Foto: Reprodução Youtube
"Existe uma coisa que é muito nossa
e muito mal trabalhada,
que é uma
espécie de obsessão pela esperança.
O brasileiro pode estar na pior,
ele
nem usa essa palavra esperança,
mas ele não abre mão da convicção
de
que amanhã vai ser diferente de hoje."
José de Souza Martins
estava disposto a falar. A entrevista a seguir durou 117 minutos
exatos. Poderia ter durado muito mais, pois não faltou prontidão a esse
professor e pesquisador, que transformou os estudos sociológicos no
Brasil com abordagens criativas e corajosas, arriscando deixar-se à
margem para poder ver melhor.
Suas investigações renderam dezenas de livros, alguns já clássicos da
sociologia, como os sobre o subúrbio, de onde ele veio e conhece muito
bem, além da honraria de professor emérito da USP (Universidade de São
Paulo), onde lecionou por cerca de quatro décadas.
Na entrevista, feita debruçada sobre uma longa mesa oval de madeira
avermelhada de uma sala do departamento de sociologia da USP, Martins
vai ao Brasil profundo, da margem, à estrutura mais funda do
pensamento. "Pensamos às vezes como alguém lá do século 17. E mascando
chiclé, tomando coca-cola e comendo hambúrguer no McDonald's", descreve.
Martins rememora um encontro antigo com Luiz Inácio Lula da Silva,
quando o ex-presidente era só um sindicalista latino-americano sem
dinheiro no banco e queria aprender sobre a Amazônia e a questão
agrária. Pediu então uma aula ao sociólogo. "Lula era o aluno que
gostaria de ter tido aqui na universidade. Muito inteligente", elogia.
Sobre a trajetória do líder popular, hoje condenado pela Justiça em
segunda instância , pondera: "Não foi Lula que se desviou, foi o poder
que o desviou". E define: "O poder é maléfico".
A entrevista é de Guilherme Azevedo e publicada por Uol, 10-02-2018.
Eis a entrevista.
Vamos começar pelo seu modo de fazer sociologia? Foram vários
temas [estudados], movimentos sociais, subúrbio, questão agrária, a
indústria, os operários, a violência dos linchamentos, entre outros. O
que te motivava a pesquisar? O que dava o brilho nos olhos para se
entrar na pesquisa? E tinha também o seu modo particular de valorizar o
cotidiano, aquilo que talvez fosse desimportante para muitos.
Eu tive a sorte de ser aluno no curso de ciências sociais no tempo em
que a influência da missão francesa ainda era muito forte [um grupo de
professores franceses foi contratado para as atividades docentes
iniciais da USP, que foi inaugurada em 1934]. O primeiro professor de sociologia aqui na faculdade foi o Claude Lévi-Strauss [1908-2009], que depois se tornaria o grande etnólogo. Aliás, as grandes descobertas etnológicas do Lévi-Strauss foram feitas no Brasil. O estruturalismo
nasceu de conversa dele com um xamã no norte do Mato Grosso, narrando
um mito para ele e aí ele vê, putz!, é uma dica epistemológica.
Era uma coisa que revolucionava tudo. Você tem um bom ouvinte e
pesquisador e um bom informante, que é um xamã, uma figura dona... que é
um intelectual, enfim, do grupo é sorte. Aí ele resolveu ir embora para
os Estados Unidos e veio para o lugar dele o Roger Bastide. Que foi um grande achado da universidade, grande figura. E ele é que faz o Florestan Fernandes, que fez a minha geração. Fez Fernando Henrique, Ianni, Marialice Foracchi [1929-72], Maria Sylvia de Carvalho Franco, e eu e a minha turma, da terceira geração.
Era um pessoal que tinha uma coisa que estava muito no Bastide: o Brasil era uma mina de informação sociológica na comparação com a Europa, por exemplo. Bastide
disse uma vez uma coisa do tipo: "A Europa está saturada de razão". Na
verdade, o grande mundo sociológico não está nesse âmbito, está fora dos
esquemas, da racionalidade. Ele vai se interessar pela cultura negra.
Tem um pequeno trabalho dele sobre sonhos que é primoroso. Fez um
pequeno banco de sonhos de negros. Ele se interessou pela cultura negra,
se tornou filho de santo. Ele era protestante, um huguenote, que vai
para o lado oposto para vasculhar o inconsciente coletivo. O primeiro
curso que ele deu aqui foi de sociologia e psicanálise.
Nesse banco de sonhos, ele descobre uma coisa importante: a cor da
pele não diz que uma pessoa é negra. Uma estrutura profunda no
inconsciente dela é que pode dizer isso. Porque todo o período colonial
foi um período de cristianização do escravo e de demolição de todas as
referências culturais dele. A ideia foi apagar da memória dele a alma da
tradição, da nação, do grupo de origem dele. Isso eles não conseguiram
fazer com todo mundo. Então, o negro de verdade é o negro que sonha,
quando está dormindo, a partir de parâmetros, de matrizes e referências
que são dos ancestrais. Ele conversa com os ancestrais no sonho. E os
ancestrais são fundamentais nas culturas negras, porque são eles que
interpretam, que dão pistas de conduta, quer dizer, existe uma alma
negra que vem dessa tradição. Então, negro é quem sonha como negro, o
fato de a epiderme do sujeito ser negra não é suficiente, já é uma outra
negritude, uma negritude moderna, que não tem nada a ver com aquela.
O senhor compartilha dessa ideia também?
Compartilho. Eu trabalho com as estruturas profundas. Eu não posso
explicar linchamentos [justiçamentos populares] se eu não lidar com essa
ideia, não só em relação ao negro, mas em relação ao branco também.
Quando você vasculha os indícios dessa profundeza de referência, se
descobre, no caso dos linchadores, que se orientam por uma mentalidade
que foi gestada pelas Ordenações Filipinas [código jurídico que vigorou no período colonial] e pela Santa Inquisição
[perseguição violenta feita pela Igreja Católica em nome do combate à
heresia, entre os séculos 16 e 18, no Brasil]. A ideia da vendeta
[vingança], você de preferência queimar o acusado vivo, que é isso que
se faz nos linchamentos. Existe um ser arcaico no nosso inconsciente que
continua muito ativo mesmo no comportamento moderno.
Isso me interessa muito. Isso significa que a modernização, essa
ideologia oficial modernizante etc., não funcionou, não deu certo. Nós
continuamos divididos em tudo. Até na política somos arcaicos. Você não
vê? Todos os dilemas de agora são de tipo oligárquico, coisas do século
18. As pessoas governam em nome de um passado residual que parasitou a
consciência delas, a identidade delas, mesmo do eleitorado. Não estou
dizendo dos políticos só, eles também.
O discurso moralizante de certa forma tentou desmerecer talvez uma tradição?
Ele desconheceu o que nós somos. Nossos políticos desconhecem o que somos.
O que nós somos, alguns elementos, por exemplo?
Somos arcaicos, sem ser propriamente uma tradição, como na Inglaterra
ou na França ou na Itália. Somos vítimas do que sobrou dos vários
passados que tivemos. Pensamos às vezes como alguém lá do século 17. E
mascando chiclé, tomando coca-cola e comendo hambúrguer no McDonald''. É
uma colagem. Somos uma colagem de visões de mundo, de orientação, nós
não vamos chegar a lugar nenhum com isso. Essa é a verdade.
Somos retalhos, um pensamento retalhado, figuras retalhadas.
Mas com isso não se forma uma colcha, um dia? Ou com que se forma essa
colcha? Ou se não se forma, também?
Colcha nós já somos. Somos uma colcha de retalhos.
Mas cobre, não é?
Só cobre. Contra o frio etc. Mas você não tira um projeto de nação de
uma fragmentação tão grande. Nós não temos um rumo. Porque nossa
modernização é superficial, historicamente. Começa com a República superficial. A República foi um chute. Se você examina os detalhes do dia da Proclamação, como a coisa foi, tem vontade de chorar. Não proclamaram República nenhuma. Não foi nem sequer um golpe de Estado. Uma coisa de um primarismo espantoso. Aquela imagem do Deodoro
[da Fonseca] com a espada proclamando, isso não aconteceu. Eles [os
proclamadores] não souberam lidar com padrões de civilidade [a começar
do tratamento impróprio e desumano dado à família real, segundo
Martins]. É uma República incivilizada a proclamada dia 15 de novembro.
Uma coisa de improvisação.
O Brasil [da época] era muito Rio de Janeiro, o
governo estava ali. E as províncias estavam nas mãos das oligarquias,
não tinham nada a ver com nada. O que aconteceu? Proclamaram a
República, botaram uma infraestrutura em cima, formalmente republicana,
mas o resto do país continuou igual. O clientelismo político, troca de
favores, isso até hoje.
E houve Canudos [Guerra de Canudos, 1896-97].
Canudos foi um brutal equívoco. Não tinha revolução monarquista nenhuma lá. A monarquia de Canudos
era a monarquia do divino espírito santo. Vem do joaquimismo, que não
tem nada a ver com a monarquia política, nada, nada, nada. Gioacchino [ou Joaquim] da Fiore,
século 12, na Itália, faz uma releitura da Bíblia, ele é um monge
cisterciense e descobre que é possível encontrar na estrutura da Bíblia
não dois testamentos, mas três. O Velho Testamento, o Novo e o
Novíssimo. Cada testamento corresponde a um ente da Santíssima Trindade:
o Pai, o Filho e o Espírito Santo. E cada testamento corresponde a uma
etapa da história. Há uma concepção difundida na sociologia de que Gioacchino da Fiore
foi, na verdade, o homem que estabeleceu as bases da moderna concepção
de história. Quer dizer, o mundo não é parado. O tempo do Pai, o tempo
do Filho, o tempo do Espírito Santo, cada tempo vai se esgotando, tem a
sua finitude e vem um novo tempo.
E o tempo do Espírito Santo, que era o tempo iminente no fim do
século 19, havia muita crença quanto ao fim do milênio, se está chegando
ao último século do milênio e aquele pavor, porque vai vir um
cataclisma e vai surgir uma nova era, que é a era do Espírito Santo. Que
é uma era de Justiça, paz, fartura, alegria. Existe também uma tradição
popular joaquimista, que é a das folias do divino, a festa do divino. Canudos
é uma grande festa do divino, não tem nada a ver com política.
Coincidiu de acabar a monarquia e o povo estar reunido lá. Eram grupos
que faziam caridade, reconstruíam igrejas em ruínas, que era o caso de Canudos, e vão se aglomerando e se estabelecendo lá.
Queria pegar um pouco do modo como o senhor trabalha, que é a
coisa da pesquisa de campo, que eu, como jornalista, também sempre
brigo por isso, [contra] o jornalismo de gabinete, ou só o estudo pelo
estudo. O senhor poderia falar um pouquinho da obrigatoriedade de estar
no lugar, de conviver com as pessoas?
Os livros são importantes como referências teóricas, eventualmente
como referências equivocadas. Porque um dos trabalhos da ciência é fazer
a crítica do conhecimento, as inconsistências dele. O campo [de
pesquisa] pode ser o arquivo histórico, ou pode ser o campo mesmo, você
vai para o mato.
Eu fiz pesquisa na Amazônia. Quando começou a
entrada na Amazônia, com o regime militar, a frente de expansão com
muito dinheiro do governo, os incentivos fiscais etc., percebi que ia
arrebentar com ela. Onde estavam populações indígenas nem sequer
contatadas. A última fronteira do mundo. Larguei tudo aqui e fui para
lá, em 1975. Quase sem dinheiro. Resolvi estudar primeiro os fluxos
migratórios do pessoal que se deslocava, dia e noite tinha gente saindo
do Paraná, de Santa Catarina, Minas Gerais, Espírito Santo em direção à
Amazônia. Era um êxodo de populações rurais indo para lá. Faço a
pesquisa cobrindo sozinho uma área que ia da pré-Amazônia maranhense ao
Acre e Rondônia. Eram alguns lugares, uma pesquisa amostral. E aí
escrevo o livro "Fronteira'. Ali era o limite da humanidade, ela acabava
ali.
Desde a sua ida à Amazônia, algumas questões se exacerbaram,
como a exploração econômica pelos fazendeiros, a madeira etc. Como o
senhor observa a Amazônia, hoje?
Mudou o grau de interferência e de problema. Houve um enorme
desmatamento, a questão da madeira ilegalmente extraída. É um lugar de
pirataria. Falar que isso é capitalismo é bobagem. Capitalismo é uma
coisa completamente diferente, é racional. Não tem como haver um
capitalismo irracional, que destrói as bases da sua própria existência.
Isso não é capitalismo, é burrice.
O que nós temos hoje na Amazônia, numa escala muito grande, e
eventualmente em outros lugares do Brasil, é uma economia burra, que
destrói aquilo que é fundamental para que ela se desenvolva e progrida.
Então você tem trabalho escravo (já tinha naquela época), que é absurdo. Tem a devastação da mata, que é outro absurdo.
Não é necessário destruir o país em nome do lucro de grupos
minoritários que nem sequer são grupos empresariais. Você pode preservar
a Amazônia e fazer desenvolvimento econômico.
As nações indígenas são bibliotecas eruditas sobre o que é o mundo
natural, e esse pessoal está sendo tratado como bicho. Você tem um
índice de suicídios entre os Kaoiwá que é absurdo, uma
autoimolação causada pelo branco. Nós estamos acabando com essa nossa
biblioteca. O Brasil não teve uma biblioteca nacional, a Biblioteca Nacional foi aquela que Dom João 6º
deixou aqui no Brasil, mas nacional mesmo não tem nenhuma. As
populações indígenas são nossa Biblioteca Nacional, dessa parte da
informação etnológica e cultural. A informação está aqui. Porque o que
ainda há para descobrir, na área de humanas, está no Brasil,
eventualmente em algum outro país, mas aqui em abundância.
O senhor acha que acontece um desperdício, uma depreciação da
nossa própria condição, tem a coisa da ideologia, que deve atuar de uma
forma, aquilo que vem de fora é melhor, as ideias que estão aí
circulando mais. Não tem ainda esse componente meio Nelson Rodrigues, da
alma nacional e os vira-latas...
Nós temos ainda mentalidade do colonizado. A gente gosta de ser
colonizado. E não é esquerda e direita, veja aqui, os jovens sonham em
ir para os Estados Unidos, a França etc. e passam a ver o Brasil a
partir de uma perspectiva que é totalmente estranha ao que somos, em vez
de construir uma interpretação do Brasil a partir do que temos para
dizer. Claro que tem uma força lá de fora, os pesquisadores
estrangeiros, mesmo os brasilianistas, que nos veem nessa perspectiva.
Não estou dando uma de patriota bobo, que não sabe o que está falando.
Quer dizer, nós estamos jogando fora uma fonte preciosa de informação
sobre um mundo novo e alternativo que está contido na nossa realidade e
nós não sabemos expor.
Aí talvez estivesse a liga da colcha de retalhos.
Mas não liga, esse é o problema. Henri Lefebvre, que
é um sociólogo francês que já morreu [1901-91, um dos grandes mestres
de Martins], é mais criativo nesse sentido. Ele fala que a sociedade é
dominada por poderes e a única forma de enfrentar os poderes de maneira
sociologicamente criativa é tentar ver como se dá a coalizão dos
resíduos, como eles se juntam historicamente, se num certo momento
promovem aquele susto que vai despertar nossa consciência: "Pô, nós
podemos construir um país". Mas a gente não tem mediações. A esquerda
brasileira é muito deficiente de formação teórica. E a direita é
maliciosa, voraz e incompetente, também não vai levar ninguém a lugar
nenhum.
Nós não temos mais grandes referências teóricas para sair desse
buraco. A universidade não está fazendo isso. Foi possuída por grupos
ideológicos, mas de fato existe veto a você ir numa certa linha de
interpretação.
Essa tua postura talvez mais independente, tem uma coisa
periférica, a vantagem de ser periférico, o senhor já comentou isso
algumas vezes.
A margem. A grande mina de inspiração e de informação para se entender um país como o Brasil. A margem.
A margem significa que existe um centro...
O centro foi possuído pelo poder. Diria, pelos poderes. Porque tem
não só o poder da República, mas também os poderzinhos, que são os
pequenos grupos que querem mandar nos outros, que são donos da verdade,
do politicamente correto. Não sabem nada sobre o Brasil, mas são os
donos. Então o poder está no centro. E o centro não é o geográfico só, é
um centro de poder. É por isso que faço pesquisa na Amazônia, no
subúrbio, fiz uma trilogia sobre o subúrbio, porque o subúrbio fala
muito mais sobre as nossas contradições e dificuldades e as nossas
possibilidades, que é o que me preocupa, do que o centro, porque o
centro foi tomado e ocupado pelos poderios. E portanto não é daí que vai
surgir uma informação. O subúrbio é muito mais criativo historicamente
do que o centro.
E Brasília? É curioso, porque não tem muro lá. E como pôde
ser dominada desse jeito? Porque é uma visão de futuro muito
interessante proposta ali. Parece que os seres que ali habitam e
habitaram não eram os convidados daquele lugar.
Quem planejou Brasília, Lúcio Costa e o [Oscar] Niemeyer,
não levaram em conta que os muros estão nas estruturas profundas do
pensamento brasileiro. Você pode fazer a cidade mais aberta que quiser e
vai ter muro lá. As pessoas levam o muro na cabeça delas. Nós
brasileiros somos incapazes de viver sem muros. Nós fomos criados nas
senzalas, nas reduções, aí é que se formou o caráter nacional
brasileiro. Mesmo quem veio de famílias estrangeiras depois chegou aqui e
encontrou os muros feitos, os muros ideológicos, culturais. Abrir as
paredes implica uma revolução. Fernando Henrique Cardoso disse num trabalho de 1970, um livro coletivo que foi publicado pelo Paulo Sérgio Pinheiro: o grande problema do Brasil é que o Brasil não fez uma revolução da independência. É o único país das Américas.
A independência do Brasil foi feita pelo herdeiro do rei de Portugal,
foi feita pelo Estado. O Estado fez a independência do Brasil. E depois
criou a sociedade, diferentemente de outros países. Você pensa no
modelo da Revolução Francesa, é a sociedade que criou o Estado. No México, a sociedade criou o Estado, nos Estados Unidos. No Brasil
o Estado criou a sociedade. Essa é a cruz que nós temos de carregar. Se
a gente não se der conta disso e não criar [condições]... Eu não estou
falando de revolução de sair dando tiro, matando gente, mas a grande
revolução que revoluciona as mentalidades, e isso não está sendo feito. A
escola não prepara para isso. A universidade não está preparando
quadros para o pensamento crítico, porque sem pensamento crítico não se
faz revolução. Uma revolução implica quebrar as estruturas
interpretativas para poder descobrir onde está a saída. Isso é
pensamento crítico. Esta poderia ser a hora, não vai ser.
Por quê?
Porque não temos as mediações. Os partidos são incompetentes e não
conseguem perceber isso. Escrevem-se e publicam-se livros sobre isso,
ninguém lê, mil pessoas [leem], isso não é suficiente. E o que é uma
grande pena: se você abre a boca, as pessoas te censuram imediatamente.
Eu passei a sofrer, nos últimos anos, o cala-boca, aqui mesmo dentro da universidade. Fui dar uma aula magna, a convite da Faculdade de Filosofia, a minha boca foi calada
por um grupo que reivindicava que eu não fizesse a minha conferência e
falasse sobre cotas raciais. Só que eu não poderia falar sobre cotas
raciais se não fizesse críticas à ideologia subjacente, e nunca faria a
conferência por imposição de um grupo que me dava um cala-boca e acusava
todo mundo.
Mas não aconteceu só aqui [na USP]. Fui fazer uma palestra em São Caetano
[do Sul, onde o próprio Martins nasceu, no ABC paulista] sobre um
assunto totalmente diferente, idem, tinha um grupo lá em nome da
educação impedindo que eu falasse. "Então vocês estão impedindo que a
educação fale", disse. Agora, em Rio Grande [da Serra, Grande São Paulo], também não foi possível fazer palestra.
Mas por que o senhor ficou identificado como alguém contrário [a lutas sociais]? O senhor nunca se opôs a nada.
Eles não me identificam, não sabem quem eu sou. É uma aversão ao
pensamento crítico. Eu não posso ser crítico em relação às suas ideias,
ou às ideias dele, nem você pode ser em relação às minhas ideias. Temos
de ser críticos em relação às ideias em geral. As suas, as minhas. Onde é
que estão os nossos impasses? Quando é que a gente empacou e não
consegue ir para a frente? De onde vêm essas referências que nos
aprisionaram num imobilismo brutal? Quando vai, vai num episódio, não
vai em outras coisas. É isso que a gente tem de saber.
Outros professores têm tido problemas na universidade. Essa coisa de
calar a boca do professor, se ele não fizer o discurso politicamente
correto, o que em geral não tem nada a ver com ciência, tem a ver com
ideologia. Eu nunca vivi isso, nem durante a ditadura.
O senhor estudou muitos movimentos sociais, a gente vê hoje
movimentos novamente pela igualdade de gênero, as mulheres
protagonistas, o movimento negro, afrodescendente também falando mais ou
querendo seu espaço e o senhor pontuou alguns episódios com esses
movimentos reagindo. De que forma poderia dizer, "Olha, gente, eu não
sou contra, nós não somos contrários"?
É muito positivo o surgimento de todos esses movimentos dos chamados
grupos particulares, que não são uma classe social, que começam dizendo,
"Nós existimos, nós estamos aqui". As populações indígenas inauguraram
isso no Brasil, nos anos 1970, durante a ditadura. E fizeram isso com um
jeito absolutamente lindo e eficiente. Nos anos 1970 houve a revolta
dos índios Kaingang. Os Kaingang estão
distribuídos por uma imensa área que vai de São Paulo até a Argentina.
Eles descobriram que o território deles era arrendado pela Funai [Fundação Nacional do Índio] para os fazendeiros e eles, Kaingang, eram empregados dos fazendeiros.
Mas a terra era deles pela Constituição. Eles resolvem se levantar,
com porrete, com enxada, com o que eles tinham. Primeiro, agradecem as
professoras que a Funai tinha enviado: "Obrigado, vocês
estão dispensadas. Daqui para a frente vamos ter professores Kaingang
nas escolas Kaingang. As crianças têm que aprender a língua Kaingang,
pensamento Kaingang".
Depois botaram todos os fazendeiros e sitiantes para fora, que é quando nasce o MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra]. Originalmente, é um grupo que teve de cair fora, expulso pelos Kaingang.
E a coisa se espalhou por Santa Catarina, Paraná, só em São Paulo não
teve. E eles conseguiram se modernizar em termos de economia agrícola,
trabalhar com máquinas etc. A Universidade Federal do Rio Grande do Sul
é a única que tem um programa interessante de cotas, porque faz o
vestibular separado para os índios. Os índios estão mandando os seus
filhos para a universidade porque querem médicos, engenheiros,
professores Kaingang, que dialoguem com a cultura
deles, os costumes agrícolas, a medicina deles. Vai me dizer que a
medicina dos laboratórios é necessariamente muito melhor do que o
benzimento de um pajé? Hoje, os jovens Kaingang entram na universidade por uma porta para eles e vão fazer os mesmos cursos que os outros estão fazendo.
As figuras que o senhor encontrou, algumas figuras que foram
decisivas para dar aquela abertura para o mundo, o senhor consegue
lembrar quem foi? Esses encontros?
Fiz pesquisas com crianças na Amazônia. Quando
estava conversando com as pessoas [adultas], me dei conta de que as
crianças, porque criança não opina, não dá palpite, isso é muito comum
na nossa sociedade, notei que elas ficavam observando e ouvindo tudo.
Então resolvi fazer uma parte da pesquisa com elas. Só crianças. Nas
áreas em que havia muita violência contra os pais delas. Essas crianças
me revelaram o que era a Amazônia, o restante também ajudou, mas as
crianças... A criança é também uma analisadora da realidade, a gente não
valoriza isso, mas ela é. E elas tinham uma interpretação.
Uma das pessoas que falou comigo logo no começo, quando soube que eu estava fazendo pesquisa [na Amazônia], é um sujeito aí de São Bernardo [do Campo, no ABC paulista] chamado Lula [Luiz Inácio Lula da Silva]. Ele soube, por meio de uma conhecida dele, e eu não conhecia o Lula, apesar de eu ser do ABC também [nasceu em São Caetano, em 1938]. Que ele gostaria de conversar comigo. Não era político ainda, não tinha o PT, tinha o sindicato [dos Metalúrgicos do ABC, do qual foi presidente nos anos 1970]. Eu fui e passamos uma tarde inteirinha.
Como foi?
Foi interessantíssimo. Ele era o aluno que eu gostaria de ter tido
aqui na universidade. Muito inteligente, presta uma atenção incrível,
ouve e só faz as perguntas quando as dúvidas se apresentam. Era o aluno
ideal para uma universidade. Passamos uma tarde inteira tomando café,
saí verde de lá. Conversamos numa casa paroquial, não foi nem no
sindicato, nada disso. Na casa do padre, que era amigo dele, em São Bernardo. Uma tarde inteirinha conversando.
O que ele quis saber?
O que estava acontecendo no campo e especialmente na Amazônia. Ele não sabia nada sobre a Amazônia. [O encontro] Foi tão genuíno que ele sugeriu para a CUT [Central Única dos Trabalhadores]: "Vocês têm que conversar com esse cara". E a CUT me chamou. Passei um dia inteiro dando curso sobre os problemas do campo, não só da Amazônia, as dificuldades e extensões dos conflitos.
O Lula é um homem da cultura oral. É um grande
ouvinte e tem uma senhora memória. É o que eu digo: é o aluno que queria
ter na sala de aula. Eu tive excelentes alunos, não estou subestimando.
Hoje vários são professores universitários e grandes pesquisadores. Mas
ele é o aluno que faltou na universidade, o tipo do aluno, de
mentalidade, o tipo de preocupação, a competência para ouvir e entender.
Isso eu tenho bem presente.
Geralmente tentam classificar o Lula: "Ah, nunca se
interessou pela educação". Ou: "Nunca cuidou da sua formação". Esse tipo
de molde que tentam colocar serve para ele?
É injusto, isso. Essa coisa de chamar o Lula de
ignorante, analfabeto, não é verdade. Ele disse uma vez que tinha
dificuldade para ler, ele ficava muito cansado. Isso é próprio do aluno
excepcional, no sentido de excepcionalmente bom, quer dizer, com QI
[quociente de inteligência] mais alto que a média. Esses alunos sempre
têm dificuldades de leitura. Sempre têm. Eles não têm paciência. Porque o
professor está aqui e eles já estão lá adiante. Eles conseguem entender
o código da informação que você está dando. O Lula é desse tipo.
O senhor quer dizer que ele é um aluno de altas capacidades?
Sim. Ele é. O QI dele é muito acima do QI do PT. Por isso, ele está num ponto, assim em termos de quando a opinião pública se manifesta, lá adiante e o PT está aqui atrás. O PT não entendeu o Brasil como o Lula entende. Eu compartilho com os desembargadores lá do Rio Grande do Sul
[ que condenaram Lula em segunda instância, no caso do tríplex em
Guarujá (SP) ], quando um deles chamou a atenção para isso. Quer dizer,
num certo momento, o Lula se desviou. Mas não foi o Lula
que se desviou, foi o poder que o desviou. O poder é maléfico, o poder é
oportunista, não é compatível com grandes projetos de nação, projetos
intelectuais etc. Foi uma pena, uma grande perda para o Brasil.
E a Dilma foi o grande equívoco do Lula. Ela não era mulher para aquela função. Não estou dizendo que ela não devesse e tal, mas não era ela. Ela foi um calço que o PT colocou no processo político para segurar o lugar para o Lula voltar. Na reeleição dela, o Lula
já intuiu que havia mais gente interessada no poder e não estava
interessada nele no poder. Que foi isso que aconteceu [com o
impeachment]. A voracidade de poder é nociva a um país que está em
trânsito, como o nosso. Um país que está tentando chegar a algum lugar.
Dois governos Lula, depois ele fez a sucessora e talvez já
preparasse uma volta. A Dilma manteve mais ou menos o mesmo sistema,
algumas figuras que permaneceram, algumas coisas que vimos observando.
Essa tentativa de permanência sempre, é positiva para o país?
Não, não é. O Brasil tem que aprender a reconhecer a importância democrática da alternância de poder. Nós não temos isso. O Fernando Henrique teve. Eu observei atentamente o processo político brasileiro desde que Fernando Henrique foi eleito.
Não só o Fernando Henrique, mas também a Ruth
[Cardoso (1930-2008), antropóloga, professora da USP e mulher de FHC],
que tinha grande sensibilidade antropológica para o processo político.
Ela percebeu isso. Ela dá um tratamento para a Marisa
[Marisa Letícia Lula da Silva (1950-2017), primeira-dama nos governos
Lula] que uma rainha dá para a outra. Foi um gesto de grande respeito
por ela.
"Esse messias não cola. Deus não está disponível para ser usurpado. É
um equívoco, das igrejas que o estão apoiando,
acho ruim essa coisa de
igreja se meter
em política partidária, não deveria."
Nas eleições presidenciais de agora, como o sr. vê a pré-candidatura de Geraldo Alckmin (PSDB)?
O Alckmin cometeu erros enormes. O primeiro foi entrar na guerra contra Serra
[José Serra, hoje senador por São Paulo]. Os dois deveriam ter
compreendido que tinham que fazer uma aliança aqui. Eles não precisam de
inimigos aqui. Demorou muito [para um acordo].
Depois, cometeu o erro de lançar o [João] Doria para a prefeitura. Doria não é do ramo. E eles não perceberam que a votação do Doria, eleito em primeiro turno [prefeito], não foi do Doria, foi contra o PT. O eleitor brasileiro faz muito esse tipo de coisa por falta de esquemas de autodefesa. Aí o Doria
acreditou que era o escolhido da população. Por um desses milagres
inexplicáveis, ele seria o rebento, o ungido, o escolhido do povo. Ele
vai ver agora, se for candidato a alguma coisa. Na verdade, ele se
contrapôs ao Alckmin e o enfraqueceu. Foi esse o erro do Alckmin. Agora, o eleitorado mudou, cada geração é uma geração, e esses erros vão pesar negativamente. Mas pode ser que Alckmin tenha chance.
O senhor tem estudo bastante bom sobre misticismo na
política, do poder, os messias. A gente tem um "messias" agora até no
nome, Jair Messias Bolsonaro [PSC-RJ].
Esse messias não cola. Deus não está disponível para ser usurpado. É
um equívoco, das igrejas que o estão apoiando, acho ruim essa coisa de
igreja se meter em política partidária, não deveria. Bolsonaro não percebeu que não representa nada. Ele representa a caricatura do autoritarismo.
Karl Marx [estudioso crítico do capitalismo, base de preceitos do comunismo] escreveu um livro que se chama "O 18 de Brumário de Luís Bonaparte". O Luís Bonaparte era sobrinho do Napoleão querendo imitar Napoleão. Marx
diz: "A história não se repete senão como caricatura". Esse aí é a
caricatura da ditadura militar. E general não bate continência para
sargento [Bolsonaro é capitão reformado do Exército, de patente mais
baixa, portanto]. Esse é um detalhe importantíssimo.
Para encerrar, existe algum princípio condutor, algo que
pudéssemos visualizar na história brasileira, alguma coisa com que a
gente pudesse contar nossa história do início ao fim? Ou esse fio não
existiu ainda? Uma ausência, uma presença?
Existe uma coisa que é muito nossa e muito mal trabalhada, que é uma
espécie de obsessão pela esperança. O brasileiro pode estar na pior, ele
nem usa essa palavra esperança, mas ele não abre mão da convicção de
que amanhã vai ser diferente de hoje. A aposta que os grupos populares
fizeram na educação, desde o fim do século 19, é uma coisa
surpreendente. A grande luta do ABC, que é o ABC operário, não foi
sindical, não foi por salário, foi por escola. Eu fui filho dessa
escola.
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Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/575995-nao-foi-lula-que-se-desviou-foi-o-poder-que-o-mudou-diz-o-sociologo-jose-de-souza-martins 12/02/2018
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