A ignorância de Donald Trump sobre assuntos internacionais aliada a seu
espírito belicoso representa uma ameaça para o mundo –e uma eventual
reeleição do republicano em 2020 seria um golpe do qual a tradição
constitucional norte-americana jamais se recuperaria.
São afirmações do constitucionalista Bruce Ackerman, que caracteriza
Trump como um autoritário com perfil semelhante ao de personagens como
Silvio Berlusconi, o midiático ex-premiê italiano.
Ackerman, 73, acredita que a Suprema Corte terá de assumir
responsabilidades para conter os impulsos de Trump e preservar o sistema
de freios e contrapesos da democracia americana, mas tem dúvidas se
isso ocorrerá.
Professor de direito e ciência política na Universidade Yale, ele é
autor de quase 20 livros e contribui regularmente com artigos para
publicações dos EUA e da Europa.
Ackerman acredita que a democracia americana se desviou das premissas
originais dos chamados "pais fundadores", num cenário já bastante
diverso daquele em que elas foram formuladas.
Em 2010 lançou o livro "Declínio e Queda da República Americana", no
qual afirmava que no século 21 os EUA elegeriam um presidente marcado
por autoritarismo, extremismo e irracionalidade. A vitória de Trump deu à
sua análise ares de profecia.
Progressista (preferiu o democrata de esquerda Bernie Sanders a Hillary
Clinton) e partidário do parlamentarismo, ele aponta as mudanças
sofridas pelo processo de seleção nas prévias partidárias (que passaram a
incorporar eleitores), como um fator decisivo para a emergência de
lideranças e candidatos que se desgarram do centro em busca de apoio nos
extremos do espectro político.
Na entrevista que segue, feita em troca de e-mails, ele expõe parte de suas análises e preocupações.
Folha- No seu livro "Declínio e Queda da República Americana",
lançado em 2010, o sr. afirmava que as mudanças no sistema político a
partir da segunda metade do século passado aumentariam substancialmente
as chances de o país eleger no século 21 um presidente marcado pelo
extremismo, pelo unilateralismo e pela irracionalidade. Parece
aplicar-se perfeitamente ao caso de Trump. O sr. poderia resumir essas
mudanças e explicar em linhas gerais por que elas levariam a esse novo
padrão de liderança política?
Bruce Ackerman - Entre 1830 e 1970, os candidatos presidenciais
foram selecionados em convenções políticas controladas por líderes
partidários de grandes Estados. Eles tinham apenas um interesse
primordial: vencer a próxima eleição. Como consequência, eles nomeavam
candidatos que poderiam recorrer ao eleitor médio.
Mas desde a década de 1970, o candidato é diretamente selecionado pelos
eleitores nas eleições primárias, que tipicamente têm baixa afluência,
sob controle de ativistas de esquerda e direita.
Esses extremistas estão interessados em promover sua ideologia votando
em candidatos mais radicais de direita ou de esquerda. Foi o que
aconteceu no caso de Trump, com uma série de candidatos mais moderados
dividindo o voto de centro-direita.
Alguém disse que Trump é o primeiro presidente de estilo
latino-americano dos EUA, no sentido de que ele se comporta como uma
espécie de neocaudilho. Até que ponto o tradicional sistema de freios e
contrapesos pode conter os impulsos aparentemente irracionais e caóticos
do presidente?
A aliança entre Vargas e Roosevelt era uma aliança de caudilhos? Eu não
acho que essa seja uma linha de indagação proveitosa. O surgimento de
candidatos a ditadores está associado ao sistema presidencialista, que
frequentemente concede vitória a um candidato que só tem apoio genuíno
da minoria e que, no entanto, assalta o Congresso e os tribunais num
esforço para estabelecer sua supremacia.
Como os meus ex-colegas de Yale, Juan Linz e Al Stepan, acredito que o
sistema parlamentarista proporciona uma base muito mais estável para a
democracia. Foi um dia triste aquele em que os brasileiros rejeitaram a
opção parlamentarista após o impeachment de Collor, no plebiscito de
1993. A atual crise brasileira tem suas raízes nessa decisão.
Voltando à América, a Suprema Corte deve desempenhar um papel crucial a
curto prazo na manutenção do sistema de controles e contrapesos. Não sei
se demonstrará a coragem necessária.
Por que faltaria coragem?
Existe uma doutrina de "questão política" bem estabelecida no direito
constitucional americano que permite uma deferência judicial em relação
aos poderes políticos, em condições mal definidas [questões políticas
não seriam questões legais e portanto não seriam judicializáveis,
ficando fora do escopo da Suprema Corte]. É possível que a maioria da
Corte faça uso dessa doutrina e se recuse a se pronunciar sobre os
méritos de iniciativas presidenciais controversas.
Um dos pontos importantes de sua análise é o crescente papel dos
militares no sistema político. A proposta de Trump de aumentar o
orçamento militar pode ser vista como um sinal disso?
Surpreendentemente, ele assumiu um tom mais institucional e moderado em
seu discurso ao Congresso, no qual enfatizou a importância de reforçar
os gastos militares.
Os EUA conquistaram a hegemonia nas Américas sem a necessidade de um
grande Exército permanente. Em 1940, seu Exército somava menos de 250
mil soldados, enquanto a França tinha quase um milhão de militares. Ao
criar um enorme Exército permanente após a Segunda Guerra, o Congresso
estabeleceu uma série de mecanismos para manter o controle civil.
Ao nomear recentemente generais ativos para chefiar o Departamento de
Defesa e o Departamento de Segurança Interna, Trump violou esses
princípios de controle civil. Seus esforços para aumentar o já enorme
orçamento dos EUA representam uma aceleração dessa dinâmica militarista.
Um dos aspectos mais ameaçadores de Trump é sua extraordinária
ignorância no que se refere a assuntos internacionais e sua excepcional
belicosidade.
Quanto ao recente discurso do presidente ao Congresso, só demonstra sua
capacidade de ler um teleprompter por 75 minutos sem interrupção. Como
seus posteriores tuítes irresponsáveis sobre o presidente Obama sugerem,
não foi indicativo do caráter de sua administração.
O sr. disse numa entrevista que vê um presidente esquerdista sendo eleito após Trump. Que tipo de esquerdista o sr. imagina?
Você tocou numa grande diferença entre os EUA e países como Brasil,
Reino Unido, França e Japão. Em todos esses lugares, a centro-esquerda
está profundamente desorganizada e desanimada.
Nós temos uma centro-esquerda forte nos EUA. A questão é se esse
movimento se organizará em torno de um líder atraente e responsável.
Talvez Elizabeth Warren [67, senadora democrata]. Mas seria melhor se o
próximo candidato democrata emergisse de uma geração mais jovem.
A propósito, o sr. acredita que Trump terá um segundo mandato? Ele pode sofrer um processo de impeachment?
Com os republicanos no controle da Câmara e do Senado, não há nenhuma
chance de que Trump seja afastado antes das eleições do Congresso de
2018. Se os democratas obtiverem uma forte vitória em 2018, os
republicanos poderão decidir que outra campanha de Trump em 2020 levará
tanto à derrota na Presidência quanto a novas perdas do Legislativo.
Apenas uma coisa é clara: se Trump ganhar em 2020, a tradição
constitucional americana sofrerá um golpe do qual nunca poderá se
recuperar.
Como o sr. vê o papel da mídia no atual cenário? Trump tem sucesso em
suas tentativas de lançar factoides, criar "fatos alternativos" e
desqualificar a imprensa tradicional? Ou o jornalismo profissional tem
funcionado como contrapeso?
Juntamente com os tribunais, o jornalismo tem desempenhado um papel
crucial na manutenção dos princípios democráticos fundamentais a curto
prazo. Os americanos –incluindo muitos conservador– estão cada vez mais
alienados pelos tuítes livres de Trump. E essa alienação só aumentará na
medida em que as mentiras continuarem.
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Reportagem por
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