SOFIA AMARO*
L’algodicée est une interprétation herméneutique et métaphysique de la douleur. Dans les temps modernes, elle remplace la théodicée, elle est inversion. Dans celle-ci, on posait la question suivante: comment mettre le mal, la douleur, la souffrance et l’injustice en accord avec l’existence de Dieu? À présent, on pose la question : si Dieu n’existe pas et s’il n’y a pas de sens supérieur, alors comment supporter encore la douleur?
Peter Sloterdijk in Critique de la raison cynique, Christian Bourgois éditeur, 2000, p.563.
Finalmente,
e de acordo com Darwin, tornou-se muito provável que a própria
humanidade como a conhecemos não esteja no estado final da sua evolução,
mas sim numa fase inaugural. A própria noção de evolucionismo é
ultrapassada quando o corpo híbrido se transforma com um coração
artificial, em que a tecnologia se cola à pele, sendo que a ideia de
desenvolvimento orgânico através da selecção natural deixa de ter
sentido, transformando o corpo numa estrutura modelável.[1] Este passo ultrapassa até os próprios limites que Darwin não poderia prever.
Em
tempos de recrudescimento obscurantista, verifica-se uma constante
exortação do sentido teleológico, mesmo se em plena revolução NBIC
(nanociência, biotecnologia, tecnologia de informação e ciências
cognitivas)a a investigação tenha ultrapassado a distância até agora
conhecida. Chegando-se também a ocultar que o transhumanismo, inaugurado
há vários decénios, tenha descortinado essa relação ambígua entre o
homem, o mundo e o seu demiurgo. E é notório o silêncio no nosso país
sobre estas matérias. O próprio resguardo ontológico, que esconde os
passos, que não são pequenos, porque a distância entre o homem e as
outras dimensões não será nunca uma rêverie,
diminui essa concretização que vai para além da física e do tempo.
Falta sublinhar as dificuldades em varar esse muro que continua a
cimentar as fundações da humanidade.
Quando
falamos de revolução científica, falamos de genómica e das terapias
génicas, das células estaminais, da nanomedicina reparadora, do
hibridismo entre o homem e a máquina, das tecnologias que vão
transformar em algumas gerações a nossa relação ao mundo. A partir
destas proposições, que podem parecer a alguns extemporâneas, será muito
provável que a esperança de vida possa duplicar no curso deste século. A
dor e a morte serão problemas a resolver pelas tecnologias emergentes
NBIC e não uma realidade imposta pela natureza ou pela vontade divina. O
homem passará a ser o único denominador comum para uma eternidade
exequível.
A
resistência que é evidente vacila mediante a capacidade e maturidade
científica de um povo, constato que não é o caso no nosso país. Estas
questões frequentes nos EUA, França, Alemanha, Inglaterra, Suíça, são
inerentes ao discurso científico e filosófico e tomo como exemplo a
última obra de Luc Ferry, filósofo mediático e ex-ministro francês da
educação, La révolution transhumaniste. Comment la technomédecine et l’ubérisation du monde vont bouleverser nos vies,
éditions Plon. Contudo, continuam a ser ignoradas no nosso círculo
reduzido de pensadores. Estamos em recuo e escoramos num isolamento que
serve apenas o terreiro de leviandades quotidianas, que não nos adianta o
passo, não nos salva das hecatombes, não nos delega a autonomia
aspirada pela sacrossanta economia, e a continuarmos afastados desta
revolução, sem pesquisa e investimento, também os proventos serão
esquecidos nas librinas do tempo.
Pressupostos como
a tecnologia do microprocessador, a lei de Moore e os novos limites, a
clonagem, a proliferação das armas de destruição maciça, as interfaces
neurais com o computador, as ferramentas psicológicas como o pensamento
crítico, a PNL, as redes neuronais, a engenharia neuromorfológica, as
técnicas de extensão da vida, a microscopia de força atómica que permite
a criação tecnológica de nanotecnologia, visam
o aperfeiçoamento da sociedade como comunidade epistémica, e para isso
recorre-se a todos os métodos científicos e tecnológicos.
Na
retaguarda, ficamos reféns do medo que se instala e só nos restam a
involução da resposta e a tautologia nesta memória desgastada. E nem
sequer se imagina que o rumo do cego deixará de ser a bengala para
passar a ser um olho biónico. Face ao não absoluto, aos vulgarizadores
da resignação, eis que um simples laboratório poderá remeter Deus ao
silêncio. As convicções anacrónicas, a apologia do inaudito face ao
progresso, e iluminismo, acabam por ser os únicos arremessos dos
perdedores. Os resistentes e conservadores serão incapazes de andar num
mundo em que os cegos deixarão de ser cegos, em que um paraplégico
começará a andar e em que o cancro deixará de ser irreversível, mas
apenas uma anomalia a ser revista no bisturi da genómica. O tempo
equacionado em média, como apenas alguns meses de esperança de vida por
cada ano, passará a ser relativo e nunca indicador da mortalidade. Mais
cedo ou mais tarde, a cirurgia dos genes permitirá a reparação de
anomalias genéticas actualmente graves ou mortais. A genómica, isto é o
estudo do nosso funcionamento biológico, ramo da bioquímica que estuda o
genoma completo de um organismo, permitirá igualmente sistematizar a
cultura e a utilização das células estaminais para fins regenerativos.[2]
As ciências cognitivas e a informática produzirão igualmente resultados
surpreendentes, com o aumento exponencial de velocidades de cálculo
informático e a emergência da inteligência artificial.[3]
Um dos primeiros a usar a palavra “transhumanismo” foi o biólogo Julian Huxley, irmão de Aldous Huxley, em 1957, no entanto foi More que fundou os alicerces do transhumanismo, em 1990, com os Principles of Extropy:
“O transhumanismo é uma classe de filosofias com o objetivo de nos
guiar para uma condição pós-humana. O transhumanismo partilha muitos
valores com o humanismo, incluindo o respeito pela razão e a ciência, um
compromisso com o progresso e um grande respeito pela vida humana (ou
transhumana) nesta vida. (…) O transhumanismo difere do humanismo, na
medida em que reconhece e antecipa mudanças radicais na natureza e as
possibilidades das nossas vidas resultarem de várias ciências e técnicas
(…).”[4]
Nesta configuração do mundo, os apóstolos dos GAFA, Google, Apple, Facebook, Amazon,
lembram-nos que a inteligência artificial já nos permite diariamente o
acesso instantâneo a respostas com uma simples pesquisa no Google.
Sabemos que já vivemos neste tempo de transhumanismo e pós-humanismo, e
pelas razões mencionadas tem sido com alguma surpresa que não tenho
visto tratadas estas questões na imprensa portuguesa ou nos debates
propostos pela academia. Portugal continua assim confinado às pequenas
realidades, às certezas endógenas, ao conservadorismo da cátedra e dos
escassos pensadores, revelando uma constante indiferença quanto à
evolução científica, quando sabemos que nas próximas décadas a própria
economia nas suas variantes, tomo como exemplo a área da saúde pública
ou a organização laboral, será traçada por milhares de startups no
domínio da biotech ou da robótica.
É,
por isso, necessário um diálogo que coloque as NBIC na mesa com painéis
constituídos por personalidades oriundas da filosofia, da ciência e do
direito. Não podemos continuar a ignorar questões que são capitais para o
nosso futuro. Estas têm de ter um lugar cativo nas nossas conversas,
nos possíveis dialógicos que nos trazem aventuras como as máquinas à
escala de nanómetro ou o projecto Connectome. E será este novo léxico,
que se desdobra em extensões de nós próprios, corolário de um novo
hibridismo entre o ser humano e a máquina, que será não o nosso
testamento mas a resposta para a nossa imortalidade.
São
os resistentes como Timeu, que nos lembram constantemente a dicotomia
entre a alma e o corpo, que afastam a possibilidade de integrarmos um
novo ciclo. O medo e o atavismo não podem ser epílogos na nossa memória,
não podemos ficar indiferentes, temos de participar hic et nunc nesta
realidade que começa a transformar irreversivelmente o nosso mapa
genético.
* Jornalista e escritora portuguesa.
[1] Sterlac, Portrait robot de l’homme-machine, interview avec Jean-Yves Katelan, L’autre Journal, nº 27, septembre, 1992, p.24–41.
[2]
Dr Laurent Alexandre, La Mort de la mort — comment la technomédecine va
bouleverser l’humanité, éditions JC Lattès, 2011, p. 14.
[3] Ibid., p. 27.
[4] Max More, Transhumanism: a futurist philosophy, 1990.
Fonte: https://caliban.pt/a-%C3%BAltima-revolu%C3%A7%C3%A3o-80d2817ebd0a#.drz889jyt Acesso 19/03/2017
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