José de Souza Martins*
"Uma nova concepção de vida e de finitude
está sendo
gestada nas entrelinhas invisível
da trama social."
Sabemos que a crise social do mundo de hoje
não se reduz ao que é o econômico e o político. Difícil é saber quais são suas consequências
inesperadas. Ela cria incertezas no reconhecimento subjetivo da durabilidade da
vida, das instituições, dos costumes. Uma área afetada pela expansão da
modernidade, de que a crise é parte, é a da concepção de morte e da relação do
homem com o sobrenatural. Aí, os que se acham donos da vida interferem, mas não
mandam.
O modo de
morrer, que é o do preâmbulo da morte, muda historicamente. Afeta âmbitos
inesperados da vida. Um dos reflexos das mudanças no direito trabalhista e no
previdenciário, antes mesmo de plenamente consumadas, é o das mudanças também
em nossa cultura do morrer. Uma nova concepção de vida e de finitude está sendo
gestada nas entrelinhas invisível da trama social.
Numa roda
de amigos, em dias recentes, discutia-se a importância econômica do enxugamento
dos direitos dos que vivem do trabalho, que oneram os ganhos das empresas.
Permitirá a racionalização da produção. Alguém mencionou a robotização e a
substituição de trabalho humano por máquinas e computadores. Hoje, o sistema produtivo
pode produzir muitíssimo mais com menos gente. Mas já no século XIX se sabia
que a lógica da produção moderna implica em produzir também cada vez mais seres
humanos supérfluos.
Muito
preocupado, alguém indicou que, ao mesmo tempo, a esperança de vida logo
chegará aos 105 anos de idade. As mudanças nas condições de vida, o extraordinário
desenvolvimento da medicina e dos medicamentos já permite a cura de doenças que
há alguns anos eram fatais. Hoje, muitas pessoas vivem quase o dobro do que
seus bisavós viveram. Os porta-vozes das instituições previdenciárias apontam o
dedo para os idosos e dizem descaradamente que estão vivendo demais. Quem vai
pagar os custos da dádiva da sobrevida possível?
Na roda,
alguém mencionou os hospitais ultramodernos, onde se pode dar nova vida a quase
mortos. O milagre da ressurreição é real. Porém, tem gente ocupando leitos e
UTIs por tempo demais. A Justiça não leva em conta os custos desse progresso e
dá sentenças para fornecimento de remédios caríssimos, importados, e permanências
hospitalares longas de pacientes de recuperação improvável. Vivos, mas sem
vida? Afinal, o que é a vida?
Fica-se
sem saber se tudo melhorou muito ou se tudo piorou muito. Longa vida é
possível, mas, dizem, morte ligeira é necessária. Acho que era isso que Karl
Marx chamava de contradição da sociedade da acumulação: o importante não é
viver, é ser barato.
Um
caboclo do Mato Grosso explicou-me que, quando nascemos, já nascemos com a data
de nossa morte definida. Não adianta querer ficar. O escritor baiano José
Guilherme da Cunha, em seu livro "Esquina do Badu", narra costumes
antigos de uma localidade do sertão de sua terra. Um deles, o das técnicas para
reduzir a resistência dos moribundos à morte. Ali, há tempos, ainda havia o
profissional da arte de bem morrer. O ajudante de Tânatos sentava-se sobre o
ventre do teimoso, dificultava-lhe a respiração e o incentivava a fazer a
passagem do tenebroso transe. Hoje o custo crescente do prolongamento da vida
se encarrega de sentar na barriga dos moribundos para ajudá-los a desistir de
ficar.
Esse cenário
de terror é a mais importante evidência do que chamam de pós-modernidade. O que
vem impondo quase imperceptíveis mudanças de costumes e invenções sociais para
preencher o tempo e o espaço novos dos que têm a vida prolongada. O progresso
econômico e a ciência abriram um abismo entre viver e sobreviver e criaram um
modo de vida e uma sociabilidade muito peculiar, com novos personagens e novas
rotinas: a mediação das cuidadoras, as visitas frequentes a hospitais e
clínicas. Já há hospitais pouco diferentes de hotéis. A indústria da sobrevida prospera
enquanto a vida é precarizada.
Uma nova
humanidade de sobreviventes povoa a realidade, bem diversa daquela de anos
atrás em que era curtíssimo o tempo que separava a manifestação dos primeiros
sinais da morte próxima e o desfecho final do então chamado último suspiro. A
médica Elizabeth Kubler-Ross fez a distinção entre o morrer e a morte. A morte
é o instante derradeiro. O morrer é outra coisa. É o lento processo da singular
sociabilidade entre os primeiros sinais da morte possível e a morte
propriamente dita. É o mundo novo do morrer.
Temos
hoje consciência de que a morte nos rodeia constantemente, de que a vida ficou
mais longa e mais curta ao mesmo tempo. A incerteza relacionada com a morte e o
medo que dela temos redefiniram valores sociais. A saída tem sido inventar um
mundo de artimanhas e relacionamentos sociais para viver as alegrias do morrer.
---------------------
*José de
Souza Martins é sociólogo. Professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros
livros, autor de Uma Sociologia da Vida Cotidiana (Contexto).
Fonte: http://www.valor.com.br/cultura/5341139/ultima-saida 23/02/2018
Fonte: http://www.valor.com.br/cultura/5341139/ultima-saida 23/02/2018
Nenhum comentário:
Postar um comentário