José Brissos-Lino*
A pergunta parecerá eventualmente exagerada
mas não deixa de ser
pertinente. O que mais
não falta por esse desvairado mundo
é quem ande a matar o próximo em
nome da sua crença religiosa.
Ainda há poucos dias uma discussão entre dois pastores em Timbaúba
(Pernambuco, Brasil), sobre questões teológicas e interpretações bíblicas
terminou com a morte de um deles. O indivíduo que assassinou o colega à facada
foi preso em flagrante e levado para a delegacia local. A discussão terá
acontecido nas traseiras do templo onde ambos serviam. O homicida ainda tentou
esconder-se numa residência mas foi capturado e confessou o crime. A vítima
depois de ser esfaqueada tentou fugir mas o agressor atingiu-o com uma pedra.
Também em Setembro de 2016, um debate teológico informal entre dois
pastores americanos terminou com o homicídio de um deles, depois de a discussão
descambar para a intolerância e a violência. Discutiam no pátio de um lar de
idosos nos subúrbios de Chicago, Illinois (EUA), a respeito de questões ligadas
à Bíblia e à espiritualidade, como era hábito, quando um deles puxou a arma e
deu dois tiros na cabeça do outro, que teve morte imediata, acto que foi
registado por uma câmara de videovigilância. O assassino prestava assistência
espiritual naquele centro de solidariedade.
Sim, matam-se pessoas devido a disputas religiosas e teológicas, tal
como se matam pessoas em disputas desportivas, políticas, familiares ou
sociais. E ninguém em seu perfeito juízo propõe acabar com as famílias, a vida
pública, a cidadania ou o desporto por causa disso. A questão não está nas
diferenças político-partidárias, clubísticas, familiares ou religiosas, que
sempre existiram, existirão e é saudável que existam, mas sim na atitude de
respeito pelo outro e aceitação da diferença de opiniões e sensibilidade de
cada um.
É claro que há contextos nos quais se torna mais chocante tal
manifestação de intolerância e violência, como a religião ou a família. É
suposto que o âmbito familiar constitua um espaço de paz e protecção mútua, mas
é onde surgem frequentemente índices de violência relevantes – a chamada
violência doméstica – e a maior taxa de abuso sexual infantil, como os estudos
sobre pedofilia demonstram.
Assim como é suposto que o território relacional de uma mesma comunidade
religiosa, enquanto família espiritual, se revista de segurança, crescimento
pessoal, paz e edificação mútua. Mas também é aí que pode surgir o abuso
religioso de carácter espiritual, psicológico e por vezes até físico. Os
cínicos dirão que a religião faz mal às pessoas. Mas dirão o mesmo da família?
Ou da vida associativa? Ou da participação política? A solução será acabar com
tudo quanto sejam comunidades religiosas, famílias, clubes, associações,
colectividades e partidos políticos? E resta o quê?
Como é bom de ver, existem e existirão sempre problemas onde coexistirem
pessoas. São as pessoas que criam os problemas e não as organizações. Estas
podem, no limite, não os prevenir ou até potenciar, mas não os criam. Um
pedófilo não o é por causa da sua família, mas apesar dela. Um corrupto não o é
por causa da instituição onde trabalha, mas apesar dela. Os criminosos são
sempre as pessoas e não as organizações. Culpar as organizações é uma forma de
diluir e branquear as responsabilidades individuais.
“Quando a moral se baseia na teologia,
quando o
direito depende da autoridade divina,
as coisas mais imorais e
injustas podem
ser justificadas e impostas”.
(Ludwig Feuerbach)
Fala-se muito de violência inter-religiosa (entre diferentes expressões
religiosas) mas pouco de violência intrarreligiosa (dentro da mesma religião),
que não é menos evidente e preocupante. Sim, a Teologia pode matar, como
qualquer outra coisa. Basta lembrarmo-nos dos horrores perpetrados pelos
talibãs (estudantes de teologia islâmica) do Afeganistão. Como sempre, é a
pulsão do poder que está por detrás da violência em qualquer destes âmbitos
sociais, nem que seja o poder de ter razão.
Os casos acima citados revelam pelo menos duas coisas: fanatismo
religioso, com a correspondente incapacidade de tentar escutar, compreender e
respeitar o ponto de vista alheio; falta de preparação pastoral ou deslealdade
para com a vocação de ministro do Evangelho; e sobretudo a pulsão de Caim que o
levou a assassinar o irmão: “E disse Deus: Que fizeste? A voz do sangue do
teu irmão clama a mim desde a terra”(Génesis 4:10).
Ludwig Feuerbach dizia que “Quando a moral se baseia na teologia,
quando o direito depende da autoridade divina, as coisas mais imorais e
injustas podem ser justificadas e impostas”. Os triunfalismos religiosos,
tal como os modelos absolutistas de governo, devem ser arrumados na prateleira
da História. A Modernidade veio trazer capacitação aos indivíduos,
libertando-os de soberanias abusivas ou ilegítimas. Mas agora os indivíduos não
podem, por sua vez, comportar-se socialmente como se fossem soberanos dos
outros, que são mais fracos ou que pensam e sentem diferente, pois sempre que
assim fizerem revelam-se indignos da sua própria liberdade.
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*José Brissos-Lino é director do mestrado em Ciência das Religiões na Universidade
Lusófona e coordenador do Instituto de Cristianismo Contemporâneo; texto
publicado também na Visão Online.
Fonte: https://setemargens.com/a-teologia-mata/?utm_term=7Margens+-+Hoje+-+Frei+Agostinho+da+Cruz%2C+um+poeta+da+liberdade+em+tempos+de+InquisiA%C2%A7A%C2%A3o&utm_campaign=Sete+Margens&utm_source=e-goi&utm_medium=email
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