Por Anselmo Borges*
"Ou
Deus quer tirar o mal do mundo, mas não pode; ou pode, mas não o quer
tirar; ou não pode nem quer; ou pode e quer. Se quer e não pode, é
impotente; se pode e não quer, não nos ama; se não quer nem pode, não é o
Deus bom e, além disso, é impotente; se pode e quer - e isto é o mais
seguro -, então donde vem o mal real e porque é que não o elimina?"
Este
é o famoso dilema de Epicuro: ou Deus pôde evitar o mal, mas não quis, e
então não é bom; ou quis, mas não pôde, e então não é omnipotente.
Quando
se considera o dilema, é preciso ser consequente. De facto, não é
legítimo invocar o mistério de modo cego. O mistério é, pela sua própria
natureza, supraracional ou transracionl, mas não pode ser contra a
razão. A primeira luz que temos é a da razão e, concretamente depois da
modernidade, quando a razão alcançou a sua maioridade autónoma, não se
lhe pode ser infiel. Isto significa, no caso pendente, que, se Deus
pudesse criar o mundo sem mal e o não tivesse feito, não poderíamos
acreditar nele, já que seria um Deus que não merece o nosso crédito nem a
nossa confiança. Qual é o pai ou a mãe que, se pudesse evitar o mal do
filho, o não faria? Que diríamos de alguém que, podendo aliviar as dores
de outra pessoa, o não fizesse? Não consideraríamos essa pessoa sádica?
Deus não pode ser menos bom do que os seres humanos.
Assim,
ou há alguma falha no dilema de Epicuro ou só resta mesmo a alternativa
do ateísmo. O que falha é o pressuposto de que é possível um mundo
perfeito. Mas precisamente um mundo finito perfeito é o que não é
possível, pois é contraditório. Já Leibniz viu claramente que é a
limitação do mundo que torna inevitável a existência do mal. Isto não
significa que o mundo seja mau em si mesmo, mas que, dada a sua
finitude, inevitavelemente está afectado pela negatividade, seguindo-se
daí os males concretos, físicos e morais. Como escreve o filósofo da
religião Andrés Torres Queiruga — e a filosofia e a teologia terá sempre
essa dívida para com ele —, um mundo finito "não pode existir sem que
no seu funcionamento e realização apareça também o mal".
Portanto, isto também não significa que Deus seja impotente ou mau. O
mesmo filósofo dá um exemplo: a mãe, matemática famosa, não pode ensinar
ao seu menino de quatro anos trigonometria ou a teoria da relatividade.
Teoricamente, ela sabe e pode ensinar e ama o filho, mas este, dada a
sua tenra idade, não é ainda capaz de receber as lições. Deus é
omnipotente e infinitamente bom, mas, quando se fala em omnipotência,
ela não pode ser entendida de modo arbitrário, infantil e abstracto: por
exemplo, Deus não pode cometer suicídio nem fazer com que dois mais
dois não sejam quatro nem criar um mundo finito perfeito... Não pode
criar pessoas livres - já pensámos suficientemente no milagre da
liberdade? – e, ao mesmo tempo, por causa da finitude, evitar o seu mau
uso. Já São Paulo se queixava: “Ai de mim, que sou um homem desgraçado,
pois faço o mal que não quero e deixo de fazer o bem que que quero”.
Surge
então a objecção de fundo. Como pode Deus dar-nos a salvação plena que
esperamos depois da morte, se continuaremos finitos e precisamente a
finitude é que torna inevitável a existência do mal? A resposta
desdobra-se. Em primeiro lugar, é preciso compreender que este mundo é
finito, mas perfectível. O mundo e as pessoas nele não apareceram fixos,
acabados, já feitos. Pense-se, por exemplo, no que seria cada um de nós
aparecido no mundo já adulto. Alguém é capaz de pensá-lo? Portanto,
tanto o mundo como as pessoas estamos em processo de nos fazermos e
realizarmos. O tempo pertence constitutivamente à estrutura do ser
finito, de tal modo que se deve mesmo dizer que o tempo é o modo como o
ser finito se realiza. Depois, o crente é aquele que espera — e não é
verdade que, no que se refere às respostas às questões últimas, todos
(crentes religiosos, ateus ou agnósticos) se colocam num plano de fé? —,
após o tempo do crescimento e da maturação na história, a salvação
plena por dom gratuito do Deus que lhe vem ao encontro. Então, já para
lá dos limites da História, "não se pode afirmar que seja contraditório
que, ao intensificar-se a presença criadora fora dos limites do espaço e
do tempo, a criatura participe, de algum modo, com tal força na
infinitude divina, que resulte livre do mal", conclui Andrés Torres
Queiruga.
De
qualquer forma, só temos indícios que nos permitem esperar com razões.
Immanuel Kant viu bem quando preveniu que estamos apetrechados para
conhecer dentro do espaço e do tempo. A morte é o abalo total
precisamente porque nos arranca do espaço e do tempo, deixando-nos, por
isso, em total silêncio. Quando se trata de representações para lá do
espaço e do tempo cósmicos, ficamos sem palavras.
O
mal é o aguilhão contra a fé; assim: por um lado, a existência do mal
põe a fé em sobressalto, mas, por outro, sem a fé em Deus, não há
resposta para o abismo do mal. No processo de nos fazermos, é sensato e
razoável acreditar e esperar em Deus que dará realização plena à
aspiração de plenitude, constitutiva do ser humano.
Entretanto,
é essencial, vital, evitar o mal evitável, pelo qual somos directa ou
indirectamente responsáveis. E já nem me refiro aos horrores incríveis
da guerra, como a gente vê agora na Ucrânia, mas a coisas simples:
cumprir o nosso dever, impedindo males e contribuindo para a alegria de
outros; por vezes, uma simples palavra basta.
*Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 17 de junho de 2023
Fonte: https://e-cultura.blogs.sapo.pt/a-fe-em-deus-e-o-mal-1493706
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