componente
interno e eterno que anima o nosso lado espiritual. Essa noção tem
origem na narrativa da criação, presente no livro de Gênesis,
onde Deus “criou os seres humanos à sua própria imagem”. No relato
bíblico, Deus forma Adão, o primeiro humano, a partir do pó e sopra vida
em suas narinas para fazê-lo, literalmente, “uma alma viva”. Os
cristãos acreditam que todos os seres humanos, desde essa época, possuem
de forma semelhante à imagem de Deus e uma alma.
Mas o que exatamente é uma alma? Santo Agostinho,
filósofo cristão dos primeiros séculos, observou que “Eu, pois, nada
certo descobri em se tratando da origem da alma nas escrituras
canônicas”. E Mike McHargue, que se descreve como um místico cristão e autor do livro “Finding God in the Waves: How I Lost my Faith and Found it Again Through Science
[Encontrando Deus nas ondas: como perdi minha fé e a encontrei
novamente via ciência, sem tradução ao português], crê que a ascensão da
IA irá dissipar as ambiguidades na forma como muitos cristãos definem termos como “consciência” e “alma”.
“As pessoas em contextos religiosos não sabem exatamente o que é uma
alma”, diz ele. “Nós a entendemos como uma essência não física de um
indivíduo que não é dependente nem vincula-se ao corpo. Será que a IA vai ter uma alma segundo esta definição?”
Se esta indagação parece absurda, vejamos então as tecnologias como a fertilização in vitro e a clonagem genética. A vida inteligente
é criada por seres humanos em cada um desses casos, mas se presume que
muitos cristãos concordarão que estes seres possuem alma. “Se temos uma
alma e criamos uma cópia física de nós mesmos, supomos que a cópia
física também tenha uma alma”, afirma McHargue. “Mas se aprendermos a codificar digitalmente o cérebro humano, então a IA será uma versão digital de nós próprios. Se criarmos uma cópia digital, essa cópia também terá uma alma?”
Se estivermos dispostos a seguir nessa linha de raciocínio, os
desafios tecnológicos mostrar-se-ão abundantes. Se máquinas
artificialmente inteligentes têm uma alma, terão elas a capacidade de
estabelecer uma relação com Deus? A Bíblia ensina que a morte de Jesus
redimiu “todas as coisas” na criação e tornou possível a reconciliação
com Deus. Então Jesus morreu pela inteligência artificial também? A IA pode ser “salva”?
“Não acho que a redenção de Cristo se limite aos seres humanos”, declara à revista Gizmodo em 2015 Christopher Benek,
pastor da Providence Presbyterian Church, igreja na Flórida, e formado
em teologia pelo Seminário de Princeton. “É uma redenção a toda a
criação, inclusive para a IA. Se a IA for autônoma, então devemos
incentivá-la a participar dos propósitos redentores de Cristo no mundo”.
E quanto ao pecado? Tradicionalmente os cristãos ensinam que o pecado
impede a relação divina criando, de algum modo, uma barreira entre os
humanos falíveis e um Deus sagrado. Digamos que, no futuro robótico, ao
invés de erradicar os humanos, as máquinas decidem – ou têm programado
em algum local profundo nelas – que jamais cometer atos maléficos é o
bem maior. Será que os seres artificialmente inteligentes seriam
cristãos melhores do que são os seres humanos? E como isso impactaria na
visão cristã da depravação humana?
Até aqui as dúvidas dizem respeito à crença religiosa, mas há também muitas outras relacionadas à prática religiosa. Se os cristãos aceitam que toda a criação destina-se a glorificar a Deus, como a IA faria isso? Será que a IA frequentaria a igreja, cantaria hinos, cuidaria dos pobres? Será que ela rezaria?
James McGrath, professor de religião da Butler University e autor de “Theology and Science Fiction”, recentemente considerou a questão da oração usando uma estranha tarefa escolar. Ele propôs a seus alunos que pedissem ao Siri –
assistente pessoal dos dispositivos da Apple – a orar por eles e, em
seguida, a observar o que acontecia. Os alunos rapidamente souberam que o
Siri se sentia mais confortável diante de perguntas como “O que é
oração?” do que de comandos como “Ore por mim”. Quando orientado a
rezar, o Siri basicamente respondia: “Não estou programado a fazer
isso”. Mas se uma versão mais avançada do Siri fosse programada para
rezar, terá uma tal ação algum valor? Deus recebe orações de todo e
qualquer ser inteligente – ou apenas da inteligência humana?
Não há respostas fáceis aos cristãos dispostos a
encarar estes questionamentos. E, certamente, pode ser que os cristãos
não devem se importar com isso em primeiro lugar. Em nenhum momento a
Bíblia fala com antecipação sobre uma inteligência não humana,
muito menos aborda as questões e preocupações que ela suscita. Ela
ensina, entretanto, que Deus estabeleceu uma relação especial com os
seres humanos que é única entre todas as criaturas. Russell Bjork, professor na Gordon College, cauteloso quanto a ampliar a compreensão cristã de pessoa para incluir a IA, sustenta, em artigo publicado na revista Perspectives on Science and Christian Faith:
“O que torna os humanos especiais não é o que a humanidade ‘é’, mas a
relação de Deus conosco baseada em seu propósito para nos criar”.
Além da Bíblia, muitos cristãos assumem credos antigos para se orientarem. Um dos mais populares, o Credo Niceno,
fala de Jesus como “um só Senhor Jesus Cristo (…), gerado, não feito”. O
corolário implícito é que os seres humanos são filhos de Deus que são
feitos, não gerados. Os cristãos acreditam que Deus faz seres humanos,
mas os seres humanos fazem máquinas. Segundo essa lógica, pode-se
concluir que a IA não pode ser considerada filha de Deus ou possuidora
de alma.
Isso, porém, não impediu Kevin Kelly de começar a defender o desenvolvimento de um “catecismo para os robôs”.
Um catecismo é uma declaração de fé normalmente enquadrada num formado
de pergunta e resposta que resume a crença ortodoxa e geralmente é
ensinada às crianças em algumas tradições religiosas. Kelly diz que leva
essa ideia “muito a sério” e até mesmo a sugeriu em uma palestra na
Conferência Q, evento anual que reúne mais de mil líderes cristãos
proeminentes.
“Haverá um momento no futuro em que esses seres de vontade livre que
faremos nos dirão: ‘Eu creio eu Deus. O que faço?’ A essa altura,
deveremos ter uma resposta”, diz Kelly.
Kelly, McHargue e McGrath
estão todos convencidos de que a maioria dos teólogos tradicionais,
hoje, não se envolvem o suficiente em debate como este por estarem
presos a antigos temas. McHargue nota que as dúvidas sobre a IA e teologia são umas das mais comuns da parte dos que ouvem os podcasts “Ask Science Mike” e “The Liturgist” apresentados por ele. “Qualquer inteligência não biológica, não humana irá apresentar um desafio maior à religião e à filosofia humana do que qualquer outra coisa em toda a nossa história”, afirma ele.
Apesar destas situações inesperadas, McGrath levanta mais um outro ponto merecedor de atenção: na realidade, a IA pode
reforçar a fé da pessoa. “Para alguns de nós, a religião tem a ver
exatamente com reconhecer que eu, enquanto ser humano, não sou Deus e,
portanto, não tenho todas as respostas e irei inevitavelmente estar
errado sobre as coisas”, diz. “Se é esta a perspectiva da pessoa, então
descobrir que se está errado é algo bom. Isso apenas confirma aquilo que
já sabíamos: que a vida tem a ver com confiar em Deus e não em meu
próprio entendimento”.
Nota:
[1] Disponível aqui em inglês.
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Texto por Jonathan Merritt, escritor, em artigo publicado por The Atlantic, 03-02-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/565375-a-inteligencia-artificial-e-uma-ameaca-ao-cristianismo 06/03/2017
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