Luiz Felipe Pindé*
Escrevo para não me sentir só. Sei disso há muito tempo. Hoje não é
muito fácil uma vez que muita gente é ressentida e ofendida. Muitos
escrevem com medo do leitor ou do seguidor. A praga de querer agradar
acomete grande parte de nós.
Muita gente tem muitas causas e eu nenhuma. Não quero salvar o mundo de
nada. Suspeito de quem diz se preocupar com as crianças da África ou com
as "minorias". Ninguém é mais perigoso do que gente "com causa". Sua
crueldade vem regada a certeza moral, ingrediente suficiente para o ódio
sempre. O ódio tem sempre uma causa que o justifique, mesmo entre os
"melhores".
Mas recebo muitos e-mails que me fazem ter alguma esperança no mundo.
Pelo menos num mundo habitado por pessoas que tentam lidar com sua
opacidade e falta de sentido. Pessoas que lutam contra uma culpa
lancinante, com traumas suficientes para ter o suicídio como constante
hipótese no horizonte, e sem qualquer expectativa de bondade como imagem
no espelho.
Apenas pessoas sem esperança me dão alguma esperança. Pessoas que há
muito perderam a capacidade de se enganar acerca das próprias virtudes.
Pessoas que desistiram do amor. Que trabalham razoavelmente (como diria
Freud) e levantam pela manhã com alguma dignidade. Tomam banho, escovam
os dentes. Às vezes, um café da manhã na padaria. "Bom dia!" dito ao
moço da copa. "Na graxa e na canoa, por favor". Um sorriso da menina do
caixa pode salvar o dia.
Muitas vezes é mais fácil amar o mundo graças aos desesperados do que
graças aos bons. Se um dia o mundo for tomado pelo bem, se tornará,
seguramente, um lugar inabitável. O ar só é respirável graças ao pecado.
Essa é a falha suprema de toda teoria universalista do amor.
Algumas histórias me encantam pela sua dimensão de impasse. Há poucos
dias recebi um e-mail de uma leitora (que concordou que eu escrevesse
sobre ela, sem dar referências, é claro) que me contava um exemplo
desses impasses que escapam ao debate mais histérico, típico do mundo
contemporâneo em que as pessoas enlouquecem com suas certezas em seu
Facebook.
Como muitas mulheres, infelizmente, ela sofreu um estupro quando jovem. O
modo como muitos homens, ainda, tratam as mulheres, merece mesmo um
protesto. Nunca entendi de onde vem essa raiva que muitos homens nutrem
contra essas que são nossas parceiras no mundo e na vida.
Desse estupro nasceu uma criança, criança esta que nunca foi amada e
desapareceu quando mais velha. "Melhor assim!", vê-la causava desgosto à
mãe porque ela era a materialização do estupro.
Claro, defensores de causas veriam aqui, com certeza, um dos típicos
casos para um aborto. Gravidez fruto de violência sexual deveria ser
facilmente interrompida. Outros, do lado oposto, diriam coisas como "a
criança não tem culpa" de ter sido filha de uma estupro. Por que não
dá-la para adoção?
Nem uma nem outra, a criança conviveu com o horror da mãe diante de sua
simples existência como lembrança de que foi violentada um dia. Será que
os defensores do amor materno universal veriam aqui um caso de
disfunção materna? E os defensores do direito ao desamor materno
conseguiriam financiamento em bancos para uma ONG a favor do direito ao
desamor materno como forma de empoderamento?
Como se sente uma mulher que, de alguma forma, não ama seu filho ou
filha? Que ficaria feliz em não saber onde ela está, nem se está viva?
Feliz por ela ter desaparecido do mapa. O que a moçada do "odeie seu
ódio" diria disso? Ou dos direitos humanos? Ou os tarados pela família?
Amar não é uma questão de direitos. Ninguém tem o direito de ser amado. A
realidade aqui é cega para com esses supostos princípios éticos.
Espero que essa mãe continue resistindo à hipótese do suicídio todas as
manhãs. Que os livros que lê a ajude perceber que nenhum de nós sabe a
fórmula da vida (mesmo que alguns vendam livros mentindo sobre isso).
Espero que essa criança, hoje adulta, encontre em algum canto desse
mundo sem Deus um pouco de paz para sua alma, presa do fato de ter sido
gerada num momento de profunda desgraça.
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* Filósofo, escritor e ensaísta, pós-doutorado em epistemologia pela
Universidade de Tel Aviv, discute temas como comportamento, religião,
ciência. Escreve às segundas.
Imagem Ricardo Cammarota
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2017/03/1865903-como-se-sente-uma-mulher-que-de-alguma-forma-nao-ama-seu-filho.shtml 13/05/2017
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