Martha Medeiros*
Tenho uma amiga que mora na Europa
há anos. Vive com a filha num apartamento de frente para um parque, tem
um carro, um emprego e um namorado. Em tese, ela não tem do que se
queixar, mas conversávamos outro dia sobre o que significa estar tudo
bem. Para ela, tudo bem é experimentar novas formas de existir. A gente
assina um contrato de locação de um imóvel, se acostuma com a mercearia
da esquina e quando vê está enraizado num estilo de vida que se repete
dia após dia, sem testar nosso espanto, nossa coragem, nossa adaptação
ao novo. Humm. O que você está inventando?, perguntei a ela.
- Vou morar num barco.
Ainda bem que eu estava sentada. Pensei: "Essa garota é maluca". E logo: "Que inveja".
Tenho zero vontade de morar num barco. Minha inveja foi do desapego e
da facilidade com que ela escreve capítulos surpreendentes da sua
biografia. "Tenho coisas demais, Martha. Livros demais, roupas demais,
móveis demais. Está na hora de viver com menos para poder redefinir o
significado de espaço, tempo, silêncio". O gatilho da nossa conversa foi
o documentário Minimalism (disponível na Netflix), que escancara a
estupidez do consumo compulsivo, como se ele pudesse preencher nosso
vazio. Vazio se preenche com arte, amor, amigos e uma cabeça boa.
Consumir feito loucos só produz dívidas e ansiedade.
Temos
perdido tempo, nas redes sociais, criticando o bandido dos outros e
defendendo o nosso, sem refletir que o caos político e social têm a
mesma fonte: nossa relação doentia com o dinheiro. A ideia de "poder"
deveria estar associada à gestão do ócio, às relações afetivas, ao
contato com a natureza e à eficiência em manter um cotidiano íntegro,
produtivo e confortável (nada contra o conforto), no entanto, "poder"
hoje é sinônimo de hierarquia, acúmulo de bens, ostentação e
lucratividade non-stop. É por isso que, para tantas pessoas, é natural
incorporar benefícios imorais ao salário, ganhar agrados de empreiteiras
e fazer alianças com pessoas sem afinidades, mas que um dia poderão vir
a ser úteis.
A sociedade não se dá conta do grau de frustração
que ela mesma produz e continua cedendo a impulsos. Uma vez, eu estava
na National Portrait Gallery, em Londres, quando, na saída, passei pela
loja do museu e percebi, ao lado do caixa, um aquário cheio de latinhas
de metal à venda, pouco maiores que uma moeda. Era manteiga de cacau no
sabor "chocolate & mint". Sem hesitar, comprei uma latinha e
trouxe-a comigo para o Brasil: hoje ela reside na bancada do banheiro,
intocada, para me lembrar de como se pode ser idiota - eu estava dentro
de um dos maiores museus do mundo e mesmo assim fiquei tentada a comprar
a primeira besteira que vi. O exemplo é bobo, mas ilustrativo de como
certos gritos ecoam dentro de nós 24 horas: Compre! Leve! Aproveite!
Você nunca mais será o mesmo depois de usar a triunfante manteiga de
cacau da National Gallery!
O único excesso que preciso é de consciência para não me deixar abduzir por essa forma equivocada de dar sentido à vida.
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* Jornalista. Escritora. Colunista da ZH
Fonte: http://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=f4401dd087608e344ac946c2f5a982e4 17/02/2018
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