Cada época com seu cânone e com suas regras de arte. Essa frase jogada assim de maneira abstrata pode parecer deslocada. O que pretendo? Vamos ao contexto. Itamar Vieira Júnior, o grande escritor brasileiro do momento, autor do premiado Torto Arado, sobre o qual fui um dos primeiros a escrever saudando a sua importância, publicou novo romance, Salvar o fogo. Na revista Quatro cinco um, Lígia G. Diniz detonou o livro.
A resenhista resumiu sua crítica neste parágrafo: “De modo geral, é este o problema do romance — problema que aparecia de modo mais inventivo em Torto Arado: a abordagem maniqueísta das relações sociais e raciais, que parte do princípio, implicitamente acordado com o leitor, de que, nessas páginas, por uma questão de justiça histórica, os negros e indígenas estarão do lado certo e a elite branca estará do lado não apenas errado, mas diabólico”. Essa é uma velha tese de certa crítica literária entronizada. Qual? A de que existe uma maneira certa de escrever alta literatura.
Itamar não gostou do que leu e reagiu com indignação, denunciando um racismo editorial ou implícito: “O editor branco escolhe a crítica branca para resenhar um romance atravessado pela raça e pelo colorismo. Eles precisam nos lembrar que na literatura brasileira não há espaço para nós, então o pacto é deixar a avaliação entre eles. Um livro conquistar um bom número de leitores — como ocorreu com ‘Quarto de Despejo’ ou ‘Torto Arado’ — ainda vai, mas dois já é demais. Eu não quero me manifestar todas as vezes que cospem na minha cara, mas Vini Jr. me lembrou que precisamos erguer nossa cabeça, pois tê-la curvada nunca nos ajudou em nada”.
Lígia rebateu usando as armas do seu referencial teórico: “Quer debater uma possível incapacidade minha de reconhecer um projeto estético diferente dos modelos modernos? Topo! Quer me convencer de que indicar falhas de um romance está no mesmo espectro dos ataques contra Vini Jr.? Só posso lamentar a morte do debate público e da ficção”. E agora, José?
Numa entrevista, Itamar deu um passo à frente: “A crítica brasileira está sempre em busca de Proust e à espera de Beckett. Quando eles descobrem que não há nem Proust, nem Beckett, a coisa azeda”. É aí que o bicho pega.
Chamar de racista qualquer pessoa branca que critique o livro de um negro parece um sinal fechado: o livro de um negro torna-se incriticável por qualquer branco. O mesmo vale para a crítica envolvendo gênero. Não faz muito tempo, o gaúcho Luiz Maurício Azevedo criticou a obra de um escritor negro. Foi trucidado nas redes sociais por brancos e não brancos. Não foram poucas as manifestações que, em resumo, diziam: só podia ser um branco! Detalhe: Luiz Maurício é negro retinto, ativista, adversário militante de todas as formas de racismo. Fazer essa ressalva não significa desconhecer o quanto pode haver de racismo e de machismo, consciente ou inconsciente, em análises de arte que se pretendem técnicas ou de pura estrutura.
Cada época com as suas regras e o seu cânone. Estamos na época da literatura de lugar de fala. Itamar tem razão: “A crítica brasileira está sempre em busca de Proust e à espera de Beckett”. Assim como o iluminismo defendia um universal abstrato que se tornou mecanismo de encobrimento de um etnocentrismo europeu, o “modelo moderno” de análise de “projetos estéticos” ainda se apresenta como universal, neutro, imparcial e único, a regra das regras, pretensamente acima de contexto histórico e literário. Assim, cada livro publicado deve ser medido por esse metro pretensamente definitivo.
Acontece que a roda girou. Estamos noutro momento. Até se poderia ironizar que se trata de uma revanche de Sainte-Beuve contra Proust: a vida do autor, certo ou errado, e seu lugar de escrita (ou de fala) contam muito. Ou tudo. Exagero? As editoras, de propriedade de brancos, em geral, como a Cia das Letras e da Todavia, já perceberam isso. Os leitores também. A crítica literária moderna continua a julgar com sua velha métrica do fazer correto. Na época de Machado de Assis, estava em ascensão o mito da obra universal. Talvez por isso ele tenha adotado como estratégia fugir do seu lugar de fala. Lima Barreto faria o contrário e pagaria alto preço por isso. Foi julgado autor menos importante por longo tempo pelo modelo dominante.
Proust e Godot não respondem.
O autor está vivo.
O gênero e a cor passaram da obra ao escritor
*Jornalista. Escritor. Prof. Universitário
Fonte: https://www.matinaljornalismo.com.br/matinal/colunistas-matinal/juremir-machado/literatura-de-lugar-de-fala/?swcfpc=1
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