Luis Fernando Veríssimo*
Perdoe-me quem ainda não viu Silêncio, mas vou revelar o fim. O silêncio de que trata o filme do Scorsese é o silêncio de Deus diante das misérias do mundo e das súplicas dos crentes. Manter a fé diante do grande silêncio é um teste de devoção, desesperar de ouvir a voz de Deus leva a angústia e apostasia. Deus não se manifesta. Não dá nenhum sinal de vida. Como disse o Woody Allen, se apenas ele tossisse! Mas nunca se ouviu um som de Deus, a não ser para quem acredite que ele se faz ouvir no gorjeio dos pássaros ou num coral do Bach. Mas no filme do Scorsese, Deus fala. Não fica claro se, depois de tanto sofrimento, a voz que o padre Rodrigues ouve é mesmo de Deus ou é uma alucinação. Mas quem nos assegura que Deus não use as alucinações – e o cinema – para falar conosco?
Depois de ver Silêncio, vi, por acaso, Os Dez Mandamentos na televisão. Charlton Heston é Moisés, Yul Brynner é o faraó Ramsés, Cecil B. DeMille é o diretor. Impressionam os efeitos especiais e as cenas de multidão no filme, tudo feito – inclusive a repartição do Mar Vermelho, é mole? – sem computador, que não existia na época. E no filme Deus fala com Moisés, além de lhe passar as tábuas dos mandamentos. Me lembro que na época discutiu-se de quem deveria ser a voz de Deus. DeMille chegou a dizer que nada – inclusive, supõe-se, a passagem pelo Mar Vermelho – dera tanto trabalho quanto a escolha de uma voz para Deus. Cogitou-se chamar o ator e cantor Paul Robeson. Dois problemas: Robeson era negro, o que sugeriria que Deus também era, e comunista – que Deus, que se saiba, não é –, e estava sendo investigado. Uma boa escolha teria sido o James Earl Jones, se estivesse disponível então. Anos mais tarde, Jones faria a voz de Darth Vader. Outro bom papel.
A voz de Deus em Silêncio é igual à voz de Deus em Os Dez Mandamentos. Uma voz impecável de locutor. Inglês perfeito. Scorsese e DeMille obviamente se inspiraram no mesmo Deus, branco e bem articulado.
La La
Também peço perdão a quem ainda não viu La La Land, se é que ainda existe alguém, porque vou contar o fim. É curioso que, comparando o filme com outros musicais, ninguém tenha se lembrado daquele musical do Woody Allen com a dança na beira do Sena em que a Goldie Hawn literalmente voa e que é, ao mesmo tempo, uma gozação e uma homenagem ao surrealismo dos musicais, que se repete na dança do observatório em La La Land. O filme não tem um final feliz como os musicais clássicos. Quando se encontram anos depois do fim do seu romance, ele e ela trocam um olhar e um sorriso que elevam a história a um plano de melancolia inédita em filmes do gênero. O olhar e o sorriso dizem que a vida é assim, o tempo passa e os romances acabam, mas que foi bom, foi bom. E até nunca mais.
------------
* Jornalista. Escritor.
Fonte: http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a9752121.xml&template=3916.dwt&edition=30849§ion=70
Nenhum comentário:
Postar um comentário