Martim Vasques da
Cunha*,
Especial para o Estado
10 Fevereiro 2018 | 16h00
10 Fevereiro 2018 | 16h00
Nascido em 1944, em Veneza, o filósofo Massimo Cacciari finalmente
chega ao Brasil para meditar sobre as vantagens do abandono metafísico,
graças à editora Âyiné, que publicou cinco livros dele em disparada – o
complexo O Poder que Freia, os delicados Duplo Retrato e Três Ícones, e os inovadores Ocidente Sem Utopias (com Paolo Prodi) e Gerar Deus (no prelo).
O estilo de Cacciari acompanha a sua peregrinação filosófica e
política. Nas palavras de Alessandro Carrera, ele começou como um
esquerdista radical, influenciado pela mistura explosiva da Escola de
Frankfurt com Martin Heidegger (algo comum na cultura italiana da década
de 1960). Depois, deixou de lado qualquer pretensão de ativismo
ideológico para se tornar tanto um scholar fascinado pelas especulações
neoplatônicas (evidentes nos tratados Dell’Inizio, de 1990, e Della Cosa Ultima,
de 2004) como uma figura pública que, independentemente de analisar a
política da sua época, jamais permitiu que o intelecto contaminasse a
ação efetiva. Tornou-se exemplo único do homem de letras que não viveu
isolado em seu gabinete e resolveu descobrir o consenso com a sociedade,
sem depender da centralização federativa de poderes estatais, algo que
lhe causou inimizades no Partido Comunista a que era filiado e depois
saiu por incompatibilidade. Esta atitude demonstra uma coerência de
princípios, reforçada nos seus mandatos como prefeito de Veneza
(1993-1999; 2005-2010) e representante da Itália no parlamento da União
Europeia (1999-2000).
O mesmo “labirinto
filosófico” (título de um dos seus livros mais originais, lançado em
2014) é refletido no modo como Cacciari lida com as palavras. Aqui
aplica-se o que Isaiah Berlin escreveu em um ensaio sobre o estilo de
Churchill: “uma tentativa inspirada de revivescência”. Por mais que o
uso de frases longas e trocadilhos em grego, alemão e latim, possa dar a
impressão que Cacciari seria hermético, o leitor é obrigado a entender
que o diagnóstico feito pelo filósofo é o de um mundo que vive uma
completa transformação de tudo o que pensávamos existir, imerso em uma
paralisia na qual ninguém parece saber como escapar, sem cair
imediatamente no abandono de si mesmo.
Esta tensão insuportável e insolúvel está articulada com perfeição estilística em O Poder que Freia,
cujo eixo principal é uma meditação teológica-política a lá Carl
Schmitt. Somos jogados sem aviso em um argumento inquietante: o tempo
que vivemos (ou “o tempo que resta”, na maravilhosa frase de Giorgio
Agamben, autor com quem Cacciari dialoga em sua obra) é permeado pelo
katechon. Esta expressão, retirada da Segunda Epístola aos
Tessalonicenses atribuída ao apóstolo Paulo, significa indistintamente
“algo-alguém-alguma coisa” que detém um poder e que
“contém-retém-freia-atrasa” o definitivo triunfo do Espírito da
impiedade (apelidado entre nós de “O Anticristo”), travando “seu
aniquilamento pela força da boca do sopro do Senhor”. Aparentemente,
presume-se que os poderes que exerceriam esta função seriam o do Estado
(em especial, na variação imperial ou “globalista”) e o da Igreja, mas é
neste ponto que Cacciari provoca uma reviravolta no seu raciocínio.
Para ele, Estado e Igreja fazem igualmente parte do katechon;
porém há, na verdade, um campo de forças e de tensões sobrepostas, que
se acumulam e se dissolvem, às vezes de forma consciente, outras vezes
de maneira imperceptível à consciência humana. Esta “rede”, fortemente
conectada em seus nós górdios, dá a certeza de que o tempo que nos resta
só será plenamente resolvido em um grande evento apocalíptico de
proporções inimagináveis. Entretanto, por causa justamente do poder do
katechon, que freia tal desenlace definitivo, Cacciari também mostra que
as crises mundiais (políticas, sociais, espirituais) se tornam
progressivamente permanentes, sem nenhuma solução evidente. O que era
antes a síndrome de Prometeu, o herói revoltado contra os deuses (ou “o
Deus”) que não o compreendem na sua agonia pelo conhecimento definitivo
que explicaria tudo (o “gnosticismo” atormentado da modernidade), agora é
a Era do irmão deste titã, Epimeteu, que abriu a caixa de sua esposa
Pandora e esqueceu lá dentro a virtude da esperança, para algum dia
(quem sabe?) encontrarmos algo, seja lá o que for.
Cacciari não permite nenhum alento no seu percurso meditativo. As
reclamações a respeito de seu estilo ficam dissolvidas na irrelevância
quando percebemos que é perfeitamente coerente com a era da insecuritas
na qual vivemos, descrita com a precisão de um entomologista. Em outras
palavras: estamos todos nós imersos no vórtice do furacão, e, pior, só
conseguimos ver isso como algo absolutamente negativo. Dessa forma,
Cacciari faz o que a verdadeira filosofia deveria nos ensinar desde
sempre: ele argumenta que a insecuritas, a insegurança, a incerteza,
podem, sim, trazer a paralisia e a anomia – a stasis da guerra civil
indefinida e indiferenciada – ao nosso redor; contudo, o reconhecimento
de que vivemos em pleno katechon nos induz a concluir também que não há
outra solução exceto aceitar tal cenário de impermanência – e que é
fundamental fazermos algo a respeito. O incômodo provocado ao final da
leitura de O Poder que Freia se deve talvez ao fato de que não
queremos aceitar para nós mesmos que a esperança neste mundo significa
vivermos no oceano do desespero, sem outro intermédio – seja do Estado
ou da Igreja –, e também porque não queremos admitir para quem vive das
nossas instituições, aparentemente pluralistas e democráticas, que todas
as mediações foram destruídas.
O “choque de civilizações” que surge entre a tensão do katechon e
a chegada da utopia como forma política definitiva, faz Cacciari
criticar duramente a visão de mundo marxista que antes defendia na sua
juventude. No ensaio que compõe o livro Ocidente Sem Utopias, ele
complementa a premissa de Paolo Prodi de que a voz profética de Marx
aboliu qualquer possibilidade utópica porque fez a fusão definitiva da
perfeição tecnológica-científica com a indignação moral – e, ao
privilegiar a primeira para justificar seus erros monstruosos, destituiu
a segunda de qualquer chance de verossimilhança no seu discurso. Assim,
a utopia tornou-se não apenas um “novo Deus” e sim algo ainda mais
precário: para o Ocidente, em especial o continente sufocado pelo
projeto da União Europeia, ela é o “último Deus” que sobrou antes de
qualquer vestígio do divino desaparecer.
É por isso que Cacciari opta por refletir sobre o esvaziamento do
sagrado nas suas análises a respeito das representações pictóricas e
literárias de São Francisco de Assis e da Virgem Maria em Duplo Retrato e
Gerar Deus – ou das teofanias estéticas de Andrei Rublev, Piero Della
Francesca e Johannes Van Eyck, conforme lemos em Três Retratos. Segundo
sua perspectiva, o abandono de Deus é simétrico a uma política
abandonada que nos impede experimentar qualquer amostra de civilidade.
Somente por meio da intuição que a Sophia concretizada na gestação de
Maria ou na Pobreza de São Francisco ilumina a Trindade de Rublev, a Ressurreição de Piero e os Arnolfini de
Eyck, suportaremos com (alguma) coragem a pressão que é viver na era
insegura do katechon. Não se trata de uma esperança, mas, para Cacciari,
é a chance de algum início autêntico. Até lá, ficaremos suspensos na
anti-profecia descrita nas ásperas palavras desse filósofo italiano,
semelhantes aos versos de um outro europeu, o poeta português Fernando
Pessoa: “Os deuses não morreram: o que morreu foi a nossa visão deles.
Não se foram: deixamos de os ver”.
Ao Aliás, o filósofo respondeu às seguintes questões:
Qual a origem da obsessão pelo mito de Prometeu?
Prometeu não é uma “obsessão”! A figura é um dos grandes símbolos da
civilização europeia! Nós temos, no entanto, muito dele: o benfeitor
ambíguo da era clássica; a rebeldia do hino de Goethe; o Deus do
“progresso” econômico e tecnológico. Além disso, o Prometeu (1984) de
Luigi Nono, que está em busca de uma nova ideia do Tempo superando sua
aparência devastada. Discuti essa ideia especialmente em Dell’Inizio,
mas a questão permeia todo meu trabalho.
Qual é a relação entre os livros publicados no Brasil e os seus grandes tratados filosóficos?
Esses livros representam complementos necessários ao tríptico Dell’Inizio, Della Cosa Ultima, e Labirinto Filosofico, assim como o tríptico dedicado à ideia da Europa: Geofilosofia dell’Europa, L’Arcipelago, Europe and Empire.
Os mesmos problemas que abordei de um ponto de vista teórico ou
histórico nessas pesquisas principais são tratados aqui à luz de figuras
singulares ou símbolos: Francisco, Maria, e por aí vai.
O sr. vê uma conexão secreta entre a Dama Pobreza
anunciada por São Francisco (e meditada em ‘Duplo Retrato’) e a Sophia
encarnada em Maria?
Sim, a Madonna Povertà foi pensada
por Francisco como uma imagem mariana. Não há ideia teológica em
Francisco que não se transforme na vida de figuras históricas – como em
Dante. E Maria é a virgem de Nazaré, a esposa de José, a mãe de Jesus,
orando e chorando com ele.
A mentalidade utópica na modernidade influenciou as artes plásticas de forma positiva ou negativa?
O Espírito da Utopia é tema fundamental em qualquer vanguarda. O termo
também tem muitos sentidos. Reforma política radical? Novo ciclo
religioso, mesmo em perspectiva messiânica? Confusão, ou até caos, entre
essas dimensões? O que parece hoje é que a utopia se tornará só uma
espécie de modelo vazio, o “progresso” infinito e integral de novidade
em novidade no palco do mercado global.
*Martim Vasques da Cunha é autor de 'Crise e Utopia – O Dilema de Thomas More' (Vide Editorial, 2012) e 'A Poeira da Glória – Uma (Inesperada) História da Literatura Brasileira' (Record, 2015); Pós-doutorando pela FGV-EAESP
Fonte: http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,utopia-se-tornara-uma-especie-de-modelo-vazio-diz-massimo-cacciari,70002183446 10/02/2018
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