Luiz Felipe Pondé*
Ricardo Cammarota/Folhapress | ||
"Trabalho com jovens entre 18 e 20 há quase 20 anos e posso dizer com razoável certeza que eles chegam à universidade cada vez mais caretas." |
Tem coisa mais brega do que colocar números depois de palavras ou
conceitos, como marketing 3.0? Vamos embarcar nessa breguice geral e
propor a caretice 3.0. Aquela presente na geração chamada milênio ou Y
(e, ao que tudo indica, na Z, mais careta ainda).
Primeiro, vamos esclarecer para quem não sabe: milênio ou Y são jovens
nascidos entre 1983 e 2000 (mais ou menos) e "bem de vida". A partir daí
viriam os chamados Z. Outra coisa: trabalho com jovens entre 18 e 20 há
quase 20 anos e posso dizer com razoável certeza que eles chegam à
universidade cada vez mais caretas.
O que confunde é que certos marcadores como liberdade sexual, fumar
maconha, ausência de preconceitos, roupas descoladas e posturas
políticas progressistas, classicamente considerados índices de
comportamento não careta, aparecem nos jovens de hoje de forma bastante
evidente. E isso parece indicar que não seriam caretas. Ledo engano. A
caretice 3.0 é justamente esta: ela aparece ali onde se imaginava que
jamais estaria por causa desses marcadores históricos. O que nos ensina
isso?
Antes de tudo, que a caretice não é um traço que se refere ao conteúdo
de uma opinião ou atitude, mas à forma com que essa opinião ou atitude
se manifesta. E é justamente na forma que aparece a caretice 3.0 nos
mais jovens.
Caretice se refere, antes de tudo, à rigidez associada à autoafirmação
moral. Os jovens são cada vez mais rígidos e certos de sua pureza moral.
E rigidez, como se sabe, é fruto de sofrimento psicológico. Nunca as
famílias foram mais disfuncionais e solúveis em água. Pais tontos e
melosos querendo ser mães, mães solitárias e estressadas pelas jornadas
triplas. As redes sociais e seu debate histérico são muito mais tóxicas
do que a televisão jamais foi.
Essa rigidez se revela no fato de que os jovens nunca se levaram tão a
sério como os de hoje. Eles têm opiniões claras sobre tudo.
Aborto, sexo, política, Oriente Médio, cinema iraniano, teoria crítica
adorniana, sistemas complexos de economia, relação cosmologia-cosmética
trans, uso de medicação tarja preta, amor com outras espécies animais,
química da lactose, como alimentar sete bilhões de pessoas com hortas
caseiras, a eliminação absoluta do sofrimento na vida dos frangos, como
alocar um milhão de sírios na Alemanha, sistemas políticos democráticos
para o Iêmen, calotas glaciais, formas de vida sob opressão em Marte,
como educar filhos que não existem, métodos democráticos de avaliação
escolar, fóruns com crianças de cinco anos para votar as leis de
mercado, enfim, toda um gama de temas abertos a opiniões rígidas, porque
evidentemente simples e facilmente resolvidos numa aula de filosofia
contemporânea a partir de Deleuze e Foucault.
"O caminho mais
curto para a não-educação
é tornar pessoas de 15 anos críticas.
Nunca
mais arrumarão o quarto delas justificando
essa atitude, agora, na
estupidez do Trump."
Os jovens estão reduzidos a um manual produzido por professores pregadores e mídias sociais furiosas.
No que concerne à relação com os pais, ou esses aderem à caretice 3.0
(quando não são eles mesmos uma das causas dessa caretice 3.0 devido às
suas próprias opiniões corretinhas), submetendo-se à pregação no café da
manhã, ou abrem uma frente contínua de polêmicas que sempre chegam ao
mesmo lugar: a definitiva desqualificação de qualquer forma de
consistência argumentativa em favor da preguiça intelectual e afetiva.
Além da calça jeans, o mercado da caretice 3.0 é um dos efeitos evidentes da contracultura dos anos 1960.
Uma das causas mais interessantes desse fenômeno é a criação da noção de
jovem crítico. Ser crítico é, talvez, uma das coisas mais fáceis na
vida (facilidade essa pouco pensada por todos os pensadores que criaram
esse fetiche da crítica): basta você falar mal de tudo o que não gosta
de forma arrogante e estar seguro de que você representa o avanço social
e político.
A ideia de que fazer a crítica de algo implica um largo repertório
intelectual e afetivo de experiências revelou-se falsa. O caminho mais
curto para a não-educação é tornar pessoas de 15 anos críticas. Nunca
mais arrumarão o quarto delas justificando essa atitude, agora, na
estupidez do Trump.
-----------------* Filósofo, escritor e ensaísta, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, discute temas como comportamento, religião, ciência.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2017/03/1863904-uma-das-causas-da-caretice-30-e-a-criacao-da-nocao-de-jovem-critico.shtml
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