Gonçalo Portocarrero de Almada*
Desenho à caneta de Wagner Pardini
«Como escreveu G. K. Chesterton, “a alegria, que era a pequena publicidade do pagão, é o gigantesco segredo do cristão”.»
O mês de Junho é tradicionalmente dedicado ao Sagrado Coração de Jesus, uma devoção que ontem foi celebrada universalmente e que evoca o mandamento novo da caridade, pelo qual são conhecidos todos os verdadeiros discípulos de Cristo (Jo 13, 34-35).
Portugal tem uma especial responsabilidade neste culto, porque a Basílica da Estrela, em Lisboa, é a primeira igreja do mundo dedicada ao Coração de Jesus. Esta devoção expressa a humanidade de Cristo que, enquanto consubstancial ao Pai, é perfeito Deus e, enquanto filho de Maria, é homem perfeito. Nele, a natureza humana alcançou o seu maior esplendor: é o exemplo que, com êxito, imitaram todos os santos. Ida Görres, ao ver uma fotografia de Santa Teresinha do Menino Jesus, cuja biografia escreveu, disse que era a face de Cristo no rosto de uma mulher.
Como gostava de dizer Bento XVI, na origem da fé cristã não está um conjunto de dogmas, ou um código moral, mas alguém: Jesus de Nazaré. Todos os seres humanos são chamados à comunhão com Deus, não por via da negação da natureza, mas pela sua perfeição e sublimação. Não há contradição entre a natureza e a santidade, porque o Criador da espécie humana é também o autor da graça, que é participação na natureza divina. Por isso, os santos são exemplo das virtudes sobrenaturais – como a fé, a esperança e a caridade – mas também expoentes máximos da natureza humana: não é por acaso que os bem-aventurados são as pessoas mais felizes do mundo.
Jesus de Nazaré veio ensinar que só se pode ser inteiramente feliz se se for santo. Ele é o caminho, a verdade e a vida (Jo 14, 6). Não veio ao mundo para limitar a liberdade humana, mas para dar a vida na abundância (Jo 10, 10). Embora o ideal da perfeição humana seja inalcançável para quem só conta com as suas próprias forças (Jo 15, 5), é acessível através dos dons e graças que Deus, por meio da Igreja, concede. O exemplo perfeito da humanidade é Jesus de Nazaré, cujo coração é modelo para todos os cristãos. Só assim é possível, como sugere São Paulo, ter os seus mesmos sentimentos (Fl 2, 5), ou, como repete o refrão de um piedoso cântico litúrgico, “amar como Jesus amou”. Mas, como amou Jesus?
Tempos houve em que se entendeu que era pouco masculina qualquer manifestação sensível de afecto. Reservavam-se para as mulheres as expressões mais carinhosas e aos homens pedia-se uma atitude reservada, se não mesmo distante, até para com os mais próximos parentes. Não era bem-visto um pai que trouxesse ao colo um filho pequeno, nem eram adequadas à virilidade certas manifestações de ternura. Como então se dizia, ‘um homem não chora’.
Felizmente, esses estereótipos foram ultrapassados em Cristo, embora seja conveniente não dissolver a maternidade e a paternidade numa ambígua parentalidade, como pretende a moderna ideologia de género, ou a cultura woke. Ser pai é diferente de ser mãe e a mãe não é outro pai: os seus papéis, no seio da família, não são idênticos, mas complementares e devem conjugar-se na educação e formação da personalidade dos filhos. Mulheres e homens são iguais em natureza e dignidade, têm igual capacidade afectiva, que devem expressar segundo a respectiva feminilidade e masculinidade.
Os relatos evangélicos sublinham a virilidade de Jesus. Sobressai a sua masculinidade na expulsão dos vendilhões do templo (Jo 2, 13-22), ou nas suas invectivas contra os fariseus (Mt 23, 1-39). Mas o filho de Maria é também exemplo de uma extraordinária delicadeza com os mais fracos, como a adúltera apanhada em flagrante (Jo 8, 3-11), ou as crianças (Mt 19, 13-15). É também de uma comovedora proximidade com os seus mais chegados seguidores: João, o apóstolo que se identifica como “o discípulo que (o Senhor) amava” (Jo 19, 26), protagoniza um gesto de grande intimidade, que era tão intensa quanto pura, ou seja, sem nada de sensual, quando, na última Ceia, reclina a sua cabeça sobre o peito do Mestre (Jo 13, 23) e, assim, ausculta o seu coração.
Não era só no círculo dos seus mais próximos colaboradores que Jesus cultivava relações de grande amizade. Para além do grupo dos doze apóstolos (Mt 10, 1-4) e mais de setenta discípulos (Lc 10, 1-12), Cristo tinha muitos amigos. Um deles, Lázaro, irmão de Marta e de Maria (Lc 10, 38-42), adoeceu e morreu. Quando as suas irmãs o chamaram, Jesus foi ao seu encontro e, mal viu Maria chorar a morte do irmão, “comoveu-se profundamente e perturbou-se” e, também ele, “chorou. Os judeus, por isso, disseram: Vede como ele o amava!” (Jo 11, 33. 35-36).
Nesta confissão da ‘fraqueza’ do coração de Jesus está, afinal, toda a sua grandeza. Um coração impassível à dor alheia, ou indiferente, é um pobre coração. Só quem sofre as dores alheias, porque as faz próprias, tem um coração cristão. Cristo é capaz de sofrer e de se alegrar, porque sabe amar. Como disse G. K. Chesterton, “a alegria, que era a pequena publicidade do pagão, é o gigantesco segredo do cristão”.
Foi também este publicista inglês quem, na conclusão da sua Ortodoxia, revelou o grande segredo do coração de Jesus: “a tremenda figura que enche os Evangelhos eleva-se – neste aspecto como em todos os outros – acima de todos os pensadores que alguma vez se consideraram elevados. A sua compaixão era natural, quase descontraída. Os estóicos, quer os antigos, quer os modernos, sentem-se orgulhosos pelo facto de conseguirem esconder as lágrimas. Mas Cristo nunca escondeu as suas: mostrou-as, claramente, no rosto aberto, à luz do dia, diante da sua cidade. Mas escondia alguma coisa. Super-homens solenes e diplomatas imperiais mostraram-se orgulhosos do facto de conseguirem conter a ira. Mas Cristo nunca conteve a sua: atirou as mesas e bancas pelas escadas do templo abaixo, e perguntava às pessoas como esperavam escapar à condenação do inferno. Mas escondia alguma coisa. Digo-o com reverência: havia naquela personalidade devastadora algo a que temos de chamar timidez. Havia qualquer coisa que ele escondia aos homens quando subia à montanha para orar. Havia qualquer coisa que ele ocultava permanentemente, por meio de silêncios abruptos, ou de isolamentos impetuosos. Havia uma coisa que era grandiosa de mais para que Deus a mostrasse quando andou sobre a terra; e eu tenho imaginado, de quando em vez, que era a sua alegria.”
*Sacerdote católico português. Licenciado em Direito na Universidade Complutense de Madrid e, posteriormente, doutorado em Filosofia pela Pontifícia Universidade da Santa Cruz, em Roma
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