“Durante a Segunda Guerra Mundial ninguém queria saber dos judeus”, diz a historiadora Silvia Haia Antonucci, responsável do arquivo da Sinagoga de Roma. Em entrevista para a reportagem A Lista do Padre Carreira, que passou esta semana na TVI, uma parceria do 7MARGENS com aquela estação de televisão, e cujo vídeo publicaremos também no início da próxima semana, esta investigadora fala aqui também do papel do Papa Pio XII: “O facto de o Papa não ter dito para não abrir os conventos é um facto considerável. Mas daí a querer fazer passar o Papa como o paladino que salvou todos, não é verdade.”
Silvia Antonucci fala também da razia feita pelos nazis em Roma, em Outubro de 1943 – coincidindo com o tempo em que o padre Joaquim Carreira já escondia dezenas de pessoas no Pontifício Colégio Português. E acrescenta que a abertura dos arquivos relativos ao pontificado de Pio XII pode ajudar a clarificar o papel do Papa e do Vaticano, mas que o essencial da história já é conhecido.
7MARGENS – O que aconteceu aqui em Roma, durante a guerra, no que diz respeito às perseguições aos judeus?
SILVIA HAIA ANTONUCCI – Os judeus inscritos na comunidade, em Roma, em 1938, eram mais ou menos os mesmos de hoje: 13, 14 mil. A situação parecia bastante tranquila, até mesmo pelo comportamento de Mussolini que, no início, foi muito ambíguo. Entre os judeus italianos, como entre todos os outros italianos, havia quem fosse favorável ao regime fascista e também quem se opusesse.
Tudo muda depois de 1938, quando são promulgadas as [primeiras] leis antissemitas ou racistas (e que continuaram até 1943). Mas só as classes sociais altas é que podiam perceber os sinais de perigo. A maioria da população judaica em Roma era pobre e as leis antissemitas caíram como um raio em céu sereno.
7M – Uma surpresa absoluta…
Havia até judeus que durante a Primeira Guerra Mundial tinham recebido medalhas, tinham orgulho em ser militares que defenderam Itália e vêem-se [de repente] sem nenhum direito civil. Uma situação muito dura.
As leis de 38 são uma preparação para a deportação. Ao retirar direitos civis, é óbvio que passa a haver dificuldade em viver e trabalhar, vive-se miseravelmente… Desenvolve-se uma situação que faz com que os judeus cheguem a 1943 prostrados do ponto de vista físico e psicológico.
Chegamos a 1943 numa situação em que os judeus romanos continuam a ter dificuldade em perceber o que está a acontecer. Isto é um legado antigo, do gueto, que foi instituído pelo Papa Paulo IV em 1555 e durou até 1870.
7M – A fundação coincidiu com o início da Reforma protestante.
Sim. E havia a ideia do Papa de converter os judeus: o Papa não quer que os judeus se vão embora, quer que eles tenham dificuldades na vida quotidiana, não tão más que não consigam viver, mas o suficiente para os convencer a converterem-se. Esta política não teve grande efeito: a maioria não se converteu.
No resto da Europa há os pogrom da população contra os judeus com consequências devastadoras: destruição, raptos, violações, assassinatos, etc.. Isto nunca aconteceu no Estado Pontifício, pelo contrário, onde até a guarda papal defende o gueto. É uma diferença subtil, mas importante. No imaginário colectivo hebraico, o Papa “defendia” os judeus.
Como o Papa estava em Roma, isso queria dizer “em Roma nunca acontecerá nada de terrível”. A promulgação das leis antissemitas foi um primeiro choque também porque quase ninguém disse nada: os judeus, por exemplo, já não podiam ser professores e isto passou-se quase em silêncio total. Italianos, seus concidadãos, ficaram com os seus empregos… nessa época, os italianos aboliram a moralidade.
7M – Sem dizer nada…
… sem se pôr o problema moral. Posta esta situação e posto o facto de que a maioria dos judeus romanos era pobre (famílias numerosas, sete-oito filhos), se tivessem medo, para onde iam? Para onde levavam as famílias daquela dimensão sem meios?
Quando a 16 de Outubro de 1943 se faz a razia em Roma, é algo devastador: poucos dias antes, a 28 de Setembro, os nazis tinham pedido à comunidade hebraica de Roma 50 quilos de ouro dizendo que se os entregassem não efectuariam deportações. No imaginário local, pensava-se que os nazis eram pessoas de palavra. E então houve uma corrida à solidariedade: fora deste edifício [da Sinagoga de Roma] formou-se uma fila inacreditável de judeus e não judeus que doavam o seu ouro para salvar os judeus.
Conseguiram juntar 50 quilos de ouro e ficaram relativamente tranquilos. Mas a 16 de Outubro os nazis fazem uma rusga em Roma toda. Uns 40% de judeus foram presos aqui [no bairro à volta da Sinagoga, o antigo gueto], mas o restante foi em Roma toda. Na verdade, a razia, segundo os nazis, não foi um grande sucesso, porque estavam à espera de prender muitas mais pessoas.
7M – Foram pouco mais de mil…
Um total de 1022. De Auschwitz só voltaram 16, quinze homens e uma mulher. Já morreram todos.
Ao princípio, os judeus pensavam que só iam levar os homens, para os mandar trabalhar. Mas a maior parte dos que foram presos eram velhos, mulheres e crianças.
A razia começou cedíssimo, pelas 5h. Os judeus tiveram tempo de telefonar para avisar, por isso muitos conseguiram fugir. Os nazis deixavam um folheto nas casas, (um exemplar está exposto no Museu Hebraico de Roma), onde estava escrito que todos tinham de partir, mesmo os doentes, que tinham de levar consigo as joias e as coisas de valor, água, comida para oito dias e a chave de casa. Este é um exemplo evidente da política nazi: não dar a entender o que estava a acontecer e que não se iria regressar.
7M – Nesse dia, já havia pessoas refugiadas em casas religiosas católicas?
Claro que sim. Um grande contributo para esconder os judeus foi o das casas religiosas, mas também de privados. Também se demonstrou, em termos estatísticos, que foram mais as casas religiosas a pedir um pagamento “em dinheiro” do que os privados.
Isto não diminui nada: é claro que quem salvava, quem escondia os judeus naquele período, arriscava muito. Se em Roma os que foram presos e deportados foram menos de dois mil, quer dizer que o resto conseguiu encontrar um esconderijo.
7M – A historiadora Grazia Loparco regista cerca de quatro/cinco mil pessoas escondidas em casas religiosas.
Aqui no arquivo não temos documentação a este respeito, eram coisas feitas às escondidas. Temos listas de deportados, redigidas depois do final da guerra, que são uma ajuda para determinar o número. Mas o que faz realmente a diferença são as fontes orais: os números variam um pouco, mas só em algumas unidades. Cada número tem atrás uma vida. Do nosso ponto de vista dizer que são 1022 e não 1023, é importante.
7M – Nos testemunhos recolhidos, percebe-se se havia alguma colaboração entre quem fugia ou cada pessoa pensava em si e na família?
Nunca me aconteceu ouvir que “combinavam”. Para encontrar os lugares de asilo ou se ia ao acaso (no 16 de Outubro as pessoas estavam tão desesperadas que viam “instituto religioso” e batiam à porta) ou com o passa-palavra.
No arquivo, estudámos um caso de escondimento da família Sonnino: o professor [Giuseppe] Caronía tinha criado uma clínica pediátrica. Como era antifascista, por castigo mandaram-no para Nápoles, para uma clínica de doenças infecciosas, depois novamente para Roma para outra clínica [semelhante]. Isso permite que ele comece a esconder quem quer que seja perseguido. Não o poderia ter feito se tivesse ficado na sua clínica original.
Os nazis não entravam na clínica de doenças infecciosas por medo, é óbvio. A família Sonnino salva-se graças ao passa-palavra: o médico de família diz “Vão ter com este médico e ele vai ajudar-vos”.
Se por um lado há uma grande ajuda da população local, ela envolve também muitas pessoas: neste caso, eram as freiras enfermeiras, os enfermeiros. Mas no conjunto da Shoah isto são excepções: não esqueçamos que seis milhões de judeus foram assassinados.
7M – Havia pessoas que corriam riscos, outras que se aproveitavam da situação.
Sim. O Yad Vashem dá a medalha de Justo Entre as Nações só no caso em que não houve aproveitamento. Estamos todos de acordo de que, num período de guerra, mais bocas para alimentar criam um problema. Mas uma coisa é dizer “se podes contribuir, contribui”, e outra é dizer “tens de me pagar uma renda”. Há uma diferença.
7M – A abertura do arquivo do Vaticano decidida pelo Papa Francisco pode ajudar a perceber o que aconteceu durante o pontificado de Pio XII?
De certeza que vai servir para alguma coisa. O problema é o extremar da questão. Não se pode dizer nem que o Papa abriu todos os conventos, porque não é verdade, nem que disse: “não abram”. A verdade está no meio. O facto de o Papa não ter dito para não abrir os conventos é um facto considerável. Mas daí a querer fazer passar o Papa como o paladino que salvou todos, não é verdade, porque houve casos em que os judeus foram bater à porta e pedir ajuda e foi-lhes dito “não podemos” e fecharam-lhes a porta.
O problema fundamental é que, quer do lado dos apoiantes do Papa, quer do lado dos que o criticam, é necessário baixar um pouco o tom. Fala-se da beatificação de Pio XII, mas vão beatificá-lo quando, na verdade, não foi o salvador dos judeus? Os factos históricos, como já o sabíamos antes e como o sabemos agora, depois da abertura dos arquivos, são os mesmos.
O problema é que nós pensamos com a nossa visão actual. A verdade incontestável é que durante a Segunda Guerra Mundial ninguém queria saber dos judeus. É esta a realidade que pode incomodar, mas o historiador tem de estudar a história por aquilo que é. Os americanos não entraram na guerra para salvar os judeus, tanto que não bombardearam os caminhos de ferro e disseram-no. Entraram na guerra porque Hitler estava a conquistar demasiado, estava a tornar-se um problema.
7M – Andrea Riccardi disse-me há anos, em entrevista, que Pio XII era um prisioneiro de luxo no Vaticano, no sentido em que não podia fazer grande coisa. Pode dizer-se isto?
Não. Partimos de um ponto de vista que vale para todos, do Chefe de Estado, ao último empregado… Cada um é responsável pelos próprios actos. São escolhas dificílimas. Ninguém quer simplificar ou banalizar, mas se és o chefe de algo, faz as tuas escolhas e aceita as consequências.
Ninguém diz que era fácil ir contra Hitler, falar, era tudo muito complicado. Há uns quantos “mas” bem grandes, como quando [o bairro de] San Lorenzo foi bombardeado [pelos Aliados]: o Papa foi a San Lorenzo. Os judeus foram presos a 16 de Outubro e o que fez? Uma simples e pequena iniciativa diplomática… Não tem comparação. Não é necessário extremar, ninguém diz que o Papa não fez nada ou que fez tudo. A verdade é que não havia interesse nos judeus da parte de ninguém: não havia no Papa, não havia em Churchill, não havia em nenhum lugar…
7M – As relações pessoais foram importantes neste caso?
A 16 de Outubro de 1943, cada um vai para onde puder porque está desesperado e nem sabe o que fazer. Nos dias seguintes, quando é necessário encontrar outras maneiras de se esconderem, quanto mais relações e possibilidades económicas, maior é a possibilidade de salvar-se.
Em Itália e em Roma, os judeus estavam muito [integrados]. A maioria vivia em tranquilidade e isto contribuiu muito para que se salvassem. Pelo contrário, numa aldeola da Polónia, onde viviam todos juntos, com relações não tão frequentes e às vezes hostis com a população local, a situação foi diferente. Na Polónia havia cerca de três milhões de judeus e a Shoah levou-os a todos. As inter-relações e as boas relações com os vizinhos contam em qualquer situação, mais ainda na Shoah.
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