Fabrício Carpinejar*
Meu pai faz de conta que me deu a sua fotinho porque sobrou, porque solicitou uma dúzia delas
Não conheci alguém que tenha mais fotos 3x4 do que o meu pai.
Ele só confia na foto 3x4. É a foto oficial da sua vida. A foto de documento. A foto de verdade. A foto inviolável.
Tem que caber na palma da mão. Tem que vir com estojinho azul de duas abas.
A pose deve ser séria. Não pode rir. Não pode fazer palhaçada.
Ele não abre mão do ritual do estúdio, do banquinho alto, do guarda-chuva ao fundo, do flash, de esperar sentado na recepção para já sair com o material.
Não aceita imagens digitais de celular. Não aceita selfies. Considera que são manipuláveis e amadoras.
Confia no papel, na impressão do momento, no instante capturado de sua eternidade.
Ele frequenta o mesmo estúdio do bairro sempre que precisa renovar seus documentos. O dono do estabelecimento e ele têm entre si décadas de lealdade, mas ainda chamam um ao outro de “senhor”. Não atalharam as saudações para a informalidade.
Existe um respeito ancestral, um acordo de sala, discrição e pagamento em dinheiro. Jamais saltearam a ordem dos fatos.
Eu lhe explico que não há mais necessidade dos próprios registros para confeccionar a identidade ou carteira de motorista, pois eles são feitos na hora, pela câmera do computador.
Ele não cede às modernidades. Ele não me oferece os ouvidos. Ele diz que é sua tradição.
Apesar da teimosia, e talvez por ela, eu sou beneficiado.
Do hábito paterno, emana nossa ligação atemporal. Eu ganho de presente uma das suas pequenas fotografias.
Meu pai faz de conta que me deu a sua fotinho porque sobrou, porque solicitou uma dúzia delas.
Finjo que acredito. Ele disfarça o seu apego por mim. Não expõe a sua emoção à vista — é parcelada em porções diluídas do cotidiano.
Na verdade, sei que que ele quer que eu leve comigo uma recordação dele. Não duvido de que faça o excesso de propósito, pensando em mim e nos meus irmãos.
Eu mantenho várias versões de seu rosto: jovem, de meia-idade, maduro, mais envelhecido, magro, rechonchudo, de barba comprida, de bigode, com bochechas lisas.
São oitenta e quatro anos de uma coleção completa de suas figurinhas, de um álbum em miniatura que carrego religiosamente no bolso.
Explico aos meus filhos o quanto seus olhos são verdes, não azuis. Mostro o quanto ele mudou ao longo das suas diferentes fases. Como o vô era. Como se vestia a partir das golas das camisas. Como sua feição foi aceitando a nobreza das rugas. Como se tornou essa criatura da serenidade.
Ele unicamente não muda o seu gesto de confiar em mim como portador de sua evolução.
Suas 3x4 possuem um quê de santinho protetor, de superstição. Não que ele seja perfeito —ninguém é —, porém é meu pai. Sempre será meu amado pai. Ele transmite a paz de que estaremos juntos a cada nova revelação.
O amor é uma fotinho na carteira, nunca sai de moda.
* Jornalista. Escritor. Poeta
Fonte: https://gauchazh.clicrbs.com.br/colunistas/carpinejar/noticia/2023/06/nossos-santinhos-clj393wt6008w01566hrufoq1.html
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