Prometia levar a Humanidade a um patamar superior de
conhecimento, acabou por libertar-lhe os piores instintos. Facebook,
YouTube, Twitter, Instagram são apenas uma ilusão?
“A Internet era uma invenção maravilhosa. Era uma rede
informática que as pessoas utilizavam para recordar às outras de que
eram uns pedaços de merda horrorosos”.
É o excerto de Odeio a Internet
que o editor português colocou em destaque na contracapa e espelha bem o
teor e o tom do romance. Publicado originalmente em 2016 com o título I hate the Internet e que nos chega agora pela mão da Quetzal, com tradução de Vasco Teles de Menezes, não é um romance como os outros.
Bons e maus romances
Odeio a Internet tem a peculiaridade de se apresentar
frontalmente como um “mau romance”: “Um livro muito desorganizado, com
uma figura central que nunca aparece. O enredo, tal como a vida, não dá
em nada e inclui sofrimento emocional sem significado”. É a pura das
verdades: é um romance incipiente em termos de enredo, personagens e
estrutura. Resta saber se resultou assim por Kobek não ser capaz de
melhor ou se, como ele afirma em Odeio a Internet (um romance
metaliterário, salpicado de considerações sobre si mesmo) por ter
desistido “de tentar escrever bons romances quando percebeu que o bom
romance, enquanto ideia, foi criado pela Central Intelligence Agency”. A
CIA acreditava “que a literatura americana constituía propaganda
excelente que ajudaria a combater os russos” e que “a ficção literária
iria celebrar os prazeres de uma existência de classe média produzida
pelo dinamismo americano”.
Porém, “o financiamento do bom romance
por parte da CIA teve o efeito secundário de garantir que a literatura
americana fosse completamente incapaz de abordar o ritmo da inovação
tecnológica” e “ao longo mais de meio século, os escritores americanos
de bons romances tinham passado ao lado da única história importante da
vida americana. Tinham passado ao lado do mundo em evolução, o mundo dos
persuasores ocultos, do desenvolvimento do panorama das comunicações,
do turismo em massa, dos amplos subúrbios conformistas dominados pela
televisão”.
A ideia de a CIA ter criado o “bom romance” é apenas uma boutade, já
que o “bom romance” americano não tem feito outra coisa no último meio
século senão apontar o vazio que se oculta atrás dos “prazeres de uma
existência de classe média produzida pelo dinamismo americano”. Mas não
deixa de ser verdade que a maioria da ficção literária, seja ela
americana ou portuguesa, com as suas personagens afectadas e
neurasténicas que pensam e falam como escritores pedantes, tem andado a
passar ao lado do mundo das pessoas comuns e, em particular da nova
realidade que resultou da omnipresença da Internet nas nossas vidas.
Acresce
que, no século XXI, as perspectivas comerciais do “bom romance” eram
sombrias, já que os “cidadãos do futuro” – os millennials (nascidos a
partir do início dos anos 80) e a Geração Z (nascida a partir de meados
da década de 1990) – não tinham por ele qualquer apreço e “tinham
adoptado a excitação pop dos comics e da ficção científica. Queriam ler
sobre o cio de criaturas supranaturais como lobisomens, súcubos,
vampiros, meninos feiticeiros, sereias, minotauros, centauros, bruxas,
fadas, génios, fantasmas, zombies, anjos, íncubos, hacktivistas,
adolescentes modificados geneticamente e oligarcas ultra-ricos”.
Kobek concluiu que a única solução para tratar literariamente esta
realidade “era escrever maus romances que imitassem a rede informática
nas obsessões com o lixo mediático [e] na apresentação irrelevante e
desigual de conteúdos”.
Odeio a Internet cumpre este
programa: é um livro fragmentário e disperso, cuja débil e pouco
congruente componente ficcional é um mero pretexto para o autor expor as
suas reflexões cínicas e ácidas sobre a Internet e o mundo que ela
criou. Embora tais reflexões fiquem a cargo do narrador do livro,
intui-se que elas coincidem com as do próprio autor. Não só o narrador
se assume como autor de Odeio a Internet (e discute a sua
natureza e os seus méritos e defeitos – sobretudo os segundos, fazendo
questão de lembrar regularmente ao leitor que tem entre mãos um “mau
romance”) como o livro inclui como personagem um certo J. Karacehennem,
que partilha com Jarett Kobek as iniciais do nome e o facto de ser um
escritor americano de origem turca que escreveu um livro sobre um dos
pilotos dos aviões empregues nos atentados de 11 de Setembro – Kobek
escreveu Atta, um híbrido entre romance e biografia psicológica
de Mohammed Atta, o piloto do avião que embateu na Torre Norte do World
Trade Center, Karacehennem escreveu Ziad, sobre Ziad Jarrah, piloto do
avião que se despenhou na Pennsylvania e tinha como alvo o Capitólio.
Para mais, é à personagem Karacehennem que Kobek confia a proclamação
das posições mais críticas da Internet, incluindo um virulento discurso
proferido do alto de Twin Peaks – uma colina que domina parte da cidade
de São Francisco, onde decorre o essencial da acção do romance – e que
constitui o clímax de um enredo essencialmente plano.
A Internet para totós
Em Odeio a Internet as funcionalidades e plataformas da
Internet e as empresas mais emblemáticas da “nova economia digital”
começam por ser explicadas de forma muito esquemática, pedagógica e
pueril, como se o leitor não tivesse a mais pequena ideia sobre o
assunto, mas a postura ingénua é enganadora, porque logo a seguir a
explanação revela uma visão cínica e impiedosa. Compreende-se que Kobek
tenha escolhido colocar as suas ideias na boca das personagens e do
narrador de um romance, pois algumas delas poderiam causar-lhe sarilhos
se fossem apresentadas sob a forma de ensaio ou de artigo de jornal.
Sobre o Facebook
“Todas as melhores mentes da filosofia e do romance já tentaram
responder a estas perguntas [sobre o sentido da vida] e nenhuma […] foi
capaz de produzir uma resposta que funcionasse. O Facebook é fantástico
porque compreendemos finalmente porque é que temos cidades natais,
porque é que nos envolvemos em relacionamentos, porque é que comemos os
nosso jantares estúpidos, porque é que temos nomes, porque é que somos
donos de carros idiotas e porque é que tentamos impressionar os amigos
[…] Estamos na Terra para fazer enriquecer ainda mais o Mark Zuckerberg”
(comentário da personagem J. Karacehennem)
“Com a Internet, as
pessoas produziam resmas de propriedade intelectual sobre a qual não
tinham controlo. Se enviássemos uma mensagem a alguém pelo Facebook, o
Facebook ficava dono dessa mensagem para todo o sempre e servia-se dela
como um pretexto para disponibilizar anúncios. As nossas manifestações
de indignação […] davam dinheiro a ganhar ao Mark Zuckerberg e aos
investidores dele”.
Sobre o YouTube
“Os vídeos mais populares do YouTube eram os seguintes: 1) Raparigas
giras a dar conselhos de maquilhagem e para o cabelo; 2) Coisas rápidas
captadas fotograficamente em câmara lenta; 3) Gatos feios a miar na casa
de banho; 4) Celebridades prestes a cometer uma gaffe social; 5) O Ray
Jay Wiliams a gabar-se do tamanho dos genitais; 6) Um comentador sueco
de videojogos que dava pelo nome de PewDiePie e era indistinguível do
Božidar Boža, de Petnjica, no Montenegro, um homem que tinha levado um
coice de uma mula em criança e se encontrava fadado a viver o resto da
vida como o idiota da aldeia” (pode ver aqui os 10 vídeos portugueses
mais vistos em 2017, mas poupará tempo e neurónios vendo apenas o resumo
de 1’32).
[Os 10 vídeos nacionais mais vistos em 2016:] https://www.youtube.com/watch?v=H8c53nKOJh8
Sobre o Twitter
“O Twitter [é] um mecanismo através do qual os adolescentes se
atormentavam mutuamente a caminho do suicídio enquanto se mostravam
obcecados com celebridades efémeras”.
“A grande maioria dos tweets
era escrita por narcisistas interessados em fazer com que as outras
pessoas soubessem a ampla variedade de opiniões que tinham acerca de
todo e qualquer assunto. Esses assuntos incluíam: celebridades, o que os
narcisistas andavam a comer ao jantar, políticos de outros partidos,
celebridades […], o que os narcisistas andavam a comer ao pequeno-almoço
[…], as empresas de que os narcisistas eram fiéis clientes, marcas de
fast food, celebridades […],o que os narcisistas andavam a comer ao
almoço”.
“As pessoas de todo o espectro político adoravam o Twitter. Activismo
imediato, com uma resposta imediata. Havia a sensação de que estavam a
acontecer coisas, de que as pessoas estavam atentas. Na verdade, tudo o
que essas pessoas que exerciam a liberdade de expressão no Twitter
estavam a fazer era pura e simplesmente a criar conteúdos sobre os quais
não possuíam direitos para uma empresa na qual não tinham
participação”.
“O Twitter faz com que toda gente pareça um miúdo de 15 anos irritante lamuriento” (comentário da personagem J. Karacehennem).
A personagem Adeline apercebe-se de que o tom dominante no Twitter é a
indignação e que o assunto dominante são os programas de televisão e
fica confundida, pois tinha passado anos “a ouvir dizer que a Internet
iria transformar a cultura americana e criar novas formas de expressão.
Mas, no fim de contas, eram só mais pessoas a falar de televisão”.
Sobre o Instagram
“Os utilizadores do Instagram publicavam fotografias de coisas em que
tinham gasto dinheiro ou então nas quais gostariam de vir a gastar
dinheiro. Era uma orgia infinita e assexuada de carros, armas, comida,
roupa, cães, gatos, ioga, biquínis, maços de notas, obras de arte,
implantes mamários, aumento de nádegas, férias de sonho, tatuagens,
discos de vinil, telemóveis, calçado, computadores portáteis, herdades
no campo inglês, aviões, piercings, animais de estimação exóticos […],
mojitos e outras bebidas alcoólicas deliciosas, aumento de lábios,
carteiras, relógios […]”
Sobre a Google
“[A Google] é uma empresa de mentirosos. O modelo de negócio dela
gira todo à volta de uma mentira. A publicidade é a arte de mentir com
toda a gente a saber que estamos a mentir, mas sem que ninguém nos
denuncie, por termos disfarçado as nossas mentiras por trás do dinheiro
[…] Não há outra maneira de ganhar dinheiro com a Internet propriamente
dita sem ser por via da publicidade […] A Google quer que acreditemos
que está a mudar o mundo, a proporcionar um milhão de serviços à pala e
que fazemos todos parte da mesma equipa, mas está a mentir. A única
coisa que a Google faz é disponibilizar anúncios” (comentários da
personagem Christine)
Sobre o Google X
As tecnologias desenvolvidas pelo Google X, “o laboratório
experimental da Google da treta […], não iam dar em nada. Constituíam
visões banais do futuro tal como imaginadas pelos fãs da ficção
científica […] O verdadeiro propósito do Google X era funcionar como
publicidade à visão mítica da Google enquanto empresa inovadora”.
Sobre a Apple
“O que [Steve Jobs] prometia era simples: há uma escolha. Podemos morrer feios e sem amor ou podemos comprar um computador ou um iPod excessivamente caros para ouvir o Bob Dylan dos primórdios […] A nossa básica falta de criatividade será disfarçada pela pertença a um determinado grupo. As pessoas vão achar-nos interessantes, lindos e esclarecidos. […] Não há nada que indique mais individualidade do que 500 milhões de aparelhos electrónicos fabricados por escravos”.Sobre a Internet em geral
“O mais curioso era que o Facebook, o Twitter, o Tumblr e o Blogspot
[…] constituíam o habitat dos supostos intelectuais e radicais sociais”.
Era aí que “andavam a escrever lições de moral em aparelhos fabricados
por escravos, em plataformas de expressão detidas pelo Patriarcado”.
“A
ilusão da Internet era a ideia de que as opiniões das pessoas que nada
tinham, dadas por vontade própria, possuíam algum impacto no mundo. O
que era, claro, uma treta pegada […] Não eram os governos que mandavam
no mundo. Não eram as celebridades que mandavam no mundo”. Os
banqueiros, investidores e produtores “é que mandavam no mundo […] A
ilusão das opiniões, dadas por vontade própria, era encorajada por dar
dinheiro a ganhar aos banqueiros”, investidores e produtores.
O
que “as opiniões dadas por vontade própria não faziam de todo era mudar o
mundo […], não passavam de mais palavras […] e eram as palavras que
oleavam a engrenagem do capitalismo […] As palavras não equivalem a
poder […] Na Internet, o único efeito das palavras das pessoas que nada
tinham era infligir sofrimento noutras pessoas que nada tinham”.
A Internet é ideologicamente neutra?
Torna-se aqui legítimo perguntar qual a razão para que algo que nos
tem sido apresentado como um extraordinário avanço para a Humanidade
sirva para que um grupo restrito se torne obscenamente rico, enquanto os
pobres se empenham em infligir sofrimentos uns aos outros. Resultará do
mau uso dado pela natureza humana a uma tecnologia que, na sua essência
era neutra? Ou terá “a visão inicial utópica da Internet” sido
deliberadamente pervertida de forma a favorecer estes comportamentos e
resultados?
J. Karacehennem defende que a Internet não é neutra e
que “todo o dinheiro e toda a tecnologia estão imbuídos da ideologia que
os originou”. No seu discurso inflamado no alto de uma colina de São
Francisco – onde tem por únicas testemunhas uns turistas asiáticos que o
olham com perplexidade – afirma que a Internet foi criada pelas forças
armadas – nasceu, com efeito, das investigações da DARPA (Defense
Advanced Reasearch Projects Agency) – e de não ter havido o envolvimento
de “uma única mulher nas tecnologias fundamentais que alimentam o nosso
universo digital”. E é por a Internet ter sido “projectada por homens
belicistas” que tem o carácter que tem.
Karacehennem acusa os
criadores da Internet e os empresários da economia digital – entre os
quais estão Larry Page, CEO e co-fundador da Google; Sergey Brin, o
outro co-fundador da Google; Eric Schmidt, CEO da Google; Steve Jobs,
fundador da Apple; Sheryl Sandberg, “chief operating officer” do
Facebook; Ray Kurzweil, director de engenharia da Google – de serem
nerds fascinados pelas “tépidas ideias pseudo-filosóficas de Ayn Rand e
da ficção científica de porcaria”.
Para Kobek, a elite de Silicon Valley foi intelectualmente formatada
por autores de fantasia e ficção científica como Robert Heinlein e
J.R.R. Tolkien e por Ayn Rand, que “escreveu livros que explicavam que
os beneficiários da Segurança Social eram lixo e mereciam morrer na
sarjeta” e “diziam às pessoas muito ricas que elas eram boas, que essa
procura de riqueza era moral e justa. Muitas dessas pessoas acabaram
como CEOs de empresas ou em níveis superiores do governo americano”. E
muitas delas são nomes sonantes da nova economia digital, o que faz de
Rand, “muito possivelmente, a pensadora mais influente dos últimos 50
anos” (ver Ayn Rand: A Revolta de Atlas é tão perigoso como Mein Kampf?).
Na lista de seguidores de Rand apresentada por Kobek estão os
políticos Paul Ryan e Ron Paul, os empresários Peter Thiel e Jeff Bezos e
Alan Greenspan, presidente da Reserva Federal dos EUA entre 1986 e 2006
– abarcando as presidências de Ronald Reagan, George Bush pai, Bill
Clinton e George Bush filho – e que Kobek elege como responsável n.º 1
da desregulamentação dos mercados financeiros, conduzindo a “uma série
de bolhas especulativas responsáveis pela destruição da economia. É
possível que a maior proeza de Ayn Rand não tenha sido a autoria de dois
romances merdosos. É possível que a maior proeza de Ayn Rand tenha sido
provocar o colapso da economia 25 anos depois de morrer”.
O mundo segundo Kobek
A visão cínica, crua, frontal e desassombrada de Jarett Kobek não se
cinge à Internet e aos seus gurus e à política americana. Abarca muitos
outros aspectos e é particularmente crítica da desigualdade de género e
do racismo, que são tema recorrente ao longo do livro.
Deixam-se
aqui amostras das suas opiniões sobre dois temas do nosso tempo –
celebridades e desporto – e de dois temas intemporais – desigualdade de
género e guerra.
Sociedade patriarcal
“Os homens tinham passado milénios a tratar as mulheres mal como
merda […] Sendo dominadas pelos homens, quase todas as sociedades
atribuíam a máxima importância a comer e a matar. Essa ênfase na força
em relação à inteligência era uma maneira engenhosa de não ter de lidar
com o facto de as mulheres serem mais espertas do que os homens”.
Guerra
“As guerras eram festas gigantescas das elites dominantes, que, por
vezes, achavam que era capaz de ser divertido pôr os pobres a matarem-se
uns aos outros […] Chamavam heróis aos pobres e deixavam-nos propagar
os mitos da nobreza em combate e da fraternidade, que eram ideias que
serviam para convencer novas gerações de pobres de que não havia
problemas em matar outros pobres”.
Desporto
“Os sistemas formalizados através dos quais homens adultos atiravam
bolas de um lado para o outro recebiam o nome de desporto. […] Como
qualquer sistema formalizado de controlo, o desporto era altamente
conflituoso. O desporto, como todo o sistema formalizado de controlo,
tinha a ver com dinheiro”.
Celebridades
“A ideologia implícita no entretenimento popular era que os clientes
podiam vir a ser tão famosos como os artistas. Bastava-lhes
esforçarem-se o suficiente e acreditar nos sonhos deles. […] As estrelas
pop […] existiam graças à ilusão de que a fama que tinham constituía
uma experiência partilhada com os fãs. Os fãs não eram consumidores. Os
fãs eram companheiros numa mesma viagem ao longo da vida”. O Twitter é
hoje o principal mecanismo que alimenta esta ilusão.
A Internet e a ilusão do conhecimento
Odeio a Internet centra a sua crítica da Internet nas facetas mais tóxicas e espectaculares:
1)
O espírito de lynch mob que tomou conta das redes sociais, agitadas por
“ondas de indignação” cada vez mais frequentes, devastadoras e
voláteis;
2) O trolling, ou seja a disrupção de qualquer tentativa
de manter um diálogo construtivo ou minimamente civilizado numa
comunidade online pela inserção de mensagens de teor polémico,
ultrajante ou simplesmente tolo – o troll não tem necessariamente de
crer no que escreve, professar uma ideologia ou ter uma opinião sobre o
tema em discussão no fórum ou no newsgroup, o seu objectivo é apenas
criar discórdia e caos;
3) O cyberbulling, que, como o trolling,
visa causar respostas emocionais, mas que tem alvos e propósitos
definidos: causar o máximo de humilhação e sofrimento a uma pessoa em
particular;
4) O revenge porn, ou seja, a difusão na Internet de
imagens sexualmente comprometedoras sem consentimento dos envolvidos e
com o intuito de lhes causar humilhação e sofrimento;
5 O culto das celebridades e no acompanhamento obsessivo dos mais fúteis detalhes da sua vida através das redes sociais;
6)
O teatrinho patético daqueles que, nas redes sociais, se esforçam por
dar ideia de que a sua banal e mesquinha vida fervilha de excitação e de
“consumo conspícuo” – nunca o conceito, enunciado em 1899 por Thorstein
Veblen, em The theory of the leisure class, teve tão exuberante expressão;
Mas mesmo os utilizadores da Internet que não se deixam arrastar para
estas vertentes mais malévolas, praticadas por uma categoria que Kobek
denomina de “dumb assholes” (na tradução portuguesa ficou “uns
parvalhões de uns imbecis”), acabam por fazer da Internet um uso
superficial, disperso e improdutivo – pelo menos quando visto à luz da
ideia utópica da Internet como uma poderosa ferramenta que iria elevar a
humanidade para um patamar superior de sabedoria e iria fazer
desabrochar talentos insuspeitado um pouco por todo o lado.
Tome-se
o caso da informação: a Internet veio agravar a crise dos media
convencionais – e em particular dos jornais e revistas – porque cada vez
mais pessoas vão buscar a sua informação quase exclusivamente às redes
sociais e aos e-mails reenviados. Há várias razões para esta deslocação,
mas uma delas é o alastramento, à esquerda e à direita, da convicção de
que os media tradicionais são “uns vendidos”, que estão ao serviço dos
grandes interesses financeiros – quiçá sob o controlo directo do Clube
de Bilderberg – pelo que muitas pessoas que julgam pensar pela sua
própria cabeça proclamam, em tom desdenhoso, que deixaram de ler jornais
porque “aquilo é tudo manipulado” e passam a alimentar-se apenas dos
hoaxes que são vertidos na sua caixa de correio e das atoardas e sound
bites que são difundidos nas redes sociais.
O jornalismo enferma
das limitações e falibilidade inerentes a todos os ramos da actividade
humana e, devido à crise dos media tradicionais, os jornalistas estão,
mais do que nunca, vulneráveis a pressões. Todavia, são profissionais
treinados: cabe-lhes ponderar a credibilidade das fontes e o interesse
público das “revelações”, foram adestrados na disciplina do
fact-checking, têm de obedecer a um código deontológico e sabem que o
que publicam (e o que omitem) irá afectar a sua credibilidade individual
e a do medium para que trabalham e a sua carreira.
No universo
das redes sociais e do reenvio de e-mails não há filtros nem
responsabilidades nem deontologia e é aí que hoje cavalgam, de rédea
solta, as mais descabeladas atoardas, as mais absurdas “revelações” e as
mais delirantes teorias conspiracionistas. E não há nada que as consiga
travar: alguns hoaxes, já amplamente desmentidos, andam à deriva no
fluxo e refluxo das cibermarés e voltam a dar à costa passados vários
anos e há sempre cibernautas amnésicos que os lêem como se fossem uma
“nova revelação” e relançam-nos em circulação.
Na Internet vigora
uma variante da Lei de Gresham, que prevê que a má moeda expulse a boa
moeda: a informação tóxica e sensacionalista sobrepõe-se à informação
isenta e objectiva e quanto mais tolo for um boato mais possibilidades
tem de ser retransmitido.
Claro que as notícias são apenas um aspecto do mundo digital. Na
Internet há de tudo, o sublime e o infame, a sabedoria e a obtusidade –
porque surge então o enviesamento em favor do lixo? A Internet colocou à
distância de um clique um repositório de conhecimento que faz a
Biblioteca de Alexandria parecer um livro de bolso, reuniu o que de mais
refinado e sofisticado o intelecto humano produziu ao longo da história
da civilização. Quem tenha, por exemplo, uma genuína paixão por
astrofísica, somada a determinação e tempo livre, pode, ao fim de alguns
anos a Googlar com critério, saber tanto sobre o assunto como um
professor do MIT, mesmo que não possua nenhuma credencial académica que o
ateste. O mesmo é válido para quem decide dedicar-se ao estudo da
pintura do Trecento italiano. Porém, a Internet tem-se mostrado muito
mais eficaz a criar crentes na homeopatia e nos atentados de 11 de
Setembro como inside job do que astrofísicos e amantes de Giotto. Sem
discernimento, espírito crítico e lastro de conhecimento, os cibernautas
não são capazes de separar a informação válida da tóxica e até
privilegiarão esta última, porque costuma ser apresentada de forma
simplista e fácil de digerir e engalanadas com as cores berrantes do
sensacionalismo e do conspiracionismo – muitos e-mails “tóxicos” são
fáceis de identificar, antes mesmo de se ler o seu conteúdo, pelo uso
sistemático de maiúsculas, pela profusão de pontos de exclamação e pela
proclamação de se trata de “uma notícia que os jornais e as televisões
têm ocultado!!!”.
É como se a Internet nos facultasse a possibilidade de almoçar e
jantar de borla todos os dias em restaurantes de luxo e, em vez disso,
escolhêssemos ir chafurdar nos caixotes do lixo nas traseiras dos
restaurante de fast food. E se uns têm o hábito de frequentar sempre o
mesmo caixote do lixo, onde sabem que encontram apenas as “notícias” que
confirmam os seus preconceitos, há também a variedade ecléctica, que,
não possuindo sentido crítico ou memória, engole com a mesma avidez a
propaganda islamofóbica, anti-emigração, pró-nacionalista e defensora
dos “valores tradicionais”, proveniente da extrema direita, e os
panfletos contra o capitalismo, a globalização, a agro-indústria e os
organismos geneticamente modificados difundidos pela extrema esquerda.
Como argumenta convincentemente Nicholas Carr em Os superficiais: O que a Internet está a fazer aos nossos cérebros
(Gradiva) o tipo de relação que a maioria das pessoas estabeleceu com a
Internet privilegia a superficialidade, a frivolidade, a inconsequência
e a efemeridade, o que faz com que os espíritos desprovidos de leme e
lastro intelectual sejam como cascas de noz à deriva nas ondas
alterosas, hoje empurrados para norte por uma atoarda, amanhã levados
para sul por mais uma “notícia que os jornais e as televisões têm
ocultado!!!”.
O que todas estes rumores alarmistas, denúncias sensacionalistas e
teorias conspirativas têm em comum é serem apresentados de forma
ultra-condensada e simplista, por vezes mesmo simplória e pueril,
nivelada pelo mínimo denominador comum, e pretendem explicar, num vídeo
de cinco minutos ou num slide show com uma dúzia de frases-chave
conceitos e problemas cheios de facetas e subtilezas, que exigiriam pelo
menos um livro de 500 páginas para a panorâmica geral. Esta é outra das
ilusões fatais que a Internet criou em muitos espíritos: a de que
existem explicações e respostas simples para problemas complexos e que
bastará ver um vídeo amador de cinco minutos sobre recursos energéticos
para se ficar a saber tudo o que é preciso sobre o assunto.
A era
da Internet estava ainda longe quando Charles Darwin constatou que “a
ignorância mais frequentemente gera confiança do que o conhecimento”,
ideia que seria reafirmada pelo historiador americano Daniel Boorstin já
no século XX: “O maior obstáculo à sabedoria não é a ignorância – é a
ilusão do conhecimento”. Ao contrário do que os néscios crêem, a
sabedoria não é coisa que se conquiste instantânea e definitivamente com
o visionamento de um slide show ou de uma TedTalk, é uma guerra
interminável, a ser travada todos os dias e a todas as horas, contra a
preguiça mental e as ideias pré-concebidas.
A Internet, o culto da estupidez e o fabrico de “notícias”
Há uma convicção generalizada de que a Internet nos irá empurrar a
todos automaticamente para a “sociedade do conhecimento”. Mas se é
verdade que a Internet é um vasto repositório de conhecimento, este está
disperso numa massa ainda mais vasta de gatinhos a tocar piano, de
adolescentes que se filmam a si mesmo a fazer coisas muito estúpidas
e/ou perigosas, de discussões acesas sobre a legitimidade de um rapaz
branco como Justin Bieber usar dreadlocks, de fotos de pratos gourmet,
de listas de cores de cabelo que estarão na moda esta Primavera, de
conselhos de puericultura, de selfies tiradas por gente anónima frente a
monumentos célebres e de anúncios a workshops de unhas de gel. Há quem
exalte esta abundância esquecendo que existe uma gradação hierárquica
entre 1) dados, 2) informação, 3) informação estruturada, 4)
conhecimento e 5) sabedoria – que é o conhecimento aplicado à vida – e
que quem navegue pelo ciberespaço sem critério passará a maior parte do
tempo a frequentar os patamares 1 e 2.
A Bíblia é também um corpo
de conhecimento que não prima pela congruência e que contém elementos
anacrónicos, irrelevantes e até tóxicos, lado a lado com passagens
meritórias. Num dos seus trechos mais inspirados (Provérbios 3: 13-15)
lê-se: “Feliz é o homem que acha sabedoria, e o homem que adquire
entendimento, pois melhor é o lucro que ela dá do que o lucro da prata, e
a sua renda do que o ouro. Mais preciosa é do que as jóias, e nada do
que possas desejar é comparável a ela”.
Porém, a sabedoria tem
visto a sua cotação baixar vertiginosamente desde os tempos bíblicos e
vale hoje menos do que latão, pois estamos numa era em que a estupidez
se tornou cool.
Um caso revelador do Zeitgeist foi a campanha “Be stupid”, lançada em
2010 pela Diesel, uma marca italiana de calças de ganga acessíveis
apenas a carteiras razoavelmente recheadas.
Outro exemplo
paradigmático do culto da estultícia são os desafios insensatos que os
adolescentes lançam através da Internet, como sejam a ingestão de
cápsulas de detergente (ver Desafio das cápsulas de detergente: mais um
fenómeno viral e altamente perigoso), ou a popularidade dos cyber
reality shows envolvendo YouTubers cuja fama resulta exclusivamente de
exibirem comportamentos pueris e estroinas (ver Cisão na “Casa dos
YouTubers”: O último episódio de um negócio que vale milhões).
Porém, ultimamente tem-se tornado evidente que uma percentagem
crescente da informação tóxica que circula na Internet não são apenas
hoaxes aleatórios produzidos por adolescentes com sentido de humor
retorcido, de gente com queda para a mistificação, de ressabiados
solitários ou de grupúsculos radicais – parte desse caudal “informativo”
tem uma agenda oculta. Quando começou a perceber-se que as falsidades
postas a circular na Internet têm o poder de influenciar a opinião
pública e o resultado de eleições (nas democracias liberais), alguns
Estados – nomeadamente a Rússia – começaram a disseminar na Internet,
através dos seus serviços de informações ou sub-contratando adolescentes
macedónios, uma miríade de falsidades concebidas para distorcer a
realidade em função dos seus interesses.
Jarett Kobek está tão empenhado em expor a agenda oculta da elite de
Silicon Valley que se esquece de que, uma vez montada a rede, ela não
está sob o controlo absoluto dos seus criadores e que forças ainda mais
maquiavélicas a podem usar para os seus próprios fins.
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Fonte: http://observador.pt/especiais/odeio-a-internet-a-rede-vai-salvar-nos-ou-vai-ser-o-nosso-fim/ 10/02/2018
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