domingo, 19 de março de 2017

A ÚLTIMA REVOLUÇÃO

SOFIA AMARO*

L’algodicée est une interprétation herméneutique et métaphysique de la douleur. Dans les temps modernes, elle remplace la théodicée, elle est inversion. Dans celle-ci, on posait la question suivante: comment mettre le mal, la douleur, la souffrance et l’injustice en accord avec l’existence de Dieu? À présent, on pose la question : si Dieu n’existe pas et s’il n’y a pas de sens supérieur, alors comment supporter encore la douleur?
Peter Sloterdijk in Critique de la raison cynique, Christian Bourgois éditeur, 2000, p.563.
Finalmente, e de acordo com Darwin, tornou-se muito provável que a própria humanidade como a conhecemos não esteja no estado final da sua evolução, mas sim numa fase inaugural. A própria noção de evolucionismo é ultrapassada quando o corpo híbrido se transforma com um coração artificial, em que a tecnologia se cola à pele, sendo que a ideia de desenvolvimento orgânico através da selecção natural deixa de ter sentido, transformando o corpo numa estrutura modelável.[1] Este passo ultrapassa até os próprios limites que Darwin não poderia prever.

Em tempos de recrudescimento obscurantista, verifica-se uma constante exortação do sentido teleológico, mesmo se em plena revolução NBIC (nanociência, biotecnologia, tecnologia de informação e ciências cognitivas)a a investigação tenha ultrapassado a distância até agora conhecida. Chegando-se também a ocultar que o transhumanismo, inaugurado há vários decénios, tenha descortinado essa relação ambígua entre o homem, o mundo e o seu demiurgo. E é notório o silêncio no nosso país sobre estas matérias. O próprio resguardo ontológico, que esconde os passos, que não são pequenos, porque a distância entre o homem e as outras dimensões não será nunca uma rêverie, diminui essa concretização que vai para além da física e do tempo. Falta sublinhar as dificuldades em varar esse muro que continua a cimentar as fundações da humanidade.

Quando falamos de revolução científica, falamos de genómica e das terapias génicas, das células estaminais, da nanomedicina reparadora, do hibridismo entre o homem e a máquina, das tecnologias que vão transformar em algumas gerações a nossa relação ao mundo. A partir destas proposições, que podem parecer a alguns extemporâneas, será muito provável que a esperança de vida possa duplicar no curso deste século. A dor e a morte serão problemas a resolver pelas tecnologias emergentes NBIC e não uma realidade imposta pela natureza ou pela vontade divina. O homem passará a ser o único denominador comum para uma eternidade exequível.

A resistência que é evidente vacila mediante a capacidade e maturidade científica de um povo, constato que não é o caso no nosso país. Estas questões frequentes nos EUA, França, Alemanha, Inglaterra, Suíça, são inerentes ao discurso científico e filosófico e tomo como exemplo a última obra de Luc Ferry, filósofo mediático e ex-ministro francês da educação, La révolution transhumaniste. Comment la technomédecine et l’ubérisation du monde vont bouleverser nos vies, éditions Plon. Contudo, continuam a ser ignoradas no nosso círculo reduzido de pensadores. Estamos em recuo e escoramos num isolamento que serve apenas o terreiro de leviandades quotidianas, que não nos adianta o passo, não nos salva das hecatombes, não nos delega a autonomia aspirada pela sacrossanta economia, e a continuarmos afastados desta revolução, sem pesquisa e investimento, também os proventos serão esquecidos nas librinas do tempo.

Pressupostos como a tecnologia do microprocessador, a lei de Moore e os novos limites, a clonagem, a proliferação das armas de destruição maciça, as interfaces neurais com o computador, as ferramentas psicológicas como o pensamento crítico, a PNL, as redes neuronais, a engenharia neuromorfológica, as técnicas de extensão da vida, a microscopia de força atómica que permite a criação tecnológica de nanotecnologia, visam o aperfeiçoamento da sociedade como comunidade epistémica, e para isso recorre-se a todos os métodos científicos e tecnológicos.

Na retaguarda, ficamos reféns do medo que se instala e só nos restam a involução da resposta e a tautologia nesta memória desgastada. E nem sequer se imagina que o rumo do cego deixará de ser a bengala para passar a ser um olho biónico. Face ao não absoluto, aos vulgarizadores da resignação, eis que um simples laboratório poderá remeter Deus ao silêncio. As convicções anacrónicas, a apologia do inaudito face ao progresso, e iluminismo, acabam por ser os únicos arremessos dos perdedores. Os resistentes e conservadores serão incapazes de andar num mundo em que os cegos deixarão de ser cegos, em que um paraplégico começará a andar e em que o cancro deixará de ser irreversível, mas apenas uma anomalia a ser revista no bisturi da genómica. O tempo equacionado em média, como apenas alguns meses de esperança de vida por cada ano, passará a ser relativo e nunca indicador da mortalidade. Mais cedo ou mais tarde, a cirurgia dos genes permitirá a reparação de anomalias genéticas actualmente graves ou mortais. A genómica, isto é o estudo do nosso funcionamento biológico, ramo da bioquímica que estuda o genoma completo de um organismo, permitirá igualmente sistematizar a cultura e a utilização das células estaminais para fins regenerativos.[2] As ciências cognitivas e a informática produzirão igualmente resultados surpreendentes, com o aumento exponencial de velocidades de cálculo informático e a emergência da inteligência artificial.[3]

Um dos primeiros a usar a palavra “transhumanismo” foi o biólogo Julian Huxley, irmão de Aldous Huxley, em 1957, no entanto foi More que fundou os alicerces do transhumanismo, em 1990, com os Principles of Extropy: “O transhumanismo é uma classe de filosofias com o objetivo de nos guiar para uma condição pós-humana. O transhumanismo partilha muitos valores com o humanismo, incluindo o respeito pela razão e a ciência, um compromisso com o progresso e um grande respeito pela vida humana (ou transhumana) nesta vida. (…) O transhumanismo difere do humanismo, na medida em que reconhece e antecipa mudanças radicais na natureza e as possibilidades das nossas vidas resultarem de várias ciências e técnicas (…).”[4]

Nesta configuração do mundo, os apóstolos dos GAFA, Google, Apple, Facebook, Amazon, lembram-nos que a inteligência artificial já nos permite diariamente o acesso instantâneo a respostas com uma simples pesquisa no Google. Sabemos que já vivemos neste tempo de transhumanismo e pós-humanismo, e pelas razões mencionadas tem sido com alguma surpresa que não tenho visto tratadas estas questões na imprensa portuguesa ou nos debates propostos pela academia. Portugal continua assim confinado às pequenas realidades, às certezas endógenas, ao conservadorismo da cátedra e dos escassos pensadores, revelando uma constante indiferença quanto à evolução científica, quando sabemos que nas próximas décadas a própria economia nas suas variantes, tomo como exemplo a área da saúde pública ou a organização laboral, será traçada por milhares de startups no domínio da biotech ou da robótica.

É, por isso, necessário um diálogo que coloque as NBIC na mesa com painéis constituídos por personalidades oriundas da filosofia, da ciência e do direito. Não podemos continuar a ignorar questões que são capitais para o nosso futuro. Estas têm de ter um lugar cativo nas nossas conversas, nos possíveis dialógicos que nos trazem aventuras como as máquinas à escala de nanómetro ou o projecto Connectome. E será este novo léxico, que se desdobra em extensões de nós próprios, corolário de um novo hibridismo entre o ser humano e a máquina, que será não o nosso testamento mas a resposta para a nossa imortalidade.

São os resistentes como Timeu, que nos lembram constantemente a dicotomia entre a alma e o corpo, que afastam a possibilidade de integrarmos um novo ciclo. O medo e o atavismo não podem ser epílogos na nossa memória, não podemos ficar indiferentes, temos de participar hic et nunc nesta realidade que começa a transformar irreversivelmente o nosso mapa genético.

* Jornalista e escritora portuguesa.

[1] Sterlac, Portrait robot de l’homme-machine, interview avec Jean-Yves Katelan, L’autre Journal, nº 27, septembre, 1992, p.24–41.
[2] Dr Laurent Alexandre, La Mort de la mort — comment la technomédecine va bouleverser l’humanité, éditions JC Lattès, 2011, p. 14.
[3] Ibid., p. 27.
[4] Max More, Transhumanism: a futurist philosophy, 1990.

Fonte:  https://caliban.pt/a-%C3%BAltima-revolu%C3%A7%C3%A3o-80d2817ebd0a#.drz889jyt Acesso 19/03/2017

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