Luis Felipe Pondé*
No nível radical da doença, ela se revela como uma forma autoimune de demência irreversível
Não é só a febre amarela que está pondo em risco a saúde pública. Há
uma outra epidemia em curso que ainda não invadiu a mídia: o narcisismo
dos bons.
O fenômeno atingiu níveis epidêmicos. E os órgãos competentes não
detectaram ainda os indícios desse quadro clínico. Talvez uma das razões
seja que muitos desses órgãos competentes são grandes áreas de risco de
contágio.
No passado, as áreas de risco eram mais localizadas dentro de instituições religiosas (não que estas tenham deixado de sê-lo).
Você está tendo dificuldade de entender o que vem a ser essa patologia designada "narcisismo dos bons"? Vou te ajudar.
Antes de tudo, a designação "narcisismo" tem credenciais
sofisticadas, mas fiquemos com o seu sentido mais comum: narcisista é
alguém que "se acha". Clinicamente, o narcisista é um miserável de
autoestima que finge se achar o máximo pra combater justamente a sua miséria interior. Nesse movimento de negação, ele acaba por criar uma persona que tende a supervalorizar a si mesmo. Daí o apaixonar-se pela própria imagem refletida na água.
O narcisismo dos bons é uma patologia moral.
A sintomatologia associada ao quadro não tem apenas efeitos individuais privados.
Se assim fosse, talvez seu dano em níveis epidêmicos fosse apenas
para as vidas de seus doentes e pessoas mais próximas. Como uma peste
que ficasse localizada num ambiente de quarentena.
Não. O narcisismo dos bons se caracteriza por ser uma peste pública.
Seu modo de contágio, já identificado razoavelmente, se dá, justamente,
pela contaminação em larga escala da população por meio de instituições
de caráter social e político, quando não educativo.
As redes são uma cultura de bactérias poderosa para a reprodução do
vírus. A mídia clássica, há muito tempo, já era uma área de risco. Os
jornalistas carregam todos os sintomas da patologia há décadas.
A sociedade está, completamente, à mercê dessa epidemia porque,
normalmente, quem deveria combatê-la tem, exatamente, a condição do
mosquito transmissor. Mas vamos a dados mais objetivos do quadro.
Se você tem certeza de que representa o lado do bem no mundo, é quase
certeza de que está contaminado. Se você tem certeza de que seu filho
também representa, o risco aumentou muito. Se você tem certeza de que
seu cachorro também representa, você está além de qualquer possibilidade
de cura. Se você acha que sua bike também representa, não tenho palavras pra expressar minha misericórdia. Se você acha que o restaurante que frequenta é um templo, não sei o que dizer.
Sinto muito por você, seu filho, seu cachorro, sua bike e o restaurante que frequenta.
Melhor procurar ajuda profissional. Cuidado: sua terapeuta pode estar, ela mesma, contaminada.
O fato de haver tantos dramas no mundo que precisam de solução é uma
das causas etiológicas da epidemia: a facilidade do contágio está no
fato de que muita gente que se acha do bem acaba por conviver. Os
efeitos são evidentes. As câmaras de eco dos bons carregam muitos vírus
dessa patologia. O mundo da educação, da arte e da cultura são grandes
áreas de risco.
O mundo da educação, coitado, luta para manter sua relevância
enquanto agente de pensamento, quando, na verdade, está sucumbindo à
competição mais violenta ou às modas mais fajutas, sejam elas vindas de
setores "naturalistas" da sociedade, sejam elas vindas de setores
"algorítmicos" do mundo dos negócios, sejam elas vindas de setores do
mundo corporativo que tomou a dianteira na reflexão sobre o futuro por
meio de "consultores de futuro".
Já o mundo da arte e da cultura é um caso especialmente interessante. Talvez seja uma das áreas de maior risco entre todas.
O número de pessoas "legais" nesse mundo é infinito. Pessoas "legais" são contaminadas ou "carriers", com certeza, do agente transmissor.
Se um dia você voltar pra casa de
uma festa qualquer e tiver certeza de que todo mundo ali representa o
bem, o quadro autoimune estará já instalado. No nível mais radical da
doença, ela se revela como patologia autoimune que se manifesta como uma
forma de demência irreversível.
--------------------
Nenhum comentário:
Postar um comentário