domingo, 12 de março de 2017

Satish Kumar, seguidor de Ghandi, propõe nova relação do ser humano com a natureza


Satish Kumar em um campo de cereal no norte da Índia não esconde sua reverência pela natureza (Foto: © Haroldo Castro/ÉPOCA)

Ex-monge jainista lança livro em São Paulo. Ele participou dos movimentos de não violência, andou por três continentes e fundou na Inglaterra uma escola referência em sustentabilidade

GISELLE PAULINO (TEXTO) E HAROLDO CASTRO (FOTOS) – DA ÍNDIA
09/03/2017 -
Longe de ter uma vida convencional, Satish Kumar é uma das pessoas mais carismáticas e encantadoras que podem existir no mundo. Aos 80 anos, o indiano de estilo mignon, acolhedor e de palavras dóceis, prega a simplicidade por onde passa. Difícil descrever alguém que não se apega a rótulos.

Nascido em uma família jainista do Rajastão, na Índia, Satish renunciou ao mundo aos 9 anos de idade para se tornar um monge. Por quase dez anos, dedicou-se aos ensinamentos religiosos e à espiritualidade. Acordava antes do sol nascer e, na companhia de outros monges, andava pela cidade para receber doações e alimentos. Durante grande parte de seu dia, ele ficava recluso em meditação, quase sem contato com as pessoas. A família aprovava: para os jainistas é uma grande honra ter um filho mantendo a tradição religiosa. Mas, com o passar do tempo, até mesmo os pais deixam de visitar seus filhos no monastério.

Sua rotina mudou ao ler o livro Minha experiência com a verdade – em inglês, My experience with truth –, escrito por Mahatma Gandhi. Foi quando entendeu que a verdadeira espiritualidade deveria ser praticada no dia a dia, e não dentro de um mosteiro. “Ficar ali não me levaria às mudanças que eu acreditava”, diz Satish. “Para mudar o mundo, é preciso viver nele.”

Satish deixou a vida de monge para se juntar aos movimentos de Gandhi. Ao lado de Vinoba Bhave, principal discípulo de Mahatma Gandhi, ele andou por toda a Índia num movimento de reforma agrária famoso por seguir a filosofia da não violência.

A vida de Satish Kumar foi marcada por grandes caminhadas e ainda hoje caminha com seus alunos (Foto: © Haroldo Castro/ÉPOCA)

Mas suas longas caminhadas estavam apenas começando. Notícias sobre a possibilidade da guerra nuclear nos anos 1960 fizeram com que Satish empreendesse uma jornada pela paz que o levou da Índia aos quatro países então detentores da bomba atômica: Rússia, França, Inglaterra e Estados Unidos. A viagem deveria obedecer a algumas condições colocadas por seu guru. Ele deveria fazer o percurso a pé para ter tempo de observar os lugares por onde passava. Deveria permanecer vegetariano, pois era importante manter a paz com o mundo animal. E, finalmente, como se tratava de um movimento pela paz, o guru sugeriu ainda que ele prosseguisse sem levar nenhum dinheiro. Seria preciso confiar na bondade e generosidade das pessoas que encontrasse pelo caminho. 

Foram dois anos e meio na estrada. Satish passou frio no inverno da Rússia e chegou a ser preso na França. Mas teve a oportunidade de conversar com grandes líderes como Bertrand Russell e Martin Luther King. “Quando alguém me acolhia em casa, agradecia a compaixão. Quando dormia à beira da estrada, aproveitava a oportunidade de ver as estrelas”, diz.

Quando a aventura terminou, Satish queria regressar à Índia. Mas um convite para ficar na Inglaterra como editor da revista Resurgence, uma das principais vozes do pensamento ecológico da Europa, falou mais alto. “A Índia já tem muitos ghandianos, a Inglaterra não tem nenhum. Fique aqui, Satish”, teria dito E.F. Schumacher, economista  alemão, autor do consagrado O negócio é ser pequeno: um estudo de economia que leva em conta as pessoas – em inglês, Small is beautiful, a study of economics as if people mattered.

Satish aceitou o convite. Os pensamentos do economista, que prega uma economia budista na qual a produção é feita pelas pessoas para atender às necessidades do povo com material local e energia renovável, inspiraram a criação do Schumacher College, escola de Ecologia Profunda e Ciências Holísticas localizada na pequena cidade de Totnes, em Devon, no sudoeste da Inglaterra. Sua filosofia ensina que qualquer vida no planeta deve ser preservada não por ser essencial à vida humana, mas por ter o mesmo direito de permanecer na Terra que o homem. “No lugar de conquistar, devemos reverenciar a natureza”, ensina Satish. “Não devemos acreditar na supremacia humana sobre os outros seres.”
Quando está na natureza, Satish Kumar aprecia todo momento (Foto: © Haroldo Castro/ÉPOCA)

Foi no Schumacher College que encontrei Satish Kumar pela primeira vez. Ele conversava com alunos e escutava a história de cada um. À noite, sentávamos em roda e ele contava fatos de sua infância na Índia, ao lado da mãe, antes de se tornar monge. Falava do conceito da não violência, palavra tão pouco compreendida pelos ocidentais e tão necessária nos dias de hoje.

Satish inspirou também a criação de uma escola semelhante ao Schumacher College na fazenda de conservação de agrobiodiversidade Navdanya, na Índia, da ambientalista Vandana Shiva. Os dois locais se tornaram destinos obrigatórios para mim.

Satish Kumar dá aula sobre os pensamentos de Ghandi na fazenda Navdanya, no norte da Índia (Foto: © Haroldo Castro/ÉPOCA)

Uma das grandes lições do Schumacher College é entender que nenhuma profissão é melhor do que a outra e que ninguém é superior. “O que vale um médico quando estamos com fome?”, pergunta Satish. “De que adianta um engenheiro quando nossa casa está suja? Tudo tem sua importância relativa.”

Seguindo esses pensamentos, a escola propõe formas inusitadas de aprendizado. Os alunos ajudam a limpar o prédio, cozinham e trabalham na horta. Satish também participa. Pelo menos uma vez por semana, gosta de reunir seus alunos para preparar a refeição da escola. Nesse momento, a cozinha se torna então uma grande sala de aula. Enquanto ensina receitas de pratos indianos, conversa sobre os mais diversos assuntos.

São esses momentos que deixam saudades desse lugar tão especial na Inglaterra. Um dado curioso é que os brasileiros se tornaram os maiores frequentadores desse colégio inglês, além dos nativos. Em 2014, com a criação da Escola Schumacher Brasil, todos esses conhecimentos ficaram mais perto. A iniciativa foi da brasileira Juliana Schneider, aluna do curso de mestrado do Schumacher College, que voltou ao Brasil e empreendeu algo inspirado no que aprendeu lá.

Satish Kumar e Juliana Schneider em São Paulo em dezembro de 2015. Satish regressa ao Brasil para o lançamento de sua segunda obra traduzida ao português  (Foto: © Haroldo Castro/ÉPOCA)

Em março, Satish vem ao Brasil lançar seu livro Solo, alma e sociedade: uma nova tríade para nossos tempos. Combinando filosofia e sabedoria oriental com sua vasta experiência de vida, Satish propõe uma nova relação do homem com o planeta e ele mesmo.

“Primeiro, é preciso aprender a cuidar do solo. Viemos do solo e voltaremos ao solo. O solo é uma metáfora do meio ambiente. Cuidando do solo, aprendemos também a cuidar de nós mesmos. Somente então estaremos prontos para cuidar da sociedade”, afirma. “Tem gente que quer cuidar do mundo, mas ainda não aprendeu a cuidar de si.”
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Fonte:  http://epoca.globo.com/sociedade/viajologia/noticia/2017/03/satish-kumar-seguidor-de-ghandi-propoe-nova-relacao-do-ser-humano-com-natureza.html - 09/03/2017

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