O Expresso republica uma entrevista à escritora Natália Nunes, publicada originalmente a 13 de junho de 1998. A autora morreu esta terça-feira aos 96 anos
ESCRITORA
com mais de 20 títulos publicados, nasceu em Lisboa em 1921. Loucos
diz-se terem sido esses anos vividos depois da I Grande Guerra; mas
contidos continuavam a ser no país provinciano que era Portugal. Portas
adentro, o século XIX teimava em marcar a moral e os costumes. Assim
cresceu Natália Nunes, a mais velha de quatro irmãos, filhos de gente da
pequena burguesia. Licenciada em Histórico-Filosóficas, bibliotecária,
foi pela escrita que deu visibilidade ao nome. Por um físico e poeta,
Rómulo de Carvalho (António Gedeão), se enamorou mais do que se
apaixonou. Mulher de emoções controladas, jamais se permitiu «amar
perdidamente». Mais de meio século de vida partilhou com o homem que um
dia conheceu na Biblioteca Nacional e lhe ofereceu um lápis quando o
bico do dela se partira. Pela ausência dele sofre hoje do desajustamento
dos dias e dos lugares: «Por vezes, na rua, chego a sentir pânico de
estar sozinha.» Diz «profundamente religiosa», com um «sentido
metafísico da vida». Aos 76 anos, é ainda pela escrita que Natália
sublima as perdas; os lutos.
EXPRESSO - Nasceu numa família republicana?
NATÁLIA
NUNES - O meu pai era republicano. A minha mãe era ainda jovem quando
se deu a queda da monarquia.Ficou-lhe uma espécie de saudosismo da
mitologia, do folclore da monarquia. O assassinato do rei e do príncipe
foi um acto tão violento que impressionou muitas pessoas. A minha mãe
viveu tudo aquilo tão intensamente, a ponto de lhe ter preenchido a
existência.
EXP. - A que estrato social pertencia?
N.N.
- Muito pequena burguesia. O meu pai, que era da província, vinha de
gente que vivia do trabalho, pequenos agricultores e artesãos, que
migrara da Beira Alta para a cidade. A minha mãe já era lisboeta de
segunda geração.
EXP. - Era gente letrada?
N.N. - A
minha mãe era uma pessoa muito inteligente e senhora de um vocabulário
muito rico, ainda que tivesse feito apenas a instrução primária.
EXP. - E o pai?
N.N.
- Gostava muito de ler. Sabia grande parte dos Lusíadas, bem como peças
do Marcelino Mesquita, de cor! Era um frequentador de ópera.
Infelizmente, foi atingido pela tuberculose, o que lhe limitou a vida.
EXP. - Economicamente, tiveram uma vida de dinheiro contado?
N.N.
- Sim, mas sem grandes privações. Os meus pais tiveram quatro filhos:
duas raparigas e dois rapazes. Eu e a minha irmã tirámos cursos
superiores porque tínhamos um tio, muito rico, que se dispôs a ajudar,
sobretudo as sobrinhas. Os meus pais pagaram os estudos dos rapazes. O
meu irmão mais velho suicidou-se, e o António Alfredo (ilustrador,
pintor e arquitecto de cena) andou nas Belas-Artes, mas creio que nem
acabou o curso, porque se envolveu na política, na altura do MUD
Juvenil, e foi expulso juntamente com o Dias Coelho, o escultor
comunista que seria morto pela PIDE.
EXP. - Cresceu com o Estado Novo e com os retratos de Salazar e Carmona nas salas de aulas. Que pensava de Salazar?
N.N.
- Quando era muito jovem, na idade de criar heróis, tive uma grande
admiração por Salazar. Achava-o muito importante e nada feio. Tive mesmo
o retrato dele à cabeceira. Creio que tive por ele um «amorzinho»
platónico. Depois, comecei a ouvir as críticas do meu pai ao regime e as
fúrias dele contra Salazar...
EXP. - E o «amorzinho» feneceu com a consciencialização política?
N.N.
- Eu não sou nem nunca fui política mas sempre defendi ideais sociais.
Lembro-me, ainda muito nova, de pensar que todos os prédios deveriam ter
caixas do correio para os carteiros não terem de subir escadas e os
telhados ter beirais que protegessem os operários.
EXP. - O liceu que frequentou, o Maria Amália, tinha fama de ser extremamente repressivo...
N.N.
- Não podemos esquecer que estávamos em pleno Estado Novo. A directora,
a doutora Maria Guardiola, era uma personalidade extraordinária.
EXP. - As regras no liceu eram muito rígidas?
N.N.
- Comparando com o que se passa hoje nos liceus, as pessoas diriam que a
disciplina no Maria Amália era pior do que a dos conventos. Não era.
Quero dizer que apreciava a disciplina mas sem amordaçar a minha
rebelião.
EXP. - No Verão, não podiam andar sem meias. E não podiam usar maquilhagem.
N.N.
- Nos finais dos anos trinta, as raparigas não andavam de pernas nuas.
Em adolescentes, usavam meias até aos joelhos e depois meias compridas.
Eu comecei a pôr «baton» e «rouge» aos treze anos e nunca deixei, mesmo
quando era proibido, de ir maquilhada para o liceu.
EXP. - Os rapazes podiam entrar no liceu?
N.N.
- Nem pensar. Se um homem transpusesse o segundo portão da entrada, era
o pânico. Ainda me lembro de o pai de uma aluna o ter feito. Foi tal o
pandemónio que meteu até o chefe do pessoal menor. Apenas o carpinteiro
do liceu podia ultrapassar a barreira do segundo portão.
EXP. - O liceu era um «ghetto» de mulheres...
N.N. - Sem dúvida.
EXP. - Quantas alunas andavam no Maria Amália?
N.N. - Na altura do meu segundo ano, havia mil e duzentas.
EXP. - Foi educada a acatar o conceito de virgindade, que marcou a vida de várias gerações de mulheres...
N.N.
- Era um conceito social tanto como moral. Não o respeitar
representava, além de uma transgressão social violenta, um pecado. O fim
da mulher era casar e, para o fazer, tinha de ser virgem. Nos anos 50
(eu vivia na altura em Coimbra, com o meu marido), a costureira que ia
trabalhar lá a casa contou-me, com um certo tom de escândalo, que uma
estudante tinha sido apanhada a dar um beijo ao namorado: «Aquela já
está queimada!», comentava, «já está queimada!».
EXP. - Casar de branco, de véu e flor de laranjeira era uma espécie de «certificado» de virgindade. Seguiu a tradição?
N.N.
- Casei-me em 1945 e, para marcar bem a minha posição contra os
convencionalismos, levei um vestido curto, verde-claro. Os sapatos,
chapéu e flores, é que eram brancos.
EXP. - Para designar
uma rapariga que tivesse perdido a virgindade, havia expressões como:
«enganada», «desflorada», «dar uma cabeçada». Recorda-se?
N.N. -
Recordo, mas o termo «dar uma cabeçada» era mais aplicado às mulheres
casadas que prevaricavam. A expressão «enganada» era mais usada nos
meios rurais, nas aldeias. O que tinha um certo fundo de verdade. Dentro
da mesma moral social e religiosa, o próprio rapaz, para seduzir a
rapariga, prometia-lhe casamento. Se ela cedia, corria sérios riscos de
ser abandonada pelo sedutor, que entendia a entrega como uma prova de
leviandade. Não resistira à tentação; não era séria. Não servia para
esposa.
EXP. - As mulheres eram também divididas em «sérias» e não «sérias»...
N.N.
- A moral vigente era tão rígida que, em Coimbra, uma senhora da alta
sociedade, mulher de um catedrático, sempre que o marido ia a um
congresso, partia para um retiro.
EXP. - Aceitou a regra ou subverteu-a?
N.N. - Nunca a aceitei. Sempre me revoltou.
EXP. - Teve relações sexuais antes do casamento? A família soube?
N.N.
- Tive apenas com o meu futuro marido. A família não sei se soube. A
minha mãe, que era muito esperta e atenta, acho que descobriu.
EXP. - Teve uma filha. Conversou com ela sobre sexualidade?
N.N.
- Tive conversas esporádicas. A minha filha foi criada com muita
liberdade, não foi reprimida. O pai, que era bastante puritano, não
concordava com muitas coisas, mas, como era muito tolerante, acabava por
aceitar.
EXP. - Quando era rapariga, as «meninas» saíam sozinhas com amigas? E, à noite, podiam sair em grupo?
N.N. - As meninas só podiam sair acompanhadas pelos pais ou por um irmão mais velho. Tinham de ir sempre com um «chaperon».
EXP. - Como eram os serões da sua adolescência?
N.N.
- Como o meu pai era doente, a minha casa era muito triste; demasiado
sossegada. Deitávamo-nos cedo, pelas nove horas. Enquanto andei no
liceu, punha o despertador para as quatro da manhã, e era a essa hora
que estudava.
EXP. - Os domingos, o dia de descanso antes da institucionalização do fim-de-semana, como eram passados?
N.N.
- Por vezes, ia a casa de uma amiga, filha de um conterrâneo do meu
pai. Outras vezes ia com a família em excursão até à Baixa. Íamos com o
meu pai aos museus e também ao Campo Grande para andarmos de bicicleta.
No entanto, ao contrário da minha adolescência, a minha infância, apesar
da doença do meu pai, foi uma época extraordinária. Na altura, a
tuberculose era endémica e ele não lhe escapou. A cura processava-se no
sanatório do Caramulo. E foi para lá que o mandaram. A terra dele ficava
muito perto e, como havia a casa de família, fomos todos viver para lá.
O meu pai, em vez de ficar internado, privado da nossa companhia, só
tinha de se deslocar ao sanatório para tratamento.
EXP. - Como foi o encontro com os parentes da província?
N.N.
- A parentela do meu pai ia dos mais ricos aos muito pobres. As
«senhoras», como se dizia das mulheres das famílias mais ricas e
conceituadas, tinham lugar cativo na igreja. Naquela época a Igreja
estava dividida em escalões sociais.
EXP. - As «senhoras» da família aceitavam que a mulher do parente não fosse à missa?
N.N.
- Não aceitavam isso, como também não lhe perdoavam ela sair em cabelo.
No final dos anos 20, as senhoras não andavam sem chapéu. E as nossas
parentes abastadas jamais saíam de casa de cabeça descoberta. Ora, a
minha mãe entendia que numa pequena vila de província era pelo menos
pretensioso usar chapéu em deslocações que não ultrapassavam os 20
metros.
EXP. - Apercebia-se desses desajustamentos familiares?
N.N.
- Não tinha consciência destas coisas, nem sequer do perigo de ficar
órfã de pai. Eu vivia num círculo muito interessante. A casa da família
ficava dentro do adro da igreja e fora construída no antigo passal
(terreno anexo à residência paroquial). Tínhamos assim a casa, a igreja e
a escola. Estávamos no centro de tudo... E, depois, o convívio com o
meu pai. Ele explicava-nos tudo: os nomes das plantas, das árvores, dos
pássaros. Quando melhorou e começou a ir à caça, eu ia com ele. A
relação com o meu pai foi tão importante que criou em mim o desejo de
ter sempre um pai. Julgo que ter escolhido casar com um homem mais velho
tenha a ver com a imagem que eu retive do meu pai...
EXP. - Tinham automóvel?
N.N. - Não tínhamos. Quando íamos a Viseu ou a Aveiro, viajávamos de comboio.
EXP. - As deslocações eram complicadas?
N.N.
- As partidas de Lisboa para Aveiro eram verdadeiras epopeias.
Partíamos às dez da noite para chegarmos no dia seguinte à uma da tarde.
Treze horas de viagem. Antes da partida havia que cumprir o ritual do
banho: uma imposição da minha mãe. Mesmo quando saíamos de madrugada, as
crianças tinham de ir com o banho tomado! E o trabalhão que isso lhe
dava; aquecer a água em máquinas a petróleo...
EXP. - Tinham quarto de banho com banheira?
N.N.
- Não tínhamos quarto de banho, e as banheiras, tanto em Lisboa como na
terra do meu pai, eram de folha, enormes, redondas e com um grande
bico. Eram iguais à da Luísa do Primo Basílio...
EXP. - Foi uma adolescente namoradeira?
N.N.
- Não. Tive um namorado com o qual me aproximei do mito do amor. Ele
era muito moreno, fascinou-me. Inventei o amor. É claro que o amor
existe mas, para mim, não tem propriamente a ver com os sentidos. O amor
é antes um estado de graça.
EXP. - Como namorava?
N.N. - À janela, do segundo andar para a rua, e por carta. Por vezes ele ia-me buscar ao liceu.
EXP. - O pretendente podia entrar em casa da pretendida?
N.N. - Só depois do «pedido».
EXP. - Os «atrevimentos» iam até onde?
N.N. - Aos beijos.
EXP. - Falar de sexo era tabu em sua casa?
N.N. - Não só na minha - em todas as famílias o assunto sexo era inabordável.
EXP. - O casamento era considerado sobretudo um estatuto socio-económico?
N.N. - Exactamente.
EXP. - Foi a paixão que a levou a casar com Rómulo de Carvalho?
N.N.
- Nunca pensei no casamento para constituir família e não me casei por
paixão. Não tenho paixões: tenho perseverança. Procuro ser na vida como
na escrita: racionalista.
EXP. - Então porque se casou?
N.N.
- Por encantamento. Fui seduzida pela personalidade dele. Na altura, eu
namorava com um jovem bonito, filho da famílias nobres, oficial da
marinha. Pois não hesitei em deixá-lo por um homem quinze anos mais
velho do que eu, divorciado e com um filho...
EXP. - Como se conheceram?
N.N.
- Andava no segundo ano da faculdade e precisava de ler um livro que
não tinha. Fui à Biblioteca Nacional, e à mesa onde me sentei estava um
senhor, mais velho, de fato e gravata. A certa altura, parti o bico do
lápis e ele ofereceu-me o lápis dele. Disse-lhe que não era preciso, que
tinha um apara-lápis comigo. Ele insistiu, e eu aceitei. Quando me
levantei para sair, ele levantou-se também e disse-me que me poderia
emprestar o referido livro e mo mandava a casa. Fiquei tão surpresa com a
oferta que achei por bem mostrar-lhe o meu bilhete de identidade.
Dei-lhe a morada.
EXP. - O livro foi o pretexto para o iniciar o namoro?
N.N. - Ele mandou-me o livro e ficámos a corresponder-nos.
EXP. - E, em casa, como reagiram os seus pais a tão generoso oferecimento?
N.N. - Com desconfiança. Acharam esquisito, muito esquisito.
EXP. - Não teve problemas quando souberam que o pretendente era divorciado e tinha um filho?
N.N.
- O meu pai não gostou, ficou muito aborrecido. O namoro continuou
durante dois anos e, como entretanto fizera 21 anos, era maior,
deixámo-nos de platonismos e passámos à prática; «adiantámo-nos», como
então também se dizia.
EXP. - Outra das preocupações da época era a preparação do enxoval das meninas. Preocupou-se com isso?
N.N.
- Fiz um enxoval, mas não no estilo das meninas que começavam aos 13
anos a bordar monogramas nas peças para o enxovalinho. Tratei da maior
parte do meu enxoval, mas como uma tarefa necessária.
EXP. - As despesas com a roupa de casa competiam aos pais da noiva?
N.N.
- Mandava a tradição que o bragal (roupas de casa) fosse da
responsabilidade dos pais da noiva. A compra das mobílias cabia ao
noivo...
EXP. - E os gastos com a boda?
N.N. - Aos
pais ou a parentes da noiva.A boda da minha irmã foi paga por uns tios
nossos, enquanto a minha foi da responsabilidade dos meus pais.
EXP. - Quando casou comprou frigorífico, esquentador, aspirador?
N.N. - Apenas comprei um esquentador.
EXP. - Sem frigorífico, como conservava os alimentos?
N.N.
- Estamos a falar do que acontecia há 40 anos. Como a maioria das
famílias não tinha frigorífico, na altura um objecto apenas acessível a
famílias abastadas ou com alguma modernidade, a comida guardava-se nos
armários com portas de rede - os mosquiteiros -, por causa das moscas.
Para a sopa não azedar, era fervida várias vezes e, no Verão, punha-se a
panela numa bacia com água, na varanda, para apanhar o relento da
noite.
EXP. - A inexistência do frigorífico obrigava à compra diária de alimentos frescos?
N.N.
- Não era bem assim. Nos anos 50 - eu casei em 1945 - tinha criada e
era ela que ia às compras. Em solteira havia ainda os vendedores à
porta. Às tantas passava a hortaliceira, a peixeira, a leiteira, o
padeiro. Ia-se ao talho, à mercearia. Até o jornal era atirado para as
janelas e varandas das casas. Como em frente do nosso prédio havia uma
carvoaria, bastava bater as palmas e lá aparecia o carvoeiro para
receber a encomenda gritada da janela para a rua. Passavam ainda as
raparigas dos limões e as vendedeiras de flores. Toda esta forma de
organização de vida se manteve até muito tarde.
EXP. - Tinha telefone, quando casou?
N.N.
- Não tinha. Em Coimbra também não tínhamos. Só quando viemos morar
para Lisboa, em 1957, é que mandámos instalar telefone em casa e
comprámos o primeiro frigorífico e aspirador...
EXP. - E automóvel.
N.N. - Não. Eu tive automóvel aos 40 anos, idade com que tirei a carta de condução.
EXP. - Só comprou aspirador nos finais da década de 50. Até essa data, como limpava o pó dos tapetes?
N.N.
- Depois da meia-noite - assim estava regulamentado pela Câmara -,
punham-se os tapetes na varanda e batiam-se com um batedor de vime até
sair todo o pó. Toda a gente fazia o mesmo. Na rua onde os meus pais
viviam havia um palacete de uma família muito rica, com muito pessoal,
e, periodicamente, as criadas batiam as carpetes, operação que durava às
tantas da madrugada.
EXP. - Nos anos 50 já tinha ferro eléctrico?
N.N.
- Nos primeiros anos de casada, ainda usei o ferro de carvão, que tinha
de ser constantemente «espevitado», como se dizia, e largava cinza e
pequenas faúlhas.
EXP. - Até aos anos 60 não havia pronto-a-vestir em Portugal. Onde fazia a roupa?
N.N.
- Ia à modista, mas havia quem fizesse a própria roupa, em casa, por
moldes. Quando eu era solteira, fazia os meus roupões e a minha roupa
interior: combinações, calcinhas, os toalhetes higiénicos (os
precedentes dos pensos higiénicos), e até me atrevi a fazer um
«soutien». Fazia também os chinelos de casa; comprava as solas de corda e
depois fazia a parte de cima em pano e, como remate, punha-lhes pompons
ou franjinhas. Depois de casar, mudei muitos colarinhos e punhos das
camisas do meu marido; remendei lençóis à máquina, aproveitei panos
usados que embainhava e serviam para limpar a loiça. Hoje a minha filha
não faz um pano da loiça. Compra tudo feito!
EXP. - Comprou televisão logo no início da emissões regulares?
N.N.
- Estive uns anos sem televisão e, mesmo depois do advento da cor,
estivemos muitos anos com o mesmo aparelho a preto-e-branco. Só quando
se estragou é comprámos outro então a cores.
EXP. - Que importância deu ao aparecimento da televisão?
N.N.
- Uma grande importância. Acho a televisão um evento extraordinário,
ainda que a mim, culturalmente, não me interesse muito. Prefiro ouvir
rádio e, sobretudo, ouvir música que eu escolha.
EXP. - Quanto ganhava um professor do ensino secundário?
N.N.
- Não me recordo do montante, mas sei que era muito pouco. Eu entrei
para a biblioteca da Escola Superior de Belas-Artes em 1958 e ganhava,
como segunda bibliotecária, três mil e duzentos escudos. Pois o meu
marido, como professor, ainda ganhava menos. Ganhávamos muito
pouco.Tínhamos de ter muito cuidado com os gastos.
EXP. - Com ordenados baixos e sem subsídios, como faziam férias?
N.N.
- No princípio de casados, o meu marido dava explicações de física, os
meus pais e o meu tio por vezes davam-nos umas ajudas monetárias, e
assim lá poupávamos alguma coisa para as férias. Quando me empreguei,
comecei também a fazer traduções; traduzi durante 11 anos. Houve alturas
que tinha de entregar mensalmente duzentas páginas traduzidas, o que
representava um enorme esforço. Como os proventos não davam para luxos,
passávamos alguns dias de férias em pensões económicas.
EXP.
- As diferenças sociais, na época, eram mais acentuadas. Havia a gente
«fina», de «boas famílias», os «bem nascidos», com «berço», e os outros,
a arraia miúda, os de condição «humilde». Conviveu com estes
preconceitos?
N.N. - Os meus pais não tinham esse tipo de
preconceitos. Mas, de facto, havia o hábito dessas designações. O termo
«boas famílias» aplicava-se a membros da alta burguesa, gente rica ou
gente, mesmo sem dinheiro, de origem fidalga. Depois havia as famílias
decentes, gente de trabalho, de bons costumes.
EXP. - Qual era a importância de ter um curso superior? Representava uma promoção social?
N.N.
- Era uma promoção social, sim. Chegar a doutor era sobretudo uma
aposta das famílias nos filhos homens. No meu tempo, a generalidade das
raparigas ia para a faculdade não para serem doutoras mas para tirar um
curso - a maioria de professoras - que lhes proporcionasse um emprego
decente, um ganha-pão decente.
EXP. - Foi essa a razão que a levou à faculdade?
N.N. - Um pouco por isso, mas também pelo desejo de continuar a estudar.
EXP.
- Hoje é uma escritora com mais de 20 livros publicados. A vontade de
escrever não influiu na decisão de frequentar um curso superior?
N.N.
- Penso que ser-se escritor é uma coisa que está ligada ao nosso
temperamento, à nossa mentalidade, à nossa maneira de ser. Em pequena,
eu, como todas as crianças, imaginava coisas. Quando tinha certas
vivências infantis, embora não estivesse a escrever, estava já a ser
escritora.
EXP. - Leu ou leram-lhe histórias quando era criança?
N.N.
- Eu não tive literatura infantil nem me contaram as histórias que as
avós costumam contar aos netos. Tive outras histórias. Enquanto estive
na Beira, a caseira do meu tio contava-nos as coisas mais fantásticas
sobre almas penadas; pessoas que durante a missa tinham visto um
espírito rebentar ao ver o Santíssimo... Havia também uma mulher meio
louca, como há em todas as terras - «la folle du village» -, cujas
histórias eram verdadeiros delírios verbais. Depois ouvia as lendas, os
romances das criadas da casa. Assistia à armação das eças nas igrejas,
aos funerais, aos velórios.
EXP. - Situação hoje impensável nos grandes centros urbanos, onde o cerimonial da morte é oculto às crianças.
N.N.
- Hoje as crianças têm contacto com as mortes virtuais, as mortes pela
televisão. Eu tive um contacto directo com a morte desde pequena. Como,
na época, a mortalidade infantil era muito elevada, ia frequentemente a
enterros de «anjinhos», como então se chamava às crianças de tenra idade
que morriam, e acompanhava-os até à cova segurando as asas do caixão. A
partir dos oito anos, comecei a interrogar-me: que é estar morto?
EXP. - A convivência tão cedo com a morte ajudou-a a encará-la com naturalidade?
N.N.
- A morte é um problema trágico; é um escândalo. Não aceito a morte na
condição humana, embora creia em Deus e seja muito religiosa. Como
presentemente preciso de um amparo moral e de uma consolação perante o
escândalo que é a morte, estou a tentar reelaborar todos os
conhecimentos que tenho de antropologia, de psicanálise, de psicologia e
de filosofia, para ver se consigo aceitar coisas da religião católica
que ainda não consigo.
EXP. - Quando observa os novos comportamentos não faz comparações com a maneira como viveu?
N.N. - Se faço!... Muitas!
EXP. - E chega à conclusão.
N.N.
- Há vários factores a considerar. Julgo que nenhuma mulher, por
exemplo, repudia os electrodomésticos, os detergentes. Actualmente, o
trabalho doméstico está muitíssimo mais facilitado.
EXP. - Que usavam antes do aparecimento dos detergentes?
N.N.
- Sabão, lixívia, potassa. Na província, ainda havia o uso de fazer
barrela à roupa. Na cidade, a roupa era lavada nos tanques de cimento
domésticos, canalizados, ou, nas casa menos apetrechadas, em alguidares
de folha ou de barro. A loiça era lavada com sabão e, para tirar a
gordura, usava-se a potassa. Areavam-se os tachos com cinza.
EXP. - Era tudo muito mais calmo.
N.N.
- Sim, em compensação, como a maioria das mulheres trabalha fora de
casa, leva uma vida frenética. Eu também estive empregada, mas os ritmos
eram diferentes, menos «stressantes». Vivia perto do local do trabalho e
entrava às dez horas e saía às quatro.
EXP. - As mulheres perderam mais do que ganharam ao quererem ser economicamente independentes?
N.N.
- Como tudo na vida, há sempre um lado bom e um lado mau ou menos bom.
As mulheres ganharam uma certa independência económica, mas, por outro
lado, as que têm filhos criaram uma vida tão extenuante que não lhes dá
tempo para elas próprias. De qualquer modo, a independência económica
torna-as mais senhoras do próprio destino. No meu último romance, A
Vénus Turbulenta, eu trato desse problema. A protagonista, filha da alta
burguesia, a certa altura quer fazer uma certa vida mas apercebe-se de
que não pode mudar. Como não estudou (assim era hábito, na época, no
estrato social a que pertencia), não tem preparação para arranjar
trabalho compatível com o estatuto social. Está irremediavelmente
dependente dos homens: do marido e do pai.
EXP. - Foi muito importante ter sido mãe?
N.N.
- Fui mãe voluntariamente. Queria ter um rapaz, mas tive uma rapariga.
Mas só quis um... Aliás, tive um parto com sequelas tão más que não
desejei, nem fazia parte dos meus planos, ter mais.
EXP. - Como entende os novos comportamentos das raparigas?
N.N.
- Os jovens conquistaram a liberdade sexual. E considero isso muito
bom. No entanto, penso que têm de aprender a gerir essa liberdade, para
não caírem num desregramento que os poderá conduzir a um certo caos
interior, a um certo vazio.
EXP. - De que se lembra da II Grande Guerra?
N.N.
- No dia em que começou a guerra, em 1939, eu estava, no Cacém, em
férias com a família. Fiquei excitadíssima com a ideia de que ia
acontecer uma coisa diferente. Admirava a cultura e a ciência dos
alemães, mas era abertamente pelos Aliados.
EXP. - Que acontecimentos a marcaram negativamente neste século?
N.N.
- A II Guerra Mundial, o nazismo e o bolchevismo. A prática do nazismo,
como a do bolchevismo, foram hediondas. O holocausto dos judeus é o
anátema do povo alemão. Também não esqueço que, em nome da mudança, de
uma revolução, se fuzilaram entre quatro a cinco milhões de pequenos
agricultores! Como diz o Evangelho, «pela árvore se conhecem os frutos».
Quem pode querer estas árvores no quintal?
EXP. - E os acontecimentos positivos?
N.N.
- A queda de muitas ditaduras, a instauração da democracia e as
conquistas da ciência. Neste século, a ciência e a tecnologia têm
avançado como nunca.
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Fonte: http://expresso.sapo.pt/cultura/2018-02-13-Natalia-Nunes-O-amor-e-um-estado-de-graca
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