quarta-feira, 28 de junho de 2023

Encontrando uma ideia pela qual vale a pena viver e morrer

 
“A primeira pergunta que naturalmente procuramos responder é qual a relação entre religião, 
cinema e literatura com o filósofo dinamarquês e o que há de fundamental entre eles? Kierkegaard 
nasceu no início de século XIX, ou seja, antes da invenção do cinema, 
o que torna essa relação menos clara. Contudo, o que conecta 
o cinema com os temas supracitados é também 
o que nos conduz a Kierkegaard: a narrativa.” Foto © Tom Swinnen / Pexels

Este é o meu primeiro texto para o jornal digital 7MARGENS. Quando recebi a oportunidade para escrever neste espaço sobre religião, cinema e literatura, pensei em iniciar escrevendo sobre o que há em comum nesses temas, sobre os quais tenho conduzido as minhas reflexões enquanto investigador em Ciência da Religião. Além disso, o que para mim é imprescindível não é apenas o caráter teórico dessa relação, mas como aquilo que se apresenta de modo fundamental entre a religião, o cinema e a literatura, também se mostra como crucial à subjetividade. Nesse sentido, também será meu objetivo neste espaço refletir com o leitor acerca da existência humana; isso significa dizer que as reflexões estarão endereçadas àquelas questões com que lidamos cotidianamente em nossas vidas – isso, se permitimos que a existência se torne um problema para nós. Desse modo, o autor que constantemente aparecerá por aqui é o filósofo dinamarquês Søren Aabye Kierkegaard (1813-1855).

A primeira pergunta que naturalmente procuramos responder é qual a relação entre religião, cinema e literatura com o filósofo dinamarquês e o que há de fundamental entre eles? Kierkegaard nasceu no início de século XIX, ou seja, antes da invenção do cinema, o que torna essa relação menos clara. Contudo, o que conecta o cinema com os temas supracitados é também o que nos conduz a Kierkegaard: a narrativa. Se de imediato podemos apontar para um aspecto comum entre religião, cinema e literatura é para o aspecto narrativo que esses temas compartilham. Toda narrativa implica uma jornada. Essa jornada é a aventura que fazemos em nossa trajetória, na qual enfrentamos inúmeros desafios. Kierkegaard foi um pensador que se preocupou em pensar os problemas concretos da existência. Seu pensamento é de difícil classificação, pois sua vasta obra dialoga com a teologia, a psicologia, a literatura e a filosofia. Essa complexidade não é um subterfúgio para o autor se tornar incompreensível; se ela existe é porque ele está lidando com um âmbito em que qualquer redução ou simplificação não lhe permite pensar profundamente a existência e a subjetividade humana.

Para pensar a existência, Kierkegaard construiu narrativas e utilizou personagens para fazer experiências psicológicas e apresentar possibilidades de vida. Além disso, o teatro, a literatura, bem como a filosofia e a teologia, foram fundamentais e serviram de inspiração a Kierkegaard para ele refletir em suas obras sobre os problemas mais cruciais da vida de um indivíduo, pois permitiram que o autor navegasse nessas águas desconhecidas no meio das suas tempestades. Nesse sentido, caso o autor fosse do nosso tempo, certamente ele estaria indo regularmente ao cinema para observar o que essas narrativas comunicam à condição humana. Seria formidável ver a reação de Kierkegaard diante de diretores como Ingmar Bergman e Terrence Malick, bem como vê-lo lidando com as obras de José Saramago, Albert Camus e Emil Cioran. Mas se isso tudo é importante é porque diz respeito a nós, sobre quem somos, sobre o que significa existir e o que significa ser humano. A vida nos coloca uma questão sobre o sentido de nossas vidas e de nossas jornadas.

Acontece que chegará o momento na vida em que teremos de escolher o que fazer com ela. Não apenas recebemos a dádiva da existência, mas com ela também herdamos uma tarefa. Em dinamarquês, a palavra que designa tarefa é opgave, sendo que gave significa precisamente dádiva[1].  Desse modo, uma tarefa consiste em realizar algo a respeito daquilo que lhe foi dado. Se a partir do momento em que começamos a respirar, existir passa a ter um caráter necessário, o que significa que não escolhemos se queremos ou não existir, com essa necessidade nasce também a escolha. Seja lá qual for a circunstância em que nos encontramos, essa escolha implicará na decisão acerca da pergunta sobre o que devemos fazer com a vida que nos foi dada.

Kierkegaard foi um autor que se preocupou com sua interioridade; para ele não bastava descobrir uma verdade objetiva, ele precisava encontrar aquela verdade que fosse verdade para ele, aquela verdade pela qual vale a pena viver e morrer[2]. Portanto, é diante dessa perspectiva, dessa busca incessante que travamos nas narrativas de nossas vidas, que procurarei refletir sobre a religião, o cinema e a literatura.  A tarefa será a de enfrentar os problemas que constituem nossa existência e a de buscar, na tessitura das narrativas, aquela verdade capaz de encontrar sentido e transformar a existência naquilo que ela é: dádiva.

Referências

KIERKEGAARD, Søren. Søren. Kierkegaard’s Journals and notebooks. Volume 1. Copenhagen: 2007. Princeton University Press.
ROOS, Jonas. “Retroceder para avançar: pressupostos para a compreensão da existência como tarefa em Kierkegaard”. v. 24 n. 2 (2021): Numen – Revista de estudos e pesquisa da religião. Acesso em 19/06/2023. Link: https://periodicos.ufjf.br/index.php/numen/article/view/38372

[1] Para uma compreensão mais aprofundada sobre o conceito de opgave, bem como da relação entre existência e tarefa, ver: ROOS, Jonas. “Retroceder para avançar: pressupostos para a compreensão da existência como tarefa em Kierkegaard”. v. 24 n. 2 (2021): Numen – Revista de estudos e pesquisa da religião. Acesso em 19/06/2023. Link: https://periodicos.ufjf.br/index.php/numen/article/view/38372, p. 136.
[2] Em uma carta registrada de 1 de agosto de 1835, Kierkegaard reflete sobre o que ele deveria fazer. Ele escreve que precisava encontrar uma verdade que fosse verdade para ele, uma verdade pela qual vale a pena viver e morrer. Irei abordar mais este tema nos próximos textos. (Journal AA ,12, p. 19)

*Presley Henrique Martins é graduado em Filosofia e mestre em Ciência da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Brasil. Atualmente, é doutorando em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), conduzindo parte do seu período de pesquisa na University of Copenhagen – Københavns Universitet, Dinamarca. Pesquisa o pensador dinamarquês Søren Kierkegaard, bem como a relação entre religião, existência, literatura e cinema. | 27 Jun 2023

Fonte: 

https://setemargens.com/encontrando-uma-ideia-pela-qual-vale-a-pena-viver-e-morrer/?utm_term=FEEDBLOCK%3Ahttps%3A%2F%2Fsetemargens.com%2Fefeed%3Degoi_rssfeed_xKnmS3HTbxoNOuINFEEDITEMS%3Acount%3D1FEEDITEM%3ATITLEENDFEEDITEMSENDFEEDBLOCK&utm_campaign=Sete+Margens&utm_source=e-goi&utm_medium=email

 

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