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O mundo não evolui pela sobrevivência dos mais fortes, mas através dos comunicadores mais aptos. Sob esta nova chave de leitura, a evolução biológica que deu origem à evolução cultural com o nascimento do pensamento, adquire um significado profundo, sobretudo na actual Era Digital. Na mensagem [sobre as redes sociais] publicada pelo Dicastério da Comunicação [da Santa Sé] no passado 28 de Maio, a criatividade do amor emerge como um “estilo distintivo” que deve impregnar um cristão ao criar conteúdos nos ambientes digitais. Um dos aspectos que refere é o de comunicar a beleza, afirmando que “devemos estar certos de que comunicamos uma mensagem na sua totalidade, o que exige a arte da contemplação – uma arte que nos torna capazes de ver uma realidade ou um acontecimento ligado a numerosas outras realidades e acontecimentos” (n. 66). O que é a “arte da contemplação”?
A “arte da contemplação” refere-se a um conjunto de práticas espirituais e filosóficas através das quais aprofundamos a compreensão e a apreciação do mundo em que vivemos. Envolve uma atenção plena relativamente a tudo o que acontece à nossa volta. E ao praticarmos esta arte, a observação torna-se fonte de meditação através da narrativa que se desenrola pela vida ao nosso redor, dentro de nós mesmos, orientando-nos para as realidades mais profundas da nossa existência.
Na tradição cristã, a contemplação é uma forma de oração que se concentra no “ser” com Deus mais do que em “fazer” ou dizer algo a Deus. É uma prática silenciosa que requer paciência e tempo, permitindo a conexão e a comunhão com o divino. Se pensarmos antes na tradição budista, a contemplação pode referir-se a práticas meditativas que visam silenciar a mente e observar a realidade tal como ela é, sem julgamento ou apego. E se considerarmos a visão desta arte pela filosofia através da estética, contemplar é o ato de nos envolvermos profundamente com uma obra de arte, seja ela visual, musical, literária ou de outra forma. Quem contempla, aprecia com profundidade e deixa-se levar pelos pensamentos com o intuito de compreender as nuances e a complexidade da obra. A arte da contemplação é uma prática que todos podem aprender e praticar, independentemente do grau de literacia, aumentando a nossa consciência da realidade do mundo à nossa volta. Quão comprometida está esta arte na era digital? Talvez dependa da sua relação com a verdade.
Devido ao excesso de informação que recebemos todos os dias, 24/24h, ninguém possui mais a capacidade de distinguir facto de ficção quando tudo nos é apresentado como verdade. No tempo de Jesus, o convite que Ele fez foi a acolhê-Lo como “caminho, verdade e a vida” (João 14, 6). Ele sabia que o ser humano precisa de um ponto de referência para aferir os passos a dar no caminho a seguir, as realidades a pensar para compreender a verdade e as escolhas a fazer que levam a vida a fluir. A “pós-verdade” que sobrepõe o sentimento à razão em vez de os harmonizar, as “notícias falsas” que nos incutem a falta (ou excesso) de confiança na informação significa que já não o podemos fazer sozinhos. Daí o valor do aspecto mais importante na criatividade do amor: a comunhão.
Ninguém possui a verdade. Todos caminhamos juntos na expectativa de compreender o que é a verdade. Podemos dizer que Jesus é a Verdade, mas se a comunhão entre nós estiver minada de “certezas”, o relacionamento com aquele que pensa de maneira diferente de nós fica prejudicado. E a verdadeira comunhão só é possível quando acolhemos com maturidade a riqueza proveniente da diversidade de pensamentos. Antes de termos razão estão os laços de comunhão que preparam o terreno da nossa inteligência para caminhar na diferença partindo daquilo que nos une. Por isso, a mensagem do Dicastério esclarece (n. 68) que a “nossa criatividade só pode ser um resultado da comunhão: não é tanto a realização de um grande génio individual, como o fruto de uma grande amizade. Em síntese, é o fruto do amor. Como comunicadores cristãos, somos chamados a dar testemunho de um estilo de comunicação que não se fundamenta unicamente no indivíduo, mas numa forma de construção de comunidade e de pertença”. O comunicador mais apto é o que sabe amar e deixar-se amar. Porém, o que a digitalização da comunicação não permite, se quisermos ser os comunicadores mais aptos que trazem a arte da contemplação para o quotidiano através da criatividade do amor, é a comunicação não-verbal.
No seu livro Am I Making Myself Clear?, Terry Felber diz que “a comunicação não-verbal é o que ‘dizemos’ sem palavras. É a expressão nas nossas faces, a linguagem do nosso corpo, as nossas posturas. (…) o silêncio que mantemos”. Só a criatividade do amor pode inspirar uma evolução cultural que humanize e faça de cada um inventor de novos modos de praticar a Arte de Contemplar.
Miguel Panão é professor no Departamento de Engenharia Mecânica da Universidade de Coimbra. Para acompanhar o que escreve pode subscrever a Newsletter Escritos em https://tinyletter.com/miguelopanao. Contacto: miguel@miguelpanao.com
Fonte: https://setemargens.com/criatividade-do-amor-a-arte-da-contemplacao-na-era-digital/
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