Lya Luft*
Existe algo nos laços de família que é muito mais
do que genes e sangue
Quantas vezes se discute o tema "família" durante uma vida inteira!
Em grupos de mesa de bar, entre amigas (sobretudo mulheres, porque
homens comentam menos questões afetivas)! Quanto de queixas em salas de
terapeutas e psicanalistas, quanto ressentimento secreto ou evidente
contra pai, mãe, irmãos... Mas também: quanta segurança, conforto,
alegria e emoção. Quanta descoberta através dos anos.
Lembro desde
muito pequena de certa ansiedade em relação a isso. Às vezes corria
para a mãe perguntando: "Você gosta da vovó?". E a resposta vinha
sempre: "Claro, ela é a mãe do meu marido". E perguntando à avó, a
resposta era quase igual: "Claro, ela é a mulher do meu filho". Aquilo
não me tranquilizava muito, mas por algum tempo valia. Devo dizer que
não havia brigas sérias em minha família, não éramos anjos, apenas
pessoas: algum conflito sempre existia e existirá em qualquer desses
grupos humanos meio estranhos chamados família, dos quais a gente não
pediu para participar, e às vezes gostaria de escapar, raramente
conseguindo... E onde tantas vezes se bebe a água fresca e vital de um
aconchego que nada mais pode nos dar.
Não realizo com muita
frequência o sonho de toda mãe galinha choca, como já me definiram: ter
seus pintos perto, à sua volta ou ao alcance de um voo direto e breve.
Parte de minha família mora longe, digo looonge mesmo: um filho
com mulher na África remota e dois de meus netos, seus filhos, cursando
faculdade na Nova Zelândia. Às vezes brinco que, na próxima mudança,
quem sabe se transfiram para o Polo Norte e o Polo Sul. E apesar disso,
graças aos milagres do cyberspace e do afeto, de alguma forma estamos
sempre juntos, eles e nós, a família que por sorte minha ficou aqui.
Por
isso mesmo, talvez, as reuniões são tão importantes, e fazem
transbordar este coração: os que antes foram meus bebês, minhas
crianças, meus adolescentes, agora são mãe e pais, um de barbas brancas,
com suas famílias. Suas profissões. Perto ou longe, abrindo caminho
neste vasto mundo onde há muito já não posso nem devo protegê-los como
quando eram crianças, e eu talvez ainda sonhasse que eram "minhas".
Isso
de ser família tem alguns clarões gloriosos, como quando finalmente
todos se reúnem, e muita risada, muita brincadeira, muito abraço, foto,
carinho, memória de velhas aventuras: "Lembram de quando alguém nos deu
um macaquinho de presente e ele queria morder todo mundo? Lembram
daquele cachorrinho? Daquela pescaria na praia? Daquela vez em que torci
o pé na escola? Daqueles jogos de vôlei na piscina? De quando o diretor
te chamou, mãe, porque eu tinha tirado a peruca de um professor que
implicava com a gente? De quando a gente se casou? De quando nossas
crianças por sua vez nasceram?". E assim se gastam noites, e dias, e
churrascos, e almoços, e felicidades. Não é paraíso, mas é realidade, é
chão, raiz, emoção tantas vezes mal disfarçada.
Ando tendo uma
dessas dádivas da vida. E me faz acreditar que existe algo nos laços de
família que é muito mais do que genes e sangue: é alma e afeto. E que,
por mais louco ou chato que ande este grande mundo, talvez este país,
uma família amorosa mostra que algumas coisas permanecem, belas e
firmes. E que tudo valeu a pena.
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* Escritora. Cronista da ZH
Fonte: http://zh.clicrbs.com.br/rs/opiniao/colunistas/lya-luft/ultimas-noticias/ 25/03/2017
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