O Homem que Sabia Javanês é um celebrado conto de Lima Barreto (1881-1922). Um jovem chamado Castelo precisa lutar para sobreviver. Em Manaus, finge-se de bruxo. No Rio de Janeiro, candidata-se a um cargo raro: professor de javanês. Como desconhece a língua, estuda alguns poucos dados para enganar. Crê que jamais poderão verificar a densidade dos seus conhecimentos. Inicia aulas particulares para um barão idoso. Castelo termina como membro do corpo diplomático brasileiro e é aclamado como um gênio. Tudo sem... falar javanês.
O carioca Lima Barreto ironiza a superficialidade, a empostação e o ridículo das convenções do Brasil da República Velha. Muita cena e pouco conteúdo são o cenário para que malandros possam agir com mais tranquilidade.
Malandros astuciosos são um eixo literário tradicional. Ulisses é destacado na sua capacidade de enganar troianos, um ciclope gigante, uma feiticeira como Circe e pretendentes à mão de sua esposa. João Grilo foi celebrado em Portugal e no Brasil até ser imortalizado na obra O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna. Desde a Idade Média, a Península Ibérica relembra Pedro Malasartes (por vezes com z). Herdamos a personagem na tradição brasileira. Mazzaropi o encarnou no cinema há muitos anos e, recentemente, foi revivido por Jesuíta Barbosa.
O público ama o “pícaro” que consegue se safar de situações embaraçosas, explorando os defeitos dos outros, especialmente vaidade e ambição material. Pode ser um rei como Ulisses, uma personagem do Nordeste, como João Grilo, ou um caipira como Pedro Malasartes.
A sagacidade de um enganador causa graça nos textos e nos palcos. Castelo não apenas jamais foi desmascarado na sua mentira sobre javanês como termina celebrado. João Grilo mente em todo o Auto e ainda escapa do inferno, ganhando uma segunda chance graças ao apelo a Nossa Senhora (ele a invoca com versos jocosos). Vale lembrar que a aparente simplicidade de Pedro Malasartes coloca no chinelo seus enganadores.
Agora, a contradição: moral exaltada de malandros em tudo, mas exigência de governantes ilibados, piedosos, incapazes da mentira. Heróis picarescos que nos encantam e políticos astutos que nos irritam: seria uma contradição em si? Parece que estamos em assimetria entre admiração picaresca e projeção política moralista.
Bem, acredito que você e eu não falamos javanês. Suspeito que desconfiaríamos da afirmação de que alguém sabe a língua complexa. Então, pelo menos, podemos evitar o voto em quem acha que fala javanês. Pangarep-arep é esperança em javanês. Eu acho...
* Historiador. Escritor. Prof. Universitário
Fonte: https://www.estadao.com.br/cultura/leandro-karnal/voce-fala-javanes-a-sagacidade-de-um-enganador-causa-graca-nos-textos-e-nos-palcos/?j=659891&sfmc_sub=495497372&l=8503_HTML&u=20258362&mid=534001280&jb=3003&utm_medium=newsletter&utm_source=salesforce&utm_campaign=conectado&utm_term=20230628&utm_content=
Nenhum comentário:
Postar um comentário